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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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ELIO GASPARI

Chico Nikolai de Oliveira Kondratieff

Antes de completar seis meses de governo, Lula produziu um triste caso de censura. Expeliu de um livro prefaciado pelo presidente da República a opinião do professor Francisco de Oliveira, da Universidade de São Paulo, do PT, do Cebrap e de todas as esquinas onde se lutou pela liberdade no Brasil.
Deu-se o seguinte:
Em 2001, a pedido de Lula, Chico de Oliveira foi convidado pelo Instituto Cidadania para organizar um estudo sobre a reforma política. Fez isso com a ajuda de outros petistas. Foram à luta e montaram três seminários, um em São Paulo, outro no Rio e o terceiro em Porto Alegre. Junto com esse serviço, Chico encomendou artigos a mais de uma dezena de acadêmicos e ativistas políticos. O professor é conhecido pela contundência de suas opiniões. Chamou FFHH de tirano, atacou os xiitas do PT em 1994 dizendo que "ninguém quer participar de um partido jurássico". Quando Lula foi eleito, viu no resultado a oportunidade para uma "refundação do Brasil", comparando a vitória petista com a Revolução de 1930 ou mesmo a Abolição.
No dia da posse de Lula, Chico de Oliveira publicou um artigo intitulado "Entre São Bernardo e a avenida Paulista". Via no governo um "eixo de indeterminação" entre uma política econômica ortodoxa, "para não dizer tucana", e "uma política social petista". Ficou a impressão de que sentia cheiro de queimado.
No dia 17 de fevereiro, o professor deu a aula de abertura dos cursos na Faculdade de Filosofia da USP. Chama-se "Democratização e Republicanização do Estado". Auditório cheio, com Marilena Chaui e Aziz Ab" Saber na mesa. Leu um texto reflexivo e, tratando da ordem política mundial, disse o seguinte:
"Está em gestação uma sociedade de controle que escapa aos rótulos simples do neoliberalismo e até mesmo ao mais radical e oposto do autoritarismo. Não parece autoritarismo, pois as escolhas por intermédio das eleições se oferecem periodicamente, embora o instinto do eleitor desconfie da irrelevância do seu voto".
Mais adiante, disse:
"O Banco Central é, em todas as sociedades capitalistas, a instituição mais fechada, mais avessa à publicização. Numa palavra, a instituição mais anti-republicana e mais antidemocrática. Nenhuma instituição zomba tanto da democracia e da República quanto o Banco Central. Nenhuma instituição proclama a toda hora que o voto é supérfluo, que o cidadão é uma abstração inútil, com tanta eficácia. Nenhuma instituição é mais destruidora da vontade popular. Conceder-se autonomia ao Banco Central é perder a longa acumulação civilizatória, mesmo no capitalismo".
(Para não se pensar que essas idéias são coisa de professor brasileiro de esquerda, aqui vai o título de um livro publicado em 1995 por um repórter da revista americana Forbes: "Conto do Vigário: Como Presidentes de Bancos Centrais, que não Foram Eleitos por Ninguém, Estão Governando a Economia Global".)
Da aula de Chico de Oliveira sobraram algumas opiniões. A de Ab" Saber, por exemplo: "Foi uma conferência crítica no melhor sentido do termo crítico. Sem citar nomes, ele fez um panorama das realidades internacionais que, infelizmente, se projetaram para o nosso país".
A essa altura, o professor estava no grupo de organizadores do livro, que reuniria 18 trabalhos. Entre eles, os debates dos seminários, artigos encomendados e um estudo sobre a experiência dos orçamentos participativos, do qual ele é um dos autores.
Chico enviou aos organizadores do livro sua contribuição, o texto da aula. Surgiu um obstáculo. O volume teria um prefácio de Lula, e havia uma "incompatibilidade" entre as opiniões do professor e um texto presidencial. Lula vetava a inclusão do artigo no livro. O professor foi informado disso por um emissário do presidente, na presença de testemunha: "Houve uma censura, por meio de um veto. Até onde eu sei, o veto veio de Lula". Oliveira concordou em retirar o texto. Quem inventou a bobagem da "incompatibilidade" entre artigos e prefácios não entende de livros, nem de prefácios. Em duas frases, Lula poderia mostrar sua discordância com as idéias do professor, sem precisar de expurgo algum. Como uma idéia de jerico leva a outra idéia de jerico, ofereceu-se ao professor uma monstruosidade. O artigo maldito seria retirado, mas ele continuaria como um dos organizadores do volume, com nome na capa.
Cutucaram a ferocidade de um nordestino de 69 anos que começou a organizar o PT junto com Lula, em 1979, quando o partido cabia numa Kombi. Chico de Oliveira ofendeu-se. Oferecia-se a um professor que aceitasse ser organizador de um volume do qual um texto seu havia sido vetado.
(Em 1973, os doutores Eugenio Gudin e Roberto Campos trabalharam para que o professor Paul Samuelson, prêmio Nobel de Economia, expurgasse a edição brasileira de seu famoso "Introdução à Analise Econômica", mas isso é outra história.)
Lula não queria silenciar o texto de Chico, queria apenas reclassificá-lo. Prontificou-se a conseguir sua publicação num grande jornal. Ele mesmo telefonaria à Redação. Para mostrar que não há censura partidária, a conferência maldita sairá na revista "Teoria e Debate", uma competente e democrática publicação petista. A revista tem uma tiragem de 10 mil exemplares, três vezes maior que a do livro. Fica a coisa num pé ridículo. O professor adquiriu alguma carga virótica, cerebralmente transmissível. Isso o impede de ser publicado num volume prefaciado pelo presidente Lula, mas suas opiniões são respeitáveis o suficiente para serem divulgadas numa revista do PT. Lê-lo demandaria a proteção da flexibilidade partidária, uma espécie de camisinha intelectual.
Já que o PT federal entrou no campo dos expurgos de textos e das demonstrações de força diante do pensamento dissonante, vai aqui, como vinheta, o Dilema do Marechal:
Um governante (Stálin) incomodou-se com as opiniões de um economista (Nikolai Kondratieff). Ele dizia que o capitalismo sobreviveria à crise de 1929. Melhor passá-lo nas armas, mas era homem de algum prestígio internacional. Solução: Kondratieff foi preso no início dos anos 30 e, mesmo tendo sido fuzilado em 1938, seu nome foi mantido no Conselho de Economistas da União Soviética até 1948.
Francisco de Oliveira continua no Conselho do Instituto Cidadania. A "aula maldita" está no seguinte endereço, em Adobe Acrobat: http://www.unifesp.br/assoc/adunifesp/others/chicooli.pdf

Ou, em texto:http://www.google.com.br/search?q=cache:THt5GKliRVAJ: www.unifesp.br/assoc/adunifesp/others/chicooli.pdf+chicooli&hl=pt-BR&ie=UTF-8

Com a cartilha do governor desaprende-se a ler e a contar

O governor Henrique Meirelles divulgou uma cartilha intitulada "Juros e spread bancário". Destina-se a ensinar à patuléia os mecanismos da banca, que transformam uma taxa básica de 26,5% ao ano num tasca de 142,2% nos cheques especiais. O documento do Banco Central tem 27 páginas. Foi pago pelos cidadãos de um país onde, no ano passado, os 50 maiores bancos lucraram 92% a mais do que as 150 maiores empresas não-financeiras. Os bancos lucraram US$ 5,7 bilhões. A indústria, US$ 3 bilhões.
Na apostila do governor Meirelles a palavra "lucro" está escrita só uma vez. Decompondo a sobretaxa, menciona a "margem líquida (40,1%), parcela que compreende não apenas o lucro da instituição, mas também a compensação por créditos de direcionamento obrigatório (...)". Beleza, o lucro da banca entrou na cartilha de passagem, em economês. Margem líquida é a ciclovia da Lagoa. Além disso, com o "não apenas" constroem-se maravilhosas empulhações. Por exemplo: Adolf Hitler foi não apenas um celerado, mas também um razoável aquarelista. Outro, no sentido inverso: o general Eisenhower foi não apenas o comandante das tropas aliadas durante a guerra, mas também o namorado de sua motorista.
Toda a argumentação da Febraban e de seus sucedâneos associa uma boa parte dos spreads à inadimplência. Simples: se uma modalidade de empréstimo tem muitos caloteiros, é justo que o banqueiro se garanta.
Média não tem cérebro, mas bem que o governor Meirelles podia elaborar alguns pontos de sua cartilha. A saber:
A taxa de inadimplência do hot money das pessoas jurídicas é de 8,8%, A sobretaxa desse tipo de crédito é de 30,3%. Já a inadimplência do crédito pessoal da patuléia é um pouquinho menor (8,2%), mas a sobretaxa é mais que o dobro (63,4%).
O caso do cheque especial parece ser escandaloso. Para uma inadimplência de 7,1%, cobram-se sobretaxas de 142,2%. A inadimplência no cheque especial equivale ao dobro da que ataca os créditos de capital de giro (3,5%). A sobretaxa é dez vezes maior (142,2% x 14,5%).
Ou as tabelas do governor não querem dizer nada, ou há algo mal explicado. Nas duas hipóteses a cartilha do doutor Meirelles é um atentado contra o hábito da leitura e o significado dos números.

ENTREVISTA

Paulo Nogueira Batista Jr.

(48 anos, pesquisador-visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo)

O senhor escreveu um trabalho propondo que o Brasil se afaste das negociações do Acordo de Livre Comércio das Américas, a Alca. Lula vai se encontrar com George Bush, e sabemos que o presidente americano pretende empurrar a zona de livre comércio goela abaixo dos governantes do continente. Como se pode saltar dessa negociação?
-Com habilidade e paciência. Hoje, os maiores produtores de argumentos contra a Alca são os americanos. Durante o governo do presidente Bush, tanto ele como o Congresso dos Estados Unidos tomaram atitudes que tornam a Alca cada vez mais desigual e, portanto, mais difícil de ser aceita pelos países que pagarão o preço da desigualdade. Não se trata só de negociar uma zona de livre comércio com uma economia muito mais forte que a nossa. Trata-se de fazer isso com um país que pratica sistematicamente um protecionismo seletivo. O essencial é percebermos que a negociação proposta pelos Estados Unidos não atende aos nossos interesses. Ela implica na abdicação, pelo Brasil, de um projeto de desenvolvimento.
-O chefe dos negociadores americanos, Robert Zoellick, disse que se o Brasil não entrar para a Alca, terá que vender seus produtos na Antártida, por falta de freguesia.
-Piada. Em primeiro lugar, é duvidoso que venha a haver uma Alca se o Brasil resolver ficar de fora. Em segundo lugar, entre o projeto americano e a Antártida há o mundo. O Brasil pode negociar acordos de livre comércio com outros países latino-americanos. É isso que fazem os Estados Unidos. A pérola de Zoellick se deu num contexto internacional muito diferente do que temos hoje. O desfecho da crise venezuelana não foi o que os americanos previam. O presidente argentino é Néstor Kirchner, e não Carlos Menem. Mesmo pelo lado brasileiro, há novidades. Hoje a China é nosso segundo parceiro comercial. Estamos avançando em negociações com a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul. Nosso comércio com os Estados Unidos pode crescer, mesmo sem a Alca.
-O senhor não teme que a plutocracia brasileira pressione o governo a ceder aos americanos?
-Há no Brasil muitos interesses internos atraídos pela proposta da Alca. A idéia de algo que parece ser uma vinculação privilegiada com os EUA pode ser atraente para pessoas ou empresas. Tenho motivos para não temer que isso se torne um fator preponderante. Antes de tudo, o presidente Bush tem tornado muito fácil a vida dos críticos da Alca, como eu. Hoje, está difícil para um brasileiro defender o acordo, inclusive porque a posição americana muda sempre para pior. Na eleição americana de 2002 Bush tirou todo o proveito político possível do protecionismo seletivo. Os subsídios agrícolas deram boa parte dos votos da vitória republicana no Congresso. Eu acredito que em 2004, quando o presidente Bush disputará a reeleição, essa tendência se agravará. Até hoje os Estados Unidos foram incapazes de fazer uma oferta razoável aos brasileiros. Não digo para pessoas que pensam como eu, mas para pessoas que desejam pensar como se fossem americanos. O governo Bush tornou difícil a vida de seus aliados.


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