São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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RÉPLICAS

Árvores abatidas

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

O ombudsman dedicou sua coluna do último domingo à cobertura das eleições feita pela Folha. Analisando as edições do jornal da semana anterior, identificou "momentos infelizes" e disse que serristas "somaram motivos para comemorar", enquanto lulistas e ciristas acabaram "maltratados". Depois de elencar exemplos para sustentar sua tese, com ênfase para a edição de quinta-feira, dia 5 de setembro, concluiu da seguinte forma: "A Folha tem um capital de credibilidade acumulado a duras penas, ao longo de vários anos. Na reta final das eleições, ainda mais num quadro tão indefinido como o atual, tudo que ela e seus leitores necessitam é que esse capital não seja abalroado".
Como se vê, Bernardo Ajzenberg pôs a independência editorial da Folha em questão. Sua coluna foi transformada em peça de propaganda política, sobretudo pela campanha do PT, que ao longo da semana que passou não cansou de citá-la nas cartas e mensagens que enviou ao jornal. É um risco que corre um veículo de comunicação que se dispõe a discutir de forma pública e transparente, como nenhum outro na imprensa brasileira, seus critérios e resultados. Ajzenberg deve tê-lo calculado ao redigir seu texto.
O ombudsman se equivoca pelo que diz e pelo que deixa de dizer. Limita-se a fazer a leitura de um número muito restrito de edições e de um punhado de exemplos pinçados do jornal para derivar daí uma conclusão que, afinal, lança dúvidas sobre sua isenção. Ao se furtar de fazer a crítica em perspectiva do conjunto da cobertura, omite o principal. Tem sido essa sua prática recorrente quando aborda a conduta da Folha no processo eleitoral.
No dia 26 de maio, um dos subtítulos de sua coluna, intitulado "Um alerta", iniciava da seguinte maneira: "Na semana que passou, os marqueteiros do PT puderam respirar aliviados, ao menos quanto à Folha. Fatos bastante incômodos surgiram envolvendo o partido, mas o jornal, em muitos casos, tratou-os com bem menos relevância do que mereciam". Depois de enumerar suas críticas, Ajzenberg concluía assim: "A Folha precisa definir melhor o que quer no noticiário eleitoral. Entre o marketing e a vida concreta, entre questões de programa ou propostas e a retórica pura, onde está o equilíbrio? Como e o que priorizar? Sobre o PT, tema desta coluna: diferentemente das campanhas anteriores, o partido controla cidades e Estados de imenso peso político e econômico, com as possibilidades positivas e os riscos que isso implica. É esse o PT real, não o de Duda Mendonça".
Basta tirar essa coluna do esquecimento para ilustrar o caráter errático e as limitações de uma crítica que elege algumas poucas árvores para abater e vira as costas para a floresta, mas pretende ainda assim atingir a raiz do problema -no caso os princípios editoriais que orientam a Folha.
A campanha em curso já passou por várias fases e algumas reviravoltas. Observando o comportamento da Folha até agora, não há a meu ver como sustentar que tenha favorecido a candidatura Serra, a despeito de deslizes pontuais e eventuais erros de avaliação que se refletem nas páginas do jornal.
Cito três momentos problemáticos da trajetória do tucano nos quais a Folha claramente se destacou dos principais concorrentes. O primeiro deles, a revelação feita pelo jornal em março, em reportagem de Otávio Cabral e Fernanda da Escóssia, de que o Ministério da Saúde havia contratado a preço milionário os serviços da Fence, empresa especializada no ramo das escutas telefônicas. A reportagem foi publicada duas semanas após a eclosão do caso Lunus e praticamente um mês antes da renúncia da então pré-candidata Roseana Sarney, nas circunstâncias que todos conhecem.
No início de maio, quando uma reportagem de capa da revista "Veja" levantou suspeitas sobre a cobrança de propina na privatização da Companhia Vale do Rio Doce e trouxe Ricardo Sérgio de Oliveira, empresário, ex-tesoureiro e amigo de Serra, de volta ao centro do jogo político, novamente foi a Folha o jornal que, de longe, dedicou mais empenho e espaço editorial ao assunto, explorando exaustivamente as implicações políticas do episódio.
Também em maio, foi ainda a Folha que revelou, em reportagem de Fernando Rodrigues, que o mesmo Ricardo Sérgio, quando diretor do Banco do Brasil, havia participado de operações "heterodoxas" para reduzir a dívida de empresas do empresário Gregorio Marin Preciado, amigo e ex-sócio de José Serra.
Por fim, quando o tucano despencou nas pesquisas de opinião, em meados de agosto, e dava a impressão de estar fora do páreo, a Folha dedicou à crise de sua candidatura uma cobertura mais ampla e aprofundada que a dos demais jornais. Basta conferir.
Em relação à reportagem sobre Zeca do PT, na qual o ombudsman identificou, não entendo por que, "o episódio inaugural" do que ele batizou de "ciclo pró-Serra, subscrevo o que expõe abaixo o repórter Fabiano Maisonnave. Como bem disse o próprio ombudsman em maio, o PT real é o que governa Estados e cidades importantes do país, não a ficção do "Lulinha paz e amor" inventada por Duda Mendonça.
Numa campanha até agora bem-sucedida como a de Lula, na qual até intelectuais de prestígio se omitem em relação a escândalos envolvendo as administrações petistas e se calam diante das "alianças táticas" com liberais, Sarney e Quércia, espera-se de um jornal como a Folha que deixe um pouco de lado a fantasia publicitária e lance alguma luz sobre as contradições e problemas do discurso e dos governos petistas.
Isso posto, concordo que o jornal tenha se equivocado ao eleger como título do "Rastreamento Eleitoral" do dia 5 de setembro o enunciado "Pesquisa já mostra Serra com 21% e Ciro com 20%". A notícia principal era, de fato, a subida de quatro pontos de Lula, não a oscilação positiva do candidato tucano. Foi uma opção editorial infeliz, reconhecida posteriormente pela própria editoria, mas não um erro factual.
As demais observações feitas por Ajzenberg me parecem francamente irrelevantes ou descabidas. O ombudsman vê por exemplo uma "sutil ironia" no título da capa do caderno naquele dia: "Lula estreita laços com militares". Não há nem sutileza nem ironia, mas jornalismo. O mesmo vale para o título da reportagem sobre Ciro Gomes da mesma data- "Ciro recebe passagens e adesivos em jantar", cujo tom o ombudsman considerou "sutilmente depreciativo". Honestamente, não alcanço tanta sutileza interpretativa. Até a charge publicada naquela edição entrou na contabilidade dos favorecimentos a Serra.
Mas o ombudsman chegou ao extremo para sustentar sua tese quando disse que "não seria absurdo imaginar" que uma gafe feita por Serra e registrada pelo jornal ("Nossa meta é ter 100% das crianças de seis anos até o final do nosso primeiro manda...") teria ido à capa do caderno e merecido espaço na primeira página do jornal se o autor fosse Lula ou Ciro. Tal raciocínio é o que se poderia chamar de ataque especulativo aplicado ao jornalismo.
Não sou inimigo das minúcias -pelo contrário, partilho, também no caso do jornalismo, a convicção de que "Deus está nos detalhes", para abusar de uma imagem de Guimarães Rosa. Só não posso concordar que um retrato de momento, e ainda mais discutível como este, possa ser usado para sustentar uma tese que falseia o sentido geral da cobertura e coloca em dúvida um patrimônio editorial que a Folha construiu, sim, a duras penas.


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