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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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PAULO LACERDA

Delegado diz que instituição prioriza área de Inteligência e oferece ajuda para apurar caso Santo André

Diretor-geral da PF reclama da Justiça e da falta de verbas

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

IURI DANTAS
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O diretor-geral da Polícia Federal, delegado Paulo Lacerda, considera que os desdobramentos e os indícios de conotação política no assassinato do prefeito petista Celso Daniel justificam a entrada da corporação nas investigações do chamado caso Santo André.
"Nós nos colocamos à disposição para o que for necessário", disse Lacerda em longa entrevista à Folha, terça-feira passada, em seu gabinete em Brasília.
Avesso a entrevistas e a polêmicas públicas, Lacerda insinuou seguidas vezes críticas ao papel da Justiça no desfecho de ações contra o crime organizado. A cada uma delas, porém, ele se justificava e dizia que não queria atritos.
"Não quero amanhã inviabilizar o meu trabalho com a Justiça. Dependendo da forma que vocês colocarem, a gente não vai ter como realizar outros trabalhos, porque a gente depende do Judiciário", declarou.
"Todos nosso compromissos estão suspensos", disse Lacerda sobre as dívidas do órgão -até com fornecedores de luz e telefone-, situação que deixa a PF "extremamente vulnerável". O diretor-geral disse ter uma promessa de pagamento pelo governo: "Estou acreditando".
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à Folha.
 

Folha - Os focos de corrupção na polícia são conhecidos há anos, alguns há décadas. Por que só agora a Polícia Federal está agindo?
Paulo Lacerda -
Temos hoje feito um trabalho muito voltado para valorizar a Inteligência, a especialização do policial e usando algumas estratégias e metodologias de trabalho.

Folha - O carro-chefe é a escuta telefônica?
Lacerda -
É um instrumento importante, de vanguarda, mas não é só isso. O que temos feito? Antes, era: "Ah! Eu abri um processo. Se deu resultado, não sei". Agora, estamos interessados no resultado. Pode durar um mês, seis meses. Ou um ano e meio, como a Operação Anaconda.
Aquilo foi feito na área de Inteligência, na área reservada. Deixamos o funcionário continuando a roubar lá, fomos dando corda para ele e passamos a apurar no entorno dele. É apenas ele? Tem outros colegas? E o corruptor? Quem o mantém ali? Dali a pouco a gente começou a alargar a investigação de modo que de repente está com a quadrilha toda na mão. E aí desarticula.

Folha - É assim que começam essas grandes operações envolvendo juízes, policiais e até governadores?
Lacerda -
Vale tanto uma forma quanto a outra. Se você também pega uma denúncia contra um juiz e tem condição de investigá-lo -e muitas vezes é difícil, por conta da prerrogativa de função-, pode partir dele para pegar os demais. Um exemplo típico de uma investigação que veio de cima para baixo e que foi muito bem sucedida foi a investigação do [Fernando] Collor. Se algum dia alguém for verificar aqueles autos e toda a investigação, vai chegar à conclusão de que os elementos estavam todos ali.

Folha - Ou seja, o ponto fraco nessa rede é a Justiça?
Lacerda -
Segundo dito por vocês.

Folha - Com o sr. concordando.
Lacerda -
É. E eu concordando.

Folha - Não é frustrante para o policial fazer a investigação, produzir os autos, pegar quem está roubando e depois tudo dar em nada na Justiça?
Lacerda -
Isso tudo é algo que só com o tempo mesmo vai se resolver. Acho que hoje a sociedade está reclamando mudanças. É possível que essas coisas aconteçam.

Folha - O sr. está pregando uma cobrança da sociedade à Justiça brasileira?
Lacerda -
Não quero amanhã inviabilizar o meu trabalho com a Justiça. Dependendo da forma que vocês colocarem, a gente não vai ter como realizar outros trabalhos, porque a gente depende do Judiciário, mas acho que algumas coisas vocês mesmos vêem por aí.

Folha - A Polícia Federal e outras polícias estão cortando na própria carne. E a Justiça?
Lacerda -
Não sei. Os procedimentos da Justiça são muito fechados, embora o ministro Maurício Corrêa [presidente do Supremo Tribunal Federal] tenha dito na TV que são muito transparentes, abertos. A Secretaria de Reforma do Judiciário está reunindo elementos para passar ao Congresso. Estamos indo no caminho certo.

Folha - Há juízes presos. Isso é um fio da meada?
Lacerda -
Acho que sim.

Folha - O sr. ainda espera surpresas na Operação Anaconda? Novos nomes, novas prisões?
Lacerda -
A maior parte do que tinha que ser investigado já foi. Acredito que na semana que vem [nesta] encerramos completamente a análise do material. O que pode acontecer é, no meio daquele material, a própria mídia descobrir novos fatos ainda pouco explorados e alertar para eles. Foi muito tempo de investigação, há muita coisa.
Acredito que o Judiciário, no caso a desembargadora [Therezinha Cazerta], vai acolher algumas sugestões dos nossos delegados no sentido de tentar estabelecer uma conexão da Anaconda com alguns casos de São Paulo. Quais são esses casos? Os casos Ari Natalino e Lobão [contrabando] e os casos Toninho da Barcelona e Santur [doleiros].

Folha - O sr. está se referindo, por exemplo, à sentença do juiz Casem Mazloum absolvendo o ex-senador Luiz Estevão no caso de desvio de dinheiro do TRT-SP? Foi uma decisão muito controversa e, agora, não só o Mazloum é um dos juízes da Anaconda como surgiram documentos das empresas do ex-senador na casa do Rocha Mattos.
Lacerda -
Pode até haver alguma implicação legal nos casos que passaram nas mãos deles [dos juízes]. Acho que o tribunal deve se debruçar sobre todos os assuntos suspeitos. E até pedir, eventualmente, a ajuda da polícia e do Ministério Público para auxiliar nessa tarefa, que é árdua, complexa, grande. Estamos à disposição.

Folha - Esses casos que o sr. citou se referem a contrabando e a lavagem de dinheiro. O que falta é fechar o cerco sobre o dinheiro obtido pelos juízes?
Lacerda -
O cruzamento de todas essas informações pode avançar. É bom que se diga que o empenho do tribunal de São Paulo é algo novo. Não existia. Apesar de alguns problemas, há um entrosamento grande entre os órgãos e isso é muito importante para a sociedade. Em vez de ficar brigando, querendo saber quem é o protagonista da ação, temos de trabalhar juntos.

Folha - Parte do dinheiro desviado do TRT de São Paulo pode ter sido lavada por esses doleiros?
Lacerda -
Se eu fosse falar como cidadão, diria o que eu penso. Mas não devo tecer considerações, porque vai ser mera especulação. Daqui a pouco o Luiz Estevão está me processando aí pelo que eu vou falar.

Folha - Qual sua opinião sobre a escuta e a quebra do sigilo bancário e fiscal?
Lacerda -
Se você tiver uma polícia com credibilidade para usar esses instrumentos devidamente e com mecanismos de controle contra excessos, a tendência é o próprio delinquente -o homem do colarinho branco- pensar duas vezes.
Há que ser feito, mas devidamente autorizado por alguém, além da garantia de uso de equipamentos modernos. Não há como, tecnicamente, enxertar ou retirar alguma fala ali dentro. Aquilo ali vai para o Judiciário como foi gravado.

Folha - Na Operação Sucuri [em Foz do Iguaçu], os 23 agentes federais presos foram soltos porque a Justiça considerou as escutas como provas frágeis.
Lacerda -
Estou evitando falar de situações que venham a fragilizar as relações da polícia com o Ministério Público e o Judiciário.

Folha - A PF não está trocando investigação policial por mera escuta telefônica?
Lacerda -
Imagina vocês fazendo uma investigação que começa a se arrastar seis meses, oito meses. O patrão vai reclamar. O mesmo acontece conosco. O ideal é utilizar ao mesmo tempo todos os instrumentos disponíveis, mas o ideal a gente quase nunca atinge. A Anaconda foi um exemplo, pois durou um ano e meio e as cautelas ocorreram em função das pessoas envolvidas. A gente não podia errar ali.

Folha - Quando não há juízes envolvidos pode errar?
Lacerda -
Não é nesse sentido. Você vai fazer uma investigação que envolve um ministro de um tribunal superior, ou um ministro de Estado. Imagina o que vai acontecer se você erra. Não se pode desmoralizar uma instituição.

Folha - E o caso Celso Daniel?
Lacerda -
Confesso que não conheço detalhes, na época não estava na PF. As primeiras conclusões, de crime comum, de sequestro que resultou em morte, deixaram inúmeras dúvidas que agora estão aí sendo tiradas pelo Ministério Público, dizendo que não é bem assim.

Folha - A PF vai voltar ao caso?
Lacerda -
Aí é o tipo do assunto que nós só podemos entrar se requisitados.

Folha - Requisitados por quem?
Lacerda -
Pelo Judiciário competente. Vamos dizer que tenha conotação política, aí nós poderíamos até entrar no caso. Não é o que ficou evidenciado [no inquérito do ano passado], mas agora o Ministério Público do Estado apresenta novos elementos de prova. Lógico que nós temos que respeitar e aguardar as investigações, mas nos colocamos à disposição para o que for necessário.

Folha - Sempre se diz que a PF é muito partidarizada. Isso não atrapalha? No caso de Santo André, por exemplo?
Lacerda -
Nunca vi esse tipo de coisa na polícia. O que noto é um grupo de funcionários que quer estar bem com quem está mandando. Tivemos diretor-geral que, se desse para dar uma corridinha no palácio, entrar numa solenidade e tentar falar com o presidente... É do ser humano.

Folha - O caso Lunus [investigação da PF sobre Jorge Murad, marido de Roseana Sarney, na época pré-candidata do PFL à Presidência, que provocou a retirada de sua candidatura] não deixou uma grande interrogação no ar?
Lacerda -
Ah sim! Até acredito que ali tenha... Até acredito...

Folha - Que tenha o quê?
Lacerda -
Que tenha acontecido alguma coisa nesse sentido que vocês estão dizendo. Que alguém foi usado. Não sei se foi, eu nem estava aqui. Se é que houve, não foi no sentido político. É no sentido de gente que quer ficar bem com alguém.

Folha - Ficar bem com o candidato José Serra, por exemplo?
Lacerda -
Não estou dizendo que é, estou levantando uma hipótese. Se aconteceu, pode ser.

Folha - Com que recursos a PF faz operações enormes, se falta luz no prédio e os agentes estão em greve por melhores salários?
Lacerda -
Temos a promessa do governo de que nossas dívidas vão ser pagas e estou acreditando. Passamos o ano numa situação extremamente difícil, driblando não apenas nossos alvos, nossos inimigos no crime organizado.
Todos os nossos compromissos estão suspensos. A Embratel já ficou de desligar nossos sistemas de informática. Ficamos extremamente vulneráveis.

Folha - E a entrada das Forças Armadas no combate ao crime organizado?
Lacerda -
As Forças Armadas podem, sim, dar uma grande contribuição, com a logística e a estrutura. Em algumas ações pontuais, já temos tido um apoio muito importante. Essas grandes operações nossas, quando deslocamos 200, 300 policiais, a Aeronáutica sempre nos auxilia.

Folha - O sr. é a favor da lei do abate?
Lacerda -
Em princípio sim, mas é um risco enorme. Se a aeronave mostrasse um "Air Farc" [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], que são nossos fronteiriços, tudo bem. A gente metia fogo ali sabendo que são narcotraficantes. E quando não forem?


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