São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

A essência da LulaPress é a empulhação

Aqui vão dois pares de textos. Relacionam-se com noções de ética e disciplina dos jornalistas. Estão separados pelo tempo, pelo propósito e pela origem.
O primeiro diz o seguinte:
"As notícias devem ser precisas, versando apenas sobre fatos consumados. Não permitir informações falsas, supostas, dúbias ou vagas".
"A divulgação da informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independentemente da natureza de sua propriedade".
A segunda frase está no Código de Ética que servirá de base para a definição da alma do projeto que Lula mandou ao Congresso para "normatizar, fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas". Esse Código, aprovado num congresso da classe em 1987, é muito mais um manual de conduta. Acoplado ao projeto de Lula, resultará num regulamento disciplinar dos jornalistas.
A primeira afirmação é do general Silvio Correa de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo, no manual de censura que distribuiu aos jornais em dezembro de 1968, horas antes da edição do Ato Institucional nš 5.
O problema está na coincidência
O Código de Ética do aparelho sindical diz que "é dever do jornalista prestigiar as entidades representativas e democráticas da categoria".
Outro manual de censura, de junho de 1969, avisava que não se podia "publicar notícias ou comentários tendentes a provocar conflitos entre as Forças Armadas, ou entre essas e o poder público, ou entre esses e o povo".
No mundo dos generais considerava-se desprestígio dizer que em alguns de seus quartéis praticavam-se a tortura e o extermínio como política de Estado.
No mundo dos companheiros, os jornalistas têm o dever de "prestigiar" os sindicatos e a Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj. Seria desprestígio lembrar a maracutaia das aposentadorias de falsos perseguidos políticos, promovida em 1995 pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro?
Qualquer semelhança entre os manuais de censura e a visão autoritária e aparelhada que acompanha o projeto de criação do Conselho Federal do ofício é mera coincidência. Quando uma iniciativa de Lula, associado à Fenaj, guarda semelhanças retóricas com o palavrório dos censores, algo de ruim está acontecendo.
O projeto enviado por Lula ao Congresso ficará alguns anos na gaveta, rosnando. É um documento pedestre, mal-intencionado. Na exposição de motivos o ministro Ricardo Berzoini diz o seguinte: "A sociedade tem o direito à informação prestada com qualidade, correção e precisão, baseada em apuração ética dos fatos". Sabendo-se que, em 1968, durante a reunião em que se decidiu baixar o Ato Institucional nš 5, louvou-se 19 vezes a democracia e condenou-se 13 vezes a ditadura, pode-se perceber como palavras bonitas ("qualidade, correção e precisão") escondem o bornal do controle ("disciplina", "advertência", "censura", "suspensão", "cassação").
O projeto confunde deliberadamente um elemento essencial à profissão (a correção e o zelo pela precisão da notícia) com uma obrigação legal submetida à fiscalização, ao julgamento e à disciplina de um braço sindical sustentado pelo confisco de uma parte da renda dos profissionais.

A imprensa tem horror a fiscalização
Depois de se dizer tudo isso contra o projeto, pode-se argumentar que os jornalistas querem publicar grampos telefônicos obtidos ilegalmente, violar o sigilo bancário dos outros, defender o controle externo dos poderes alheios e escrever mentiras. Quando se fala em fiscalizá-los, esperneiam, cantam a Marselhesa e se escondem debaixo da alegoria da liberdade de imprensa. Quem achar assim estará muito mais certo do que errado.
O pior é que essa pessoa pode achar mais. Ela pode achar que há órgãos de imprensa que vendem reportagens, entregando-as aos leitores como se fossem produto daquela tal atividade protegida pela Constituição. Pode também suspeitar que os governos federal, estaduais e municipais gastam o dinheiro da patuléia e das empresas estatais com publicidade geralmente associada à simpatia do noticiário. Pode amaldiçoar jornalistas que escrevem belezas sobre eventos aos quais foram convidados a custo zero. São as chamadas "bocas-livres". Em suma: há corrupção, e muita, na imprensa. Essas práticas não atingem todos os jornais, revistas e emissoras, mas as maracutaias do mundo das comunicações são menos noticiadas no Brasil do que pedofilia de padre no "Osservatore Romano".
A imprensa brasileira precisa de algum tipo de fiscalização crítica independente. Uma forma simples, pública e bem-sucedida de fiscalização é a figura do ombudsman, adotada em 1989 pela Folha de S. Paulo. Depois de passar por memoráveis vexames, o "New York Times" criou o seu ombudsman no ano passado. Pode-se achar que é pouco.
Devem existir instâncias de fiscalização além do Poder Judiciário? Para médicos, advogados e arquitetos, elas existem.
Essas instâncias devem se misturar com o Estado ou devem se confinar ao universo do prestígio profissional? De um lado ficam os conselhos como os que Lula quer criar. São organismos de alistamento e arrecadação compulsória. De outro, entidades como as associações de jornais, revistas ou emissoras. Como as instâncias fiscalizadoras dos agrupamentos patronais freqüentemente não fiscalizam coisa nenhuma, a bola poderia rolar para a Associação Brasileira de Imprensa?
Essas são questões a respeito das quais cada um deve formar a sua opinião, pronto para mudá-la a cada duas semanas. Debate bonito é assim.

Notícia e verdade não são a mesma coisa
Vale voltar às duas primeiras afirmativas lá de cima. Pode-se sustentar que o Código de Ética dos Jornalistas e o Manual de Censura do general dizem coisas parecidas porque dizem coisas verdadeiras. É aí que mora o perigo. Toda vez que se fala em notícias necessariamente precisas, verdadeiras, seguras e claras, o que se quer é embaralhar o debate. Coisa do tipo enquanto-houver-fome-não-haverá-democracia.
A confusão entre notícia e verdade é uma falácia. Ela foi desmontada há quase um século por Walter Lippmann, um dos maiores jornalistas do seu tempo:
"Quem acredita que notícia e verdade são duas palavras que designam a mesma coisa, não vai a lugar algum. A função da notícia é sinalizar um acontecimento. A função da verdade é trazer à luz fatos ocultos, formando um quadro da realidade dentro do qual as pessoas possam agir. (à) Nós não entendemos a natureza limitada das notícias e a complexidade ilimitada da sociedade; nós superestimamos nossas capacidade de resistir, nosso espírito público e nossa competência". Ele se divertiu lembrando que os cidadãos pagam bom dinheiro pelos seus lugares no teatro e pelas passagens de trem, mas querem comprar a verdade, todos os dias, pagando com a menor moeda em circulação. (Em 1921 os jornais custavam um centavo de dólar.)

"Precisas e corretas" mistificações
Em 1964 num memorável julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz William Brennan Jr. redigiu a sentença que assegura à imprensa americana o direito de cometer erros factuais no noticiário relacionado com personalidades públicas. Brennan sustentou que, se os jornalistas forem colocados debaixo do medo de punições legais caso não contem histórias "precisas e corretas", quem perde é a sociedade, por ficar menos informada. Nada a ver com licença para mentir. O jornalista obriga-se a demonstrar que não sabia da falsidade da notícia e que não agiu como se pouco lhe importasse o fato de ela ser verdadeira ou falsa. Se alguém acha que a Corte Suprema é leniente com a imprensa, vale informar que, pelos seus critérios, algumas dezenas de jornalistas brasileiros teriam passado pela cadeia por conta da publicação de grampos. As casas impressoras ou transmissoras onde trabalhavam teriam corrido o risco de falir.
O comissariado que produziu o projeto de LulaPress promete ao público um regime de informações "precisas e corretas", sabendo que esse tipo de doce não existe. Às vezes essa empulhação parte dos jornalistas. Outras vezes parte daqueles que pretendem controlar os jornalistas. Em todos casos, o que se quer é empulhar a patuléia.

Erro

O leitor Carlos Brisola Marcondes informa: estava errada a informação aqui publicada segundo a qual depois de ter se casado com Ana Clara Breves, em 1867, o conde Maurice Haritoff alistou-se nas tropas russas que combatiam na guerra da Criméia.
A guerra da Criméia terminou em 1856, dez anos antes de sua chegada ao Brasil, com 25 anos. Como a crônica da vida do conde registra a sua partida para uma guerra, da qual voltou trazendo um precioso xale para sua mulher, é provável que Haritoff tenha participado da guerra da Rússia contra a Turquia, que foi de 1877 a 1878.

Abuso

Nas próximas duas semanas o signatário usufruirá o abuso varguista das férias. Fará isso antes que a ekipekonômica e a CUT comecem a discutir a flexibilização das leis trabalhistas.

Um grande livro sobre o Contestado

Saiu um grande livro sobre uma grande rebelião do povo brasileiro. É "Lideranças do Contestado" (Editora Unicamp), do professor Paulo Pinheiro Machado. Conta a guerra sertaneja ocorrida em terras de Santa Catarina e do Paraná entre 1912 e 1916. Ela pode ter envolvido 20 mil pessoas. Mobilizou metade do efetivo do Exército e resultou no massacre de milhares de sertanejos, a maior parte deles morta de fome pelo cerco da tropa. A fome era tanta que as crianças comiam primeiro as abelhas, depois é que pegavam o mel.
Uma história de grandes personagens, profetas e virgens videntes. A mais famosa, Maria Rosa, era uma bela jovem de 16 anos. Com sua alva figura montada num cavalo branco comandou os caboclos numa grande batalha e conduziu uma retirada de 2.000 pessoas com 600 cabeças de gado. O mais temido, Adeodato, foi o último chefe da guerra. A lenda conta que ele matou pessoalmente 2.000 pessoas. Talvez 600. Certo mesmo é que matou a mulher e um padrinho. Adeodato foi capturado e levado a julgamento. Em 1916 os comandantes militares tinham melhores modos do que os de 1974, quando todos (repetindo, todos) os guerrilheiros do Araguaia capturados foram passados nas armas.
O livro de Pinheiro Machado preenche uma antiga lacuna: o que se deve ler para saber o que foi a revolta sertaneja do Contestado? Seu domínio das fontes e a extensão da bibliografia tornam-no único. Seu corajoso debate com todos os autores e teorias que antecedem seu trabalho é um bálsamo. Chuta baldes sem se preocupar com o barulho: despreza as teorias do fanatismo do andar de baixo e as da influência dos coronéis do andar de cima. Entrevistou familiares de sertanejos, achou o processo criminal de Adeodato e ilustrou sua narrativa com falas e versos do povo. É um retrato da fúria do Estado brasileiro quando se trata de disciplinar o andar de baixo.
Para os poderosos de hoje, uma curiosidade: a encrenca começou com a Parceria Público-Privada, a PPP, de uma ferrovia.

Cartel esperto

O Brasil tem três grandes empresas produtoras de plástico, a Inova (da Petrobras dos amáveis companheiros do PT Federal), a Dow e a Basf (das tenebrosas multinacionais do mesmo nome). Desde dezembro de 2003 essas empresas subiram o preço de seus plásticos em cerca de 50%. Trata-se de uma produção que interfere no custo das mais diversas mercadorias, dos copinhos de plástico aos revestimentos internos de geladeiras e automóveis.
As indústrias estão recusando encomendas. Todas três informam que não podem atender a pedidos porque têm problemas técnicos.
Quem tiver dificuldade para acreditar que três indústrias têm problemas técnicos ao mesmo tempo deve se perguntar se a ekipekonômica está interessada em peitar empresários dispostos a produzir remarcações de preços. O mais divertido é saber que até a fábrica da Petrobras está com problemas técnicos.


Texto Anterior: Serra: Tucano se encontra com movimento negro
Próximo Texto: Governo e imprensa: Mídia exagera contra conselho, diz intelectual
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.