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LIVROS
Obra sobre Tiradentes mostra importância dos mitos
MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO
"Tiradentes: O Corpo do Herói", de Maria Alice Milliet, constitui uma reconstrução admirável
da metamorfose do alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792) no principal vulto nacional.
"Ninguém nasce herói", diz a
historiadora. A construção do mito não se processa do dia para a
noite, antes o contrário: infame
aos olhos da Coroa, menosprezado pelo Império, só é reabilitado
pela República, que o converte em
emblema da nacionalidade.
A transformação exigiu uma
prolongada luta ideológica: durante o Império, a historiografia
subserviente a d. Pedro 2º não
cessava de desdenhar a Inconfidência Mineira. O conflito se tornou mais agudo com o avanço da
oposição republicana: a proposta
de construção de um monumento a Tiradentes suscitou a publicação, em 1873, da "História da
Conjuração Mineira", de Joaquim
Norberto, que visava desmoralizá-lo. Dizia que Tiradentes morrera não como um revolucionário, mas como um cristão eivado
de misticismo: "Prenderam um
patriota; executaram um frade!"
O tiro saiu pela culatra: a identificação do agitador republicano
com um mártir cristão assegurou
a Tiradentes uma popularidade
crescente. A Conjuração adquiriu, no imaginário popular, uma
dimensão que contrasta com seu
completo fiasco do ponto de vista
político. O mito descola-se da história para poder mudar seu curso:
a rebelião mais malograda, no
plano material, foi a que mais
contribuiu, no plano simbólico,
para a derrubada do Império.
O herói é a expressão concreta
de uma idéia. Como a biografia
do indivíduo real não se ajusta facilmente aos atributos nele projetados, a construção do mito pressupõe uma distância, temporal ou
espacial, em relação ao personagem: visto de perto, ninguém é
herói. Milliet analisa com mão segura as etapas da idealização do
alferes. O mito emergiu na literatura, com trabalhos de Castro Alves e Bernardo Guimarães. Mas
são as artes plásticas que consolidam sua imagem. Em 1890, Décio
Villares cria uma obra na qual Tiradentes tem as feições de Cristo.
Cada um dos artistas posteriores
reinventa o mito, atribuindo ao
herói uma qualidade diversa.
Essa reinterpretação prossegue
até hoje. Como lembra Milliet, cada época escolhe seu passado:
Fernando Collor costumava falar
na TV "em tom imperial, tendo
ao fundo um retrato de Pedro 1º";
já Itamar Franco "substitui imediatamente o quadro do imperador pelo busto de Tiradentes", para "assinalar o retorno a um discurso mais democrático".
A autora não se detém sobre o
período recente. Mas é possível
notar que a era FHC não tem sido
favorável ao herói. Personificação
da Independência, a figura de Tiradentes se torna cada vez mais
incômoda à medida que a própria
soberania nacional é colocada à
prova: a rápida desnacionalização
dos setores produtivos e a subordinação da política econômica ao
FMI dificilmente se coadunam
com a memória do inconfidente.
Essa dificuldade tem levado o
governo a escolher um passado
mais compatível com seu perfil:
daí a valorização das figuras de
Joaquim Nabuco, que se identificava mais com a Inglaterra do que
com o Brasil ("sou um liberal inglês no Parlamento brasileiro");
de Juscelino Kubitschek, que promoveu o ingresso de capital estrangeiro nos anos 50; e de Campos Salles, que firmou um acordo
humilhante com os bancos internacionais e implementou uma
política recessiva que lhe proporcionou, ao deixar o cargo, a maior
vaia que se tem notícia neste país.
Cada governo promove os heróis que lhe são mais convenientes. A própria eleição do presidente-sociólogo deve muito ao mito
do rei-filósofo, que remonta aos
gregos. Em 1994, ao comentar a
disputa entre FHC e Lula, certa
atriz comentou: "Nessa eleição temos duas opções: votar em Jean-Paul Sartre ou escolher um encanador" (parte de nossa intelectualidade acredita que torneiro mecânico é um homem que conserta
torneiras). A ilusão durou pouco:
queriam Sartre, elegeram FHC.
TIRADENTES: O CORPO DO HERÓI
Autora: Maria Alice Milliet
Editora: Martins Fontes
Páginas: 296
Preço: R$ 45,00
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