São Paulo, sábado, 15 de dezembro de 2001

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LIVROS

Obra sobre Tiradentes mostra importância dos mitos

MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO

"Tiradentes: O Corpo do Herói", de Maria Alice Milliet, constitui uma reconstrução admirável da metamorfose do alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792) no principal vulto nacional.
"Ninguém nasce herói", diz a historiadora. A construção do mito não se processa do dia para a noite, antes o contrário: infame aos olhos da Coroa, menosprezado pelo Império, só é reabilitado pela República, que o converte em emblema da nacionalidade.
A transformação exigiu uma prolongada luta ideológica: durante o Império, a historiografia subserviente a d. Pedro 2º não cessava de desdenhar a Inconfidência Mineira. O conflito se tornou mais agudo com o avanço da oposição republicana: a proposta de construção de um monumento a Tiradentes suscitou a publicação, em 1873, da "História da Conjuração Mineira", de Joaquim Norberto, que visava desmoralizá-lo. Dizia que Tiradentes morrera não como um revolucionário, mas como um cristão eivado de misticismo: "Prenderam um patriota; executaram um frade!"
O tiro saiu pela culatra: a identificação do agitador republicano com um mártir cristão assegurou a Tiradentes uma popularidade crescente. A Conjuração adquiriu, no imaginário popular, uma dimensão que contrasta com seu completo fiasco do ponto de vista político. O mito descola-se da história para poder mudar seu curso: a rebelião mais malograda, no plano material, foi a que mais contribuiu, no plano simbólico, para a derrubada do Império.
O herói é a expressão concreta de uma idéia. Como a biografia do indivíduo real não se ajusta facilmente aos atributos nele projetados, a construção do mito pressupõe uma distância, temporal ou espacial, em relação ao personagem: visto de perto, ninguém é herói. Milliet analisa com mão segura as etapas da idealização do alferes. O mito emergiu na literatura, com trabalhos de Castro Alves e Bernardo Guimarães. Mas são as artes plásticas que consolidam sua imagem. Em 1890, Décio Villares cria uma obra na qual Tiradentes tem as feições de Cristo. Cada um dos artistas posteriores reinventa o mito, atribuindo ao herói uma qualidade diversa.
Essa reinterpretação prossegue até hoje. Como lembra Milliet, cada época escolhe seu passado: Fernando Collor costumava falar na TV "em tom imperial, tendo ao fundo um retrato de Pedro 1º"; já Itamar Franco "substitui imediatamente o quadro do imperador pelo busto de Tiradentes", para "assinalar o retorno a um discurso mais democrático".
A autora não se detém sobre o período recente. Mas é possível notar que a era FHC não tem sido favorável ao herói. Personificação da Independência, a figura de Tiradentes se torna cada vez mais incômoda à medida que a própria soberania nacional é colocada à prova: a rápida desnacionalização dos setores produtivos e a subordinação da política econômica ao FMI dificilmente se coadunam com a memória do inconfidente.
Essa dificuldade tem levado o governo a escolher um passado mais compatível com seu perfil: daí a valorização das figuras de Joaquim Nabuco, que se identificava mais com a Inglaterra do que com o Brasil ("sou um liberal inglês no Parlamento brasileiro"); de Juscelino Kubitschek, que promoveu o ingresso de capital estrangeiro nos anos 50; e de Campos Salles, que firmou um acordo humilhante com os bancos internacionais e implementou uma política recessiva que lhe proporcionou, ao deixar o cargo, a maior vaia que se tem notícia neste país.
Cada governo promove os heróis que lhe são mais convenientes. A própria eleição do presidente-sociólogo deve muito ao mito do rei-filósofo, que remonta aos gregos. Em 1994, ao comentar a disputa entre FHC e Lula, certa atriz comentou: "Nessa eleição temos duas opções: votar em Jean-Paul Sartre ou escolher um encanador" (parte de nossa intelectualidade acredita que torneiro mecânico é um homem que conserta torneiras). A ilusão durou pouco: queriam Sartre, elegeram FHC.



TIRADENTES: O CORPO DO HERÓI
Autora: Maria Alice Milliet
Editora: Martins Fontes
Páginas: 296
Preço: R$ 45,00




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