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JUSTIÇA
Remanescentes do massacre de Eldorado do Carajás na região somam 690 famílias
Acampamento virou vila carente
LUCAS FIGUEIREDO
enviado especial a Eldorado do Carajás
Ao passarem de sem-terra para
colonos, os remanescentes do
massacre de Eldorado do Carajás
(sul do Pará) conheceram também a violência entre eles. E, depois de terem sido vítimas da PM
local, sofrem com a falta de policiamento onde vivem.
O acampamento de sem-terra
na fazenda Macaxeira não existe
mais. Deu lugar à vila 17 de Abril
(data do massacre).
Nela vivem 690 famílias, que receberam 25 hectares para plantio
e mais um terreno na vila de 20
por 30 metros para construírem
suas casas.
Acabou a invasão, que deu lugar
à vila. Acabou também a disciplina rígida que o MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra) mantinha na área.
Agora não existem mais restrições a bebidas alcoólicas e à livre
entrada de visitantes. O movimento também deixou de promover segurança armada no local.
A vila não tem asfalto, luz elétrica, tratamento de esgoto, água encanada. Nem as ruas têm nome. O
posto de saúde existe, mas falta
médico.
A liberalização só fez aflorar os
problemas sociais comuns em comunidades carentes.
Quatro ex-sem-terra foram
mortos por ex-sem-terra desde
que o assentamento foi criado,
ainda em 96.
Um dos casos é o de Francisco
Alves do Nascimento, 32, morto
pelo irmão, Raimundo Alves do
Nascimento, 35, no último dia 2.
Eles se desentenderam por causa
de R$ 10 que haviam ganho vendendo farinha. O assassino está
foragido.
Abimael Pereira foi morto pela
mulher, e Alboíno Filho Silva, assassinado por um colega. Mais
dois enredos que envolvem brigas
passionais e muita cachaça.
"Hoje não podemos proibir a
entrada das pessoas, como fazíamos no acampamento. Esse tipo
de violência acontece em todo lugar", argumenta Raimundo dos
Santos Gouveia, 44, um dos líderes o MST na vila.
"Mas é triste", afirma, lembrando que, para receber a terra onde
vive, teve de se esconder atrás de
uma mangueira para não ser
morto no dia do massacre.
A Polícia Militar não faz ronda
ostensiva na área porque avalia
que ainda não há clima para convivência pacífica entre os remanescentes do massacre e os policiais envolvidos naquela operação. A Folha apurou que a Polícia
Militar faz somente trabalho de
inteligência na vila, com homens
disfarçados.
Ouvidos pela reportagem, assistentes sociais que atendem a população carente da região contaram que alguns moradores da vila
se envolveram no tráfico de drogas (principalmente maconha e
crack). A Polícia Civil tenta apurar onde está o foco.
"Nós éramos muito unidos.
Mas acabou a luta, e hoje não somos mais", disse o colono Francisco de Souza, 45.
Venda de lotes
Pelo menos 15 dos 690 beneficiados com os lotes na antiga fazenda Macaxeira já venderam
suas terras, contrariando as regras do Incra. Os preços variam
entre R$ 2.000 e R$ 3.000.
A Folha conversou com um
comprador, que não quis se identificar, que disse ter adquirido o
terreno de um colono de apelido
Maraca.
A coordenação do MST na vila
está levantando os casos de venda
de lotes para apresentar uma
queixa no Incra, exigindo que as
terras sejam tomadas dos compradores e sejam doadas a outros
sem-terra.
O corte ilegal de madeira também acontece livremente na vila.
Colonos cedem madeira de suas
áreas em troca de abertura de estradas e alimentos.
A coordenação do MST na vila
diz conhecer o fato, mas afirma
que a sobrevivência às vezes fala
mais alto que a preocupação ambiental.
Outro desvio nos princípios do
movimento é a aparição do "falso
colono".
"É gente que ganhou terra, mas
que só aparece aqui quando vão
sair os créditos (recursos da reforma agrária destinados diretamente às famílias)", afirma o colono
Josimar Ferreira.
Os ex-sem-terra da Macaxeira
são hoje mais de 7% da população
de Eldorado do Carajás (48 mil
habitantes).
Os comerciantes, que antes tinham medo, agora vão até a vila
vender mercadorias e comprar
produtos feitos por eles.
Força econômica
Numa região miserável, os ex-sem-terra se tornaram força econômica, com os créditos que recebem regulamente do Incra (valores que variam de R$ 1 mil a R$ 2
mil).
""Antes os comerciantes davam
carne para nós só para a gente ir
embora; pegamos fama de ruins.
Agora são os comerciantes que
vêm para cá para comprar o que é
nosso", afirma o colono Josimar.
Neste ano ele já vendeu, a R$ 15
cada, 15 sacas de arroz de 60 kg
plantado e colhido por ele.
A dona do supermercado Real,
Marlene Vieira de Morais, agradece a preferência dos ex-sem-terra. ""Eles pagam direitinho e
compram muito." Só a associação
dos novos colonos (que já tem
quatro tratores, equipamentos
para beneficiar arroz e torrar farinha, laticínio, sede própria provisória e aviário) compra cerca de
R$ 2 mil no supermercado a cada
mês.
A Prefeitura de Eldorado do Carajás também festeja o dinheiro
dos ex-sem-terra, que ajuda a
movimentar a economia da região. "O comércio evoluiu muito.
Isso ajudou a melhorar o município, porque eles aplicam aqui o
que ganham", afirma o secretário
de Administração, Levi Aparecido de Freitas.
A vida melhorou
Depois de passar fome e vagar
pelo Brasil à procura de emprego
e terra para morar, os maranhenses Maria do Rosário de Oliveira,
34, e Josimar Ferreira, 35, conseguiram se aprumar na vida com
os 25 hectares de terra que receberam do Incra na antiga fazenda
Macaxeira.
Eles eram dois dos cerca de
1.200 sem-terra que estavam na
curva do S quando aconteceu o
massacre. Ao ver os primeiros feridos, correram cerca de 3 km para escaparem da morte.
"Quando voltei para a estrada
ainda vi o sangue dos meus companheiros. A gente sabia que podia morrer ali, mas não tinha nada a perder", relembra Josimar.
Mudança de vida
Da pobreza absoluta (""eu não
tinha nem uma caixa de fósforos,
doutor", diz o colono), hoje o casal têm casa e 25 hectares de terra,
plantam arroz, milho, feijão,
mandioca e abóbora e tem uma
vaca.
Mas Josimar pensa em cultivar
produtos com mais valor no mercado: coco e cupuaçu.
Depois da mudança de vida, o
casal adotou uma criança de 6
meses, o Josué. ""Agora posso até
ajudar os outros", diz Maria do
Rosário, que tem outros dois filhos no Maranhão, mas não pode
mais engravidar.
Josimar faz questão de mostrar
as conquistas do casal depois que
receberam a terra: fogão, TV, mesa com cadeiras, cama, duas bicicletas, roupas, calçados e um pequeno aparelho de som. ""E moro
em casa rebocada sim, mas é minha."
Maria do Rosário conta que o
mais importante é não passar
mais fome. ""Aqui nunca faltou o
pão de cada dia. E não é comprado não, é da minha lavoura."
Mas eles querem mais. ""Agora
temos até sonho: ter 30 vacas e
uma Pampa (camionete) velha.
Aí eu vou para a cidade todo dia
vender o leite na minha Pampa."
Para Josimar, isso é a felicidade.
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