São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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JUSTIÇA
Remanescentes do massacre de Eldorado do Carajás na região somam 690 famílias
Acampamento virou vila carente

LUCAS FIGUEIREDO
enviado especial a Eldorado do Carajás

Ao passarem de sem-terra para colonos, os remanescentes do massacre de Eldorado do Carajás (sul do Pará) conheceram também a violência entre eles. E, depois de terem sido vítimas da PM local, sofrem com a falta de policiamento onde vivem.
O acampamento de sem-terra na fazenda Macaxeira não existe mais. Deu lugar à vila 17 de Abril (data do massacre).
Nela vivem 690 famílias, que receberam 25 hectares para plantio e mais um terreno na vila de 20 por 30 metros para construírem suas casas.
Acabou a invasão, que deu lugar à vila. Acabou também a disciplina rígida que o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) mantinha na área.
Agora não existem mais restrições a bebidas alcoólicas e à livre entrada de visitantes. O movimento também deixou de promover segurança armada no local.
A vila não tem asfalto, luz elétrica, tratamento de esgoto, água encanada. Nem as ruas têm nome. O posto de saúde existe, mas falta médico.
A liberalização só fez aflorar os problemas sociais comuns em comunidades carentes.
Quatro ex-sem-terra foram mortos por ex-sem-terra desde que o assentamento foi criado, ainda em 96.
Um dos casos é o de Francisco Alves do Nascimento, 32, morto pelo irmão, Raimundo Alves do Nascimento, 35, no último dia 2. Eles se desentenderam por causa de R$ 10 que haviam ganho vendendo farinha. O assassino está foragido.
Abimael Pereira foi morto pela mulher, e Alboíno Filho Silva, assassinado por um colega. Mais dois enredos que envolvem brigas passionais e muita cachaça.
"Hoje não podemos proibir a entrada das pessoas, como fazíamos no acampamento. Esse tipo de violência acontece em todo lugar", argumenta Raimundo dos Santos Gouveia, 44, um dos líderes o MST na vila.
"Mas é triste", afirma, lembrando que, para receber a terra onde vive, teve de se esconder atrás de uma mangueira para não ser morto no dia do massacre.
A Polícia Militar não faz ronda ostensiva na área porque avalia que ainda não há clima para convivência pacífica entre os remanescentes do massacre e os policiais envolvidos naquela operação. A Folha apurou que a Polícia Militar faz somente trabalho de inteligência na vila, com homens disfarçados.
Ouvidos pela reportagem, assistentes sociais que atendem a população carente da região contaram que alguns moradores da vila se envolveram no tráfico de drogas (principalmente maconha e crack). A Polícia Civil tenta apurar onde está o foco.
"Nós éramos muito unidos. Mas acabou a luta, e hoje não somos mais", disse o colono Francisco de Souza, 45.

Venda de lotes
Pelo menos 15 dos 690 beneficiados com os lotes na antiga fazenda Macaxeira já venderam suas terras, contrariando as regras do Incra. Os preços variam entre R$ 2.000 e R$ 3.000.
A Folha conversou com um comprador, que não quis se identificar, que disse ter adquirido o terreno de um colono de apelido Maraca.
A coordenação do MST na vila está levantando os casos de venda de lotes para apresentar uma queixa no Incra, exigindo que as terras sejam tomadas dos compradores e sejam doadas a outros sem-terra.
O corte ilegal de madeira também acontece livremente na vila. Colonos cedem madeira de suas áreas em troca de abertura de estradas e alimentos.
A coordenação do MST na vila diz conhecer o fato, mas afirma que a sobrevivência às vezes fala mais alto que a preocupação ambiental.
Outro desvio nos princípios do movimento é a aparição do "falso colono".
"É gente que ganhou terra, mas que só aparece aqui quando vão sair os créditos (recursos da reforma agrária destinados diretamente às famílias)", afirma o colono Josimar Ferreira.
Os ex-sem-terra da Macaxeira são hoje mais de 7% da população de Eldorado do Carajás (48 mil habitantes).
Os comerciantes, que antes tinham medo, agora vão até a vila vender mercadorias e comprar produtos feitos por eles.

Força econômica
Numa região miserável, os ex-sem-terra se tornaram força econômica, com os créditos que recebem regulamente do Incra (valores que variam de R$ 1 mil a R$ 2 mil).
""Antes os comerciantes davam carne para nós só para a gente ir embora; pegamos fama de ruins. Agora são os comerciantes que vêm para cá para comprar o que é nosso", afirma o colono Josimar. Neste ano ele já vendeu, a R$ 15 cada, 15 sacas de arroz de 60 kg plantado e colhido por ele.
A dona do supermercado Real, Marlene Vieira de Morais, agradece a preferência dos ex-sem-terra. ""Eles pagam direitinho e compram muito." Só a associação dos novos colonos (que já tem quatro tratores, equipamentos para beneficiar arroz e torrar farinha, laticínio, sede própria provisória e aviário) compra cerca de R$ 2 mil no supermercado a cada mês.
A Prefeitura de Eldorado do Carajás também festeja o dinheiro dos ex-sem-terra, que ajuda a movimentar a economia da região. "O comércio evoluiu muito. Isso ajudou a melhorar o município, porque eles aplicam aqui o que ganham", afirma o secretário de Administração, Levi Aparecido de Freitas.

A vida melhorou
Depois de passar fome e vagar pelo Brasil à procura de emprego e terra para morar, os maranhenses Maria do Rosário de Oliveira, 34, e Josimar Ferreira, 35, conseguiram se aprumar na vida com os 25 hectares de terra que receberam do Incra na antiga fazenda Macaxeira.
Eles eram dois dos cerca de 1.200 sem-terra que estavam na curva do S quando aconteceu o massacre. Ao ver os primeiros feridos, correram cerca de 3 km para escaparem da morte.
"Quando voltei para a estrada ainda vi o sangue dos meus companheiros. A gente sabia que podia morrer ali, mas não tinha nada a perder", relembra Josimar.

Mudança de vida
Da pobreza absoluta (""eu não tinha nem uma caixa de fósforos, doutor", diz o colono), hoje o casal têm casa e 25 hectares de terra, plantam arroz, milho, feijão, mandioca e abóbora e tem uma vaca.
Mas Josimar pensa em cultivar produtos com mais valor no mercado: coco e cupuaçu.
Depois da mudança de vida, o casal adotou uma criança de 6 meses, o Josué. ""Agora posso até ajudar os outros", diz Maria do Rosário, que tem outros dois filhos no Maranhão, mas não pode mais engravidar.
Josimar faz questão de mostrar as conquistas do casal depois que receberam a terra: fogão, TV, mesa com cadeiras, cama, duas bicicletas, roupas, calçados e um pequeno aparelho de som. ""E moro em casa rebocada sim, mas é minha."
Maria do Rosário conta que o mais importante é não passar mais fome. ""Aqui nunca faltou o pão de cada dia. E não é comprado não, é da minha lavoura."
Mas eles querem mais. ""Agora temos até sonho: ter 30 vacas e uma Pampa (camionete) velha. Aí eu vou para a cidade todo dia vender o leite na minha Pampa." Para Josimar, isso é a felicidade.



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