São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

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A REVANCHE DOS 300

Severino Cavalcanti está na vida pública há mais de 40 anos, trocou de partido seis vezes e participou de expulsão de padre do país

"Católico roxo", eleito personifica baixo clero

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

"Vossa Senhoria é homossexual ativo ou passivo?"
Todos sabiam da aversão de Severino Cavalcanti por "relações sexuais de homem com homem". Ainda assim, a pergunta do deputado soou deselegante. Brasília respirava uma atmosfera abafadiça naquela manhã de terça-feira, 6 de agosto de 1996. O ar parecia ainda mais espesso no corredor das Comissões da Câmara.
Ali, um grupo de parlamentares reunira-se para ouvir o depoimento de Toni Reis, então presidente do grupo gay "Dignidade", de Curitiba. Ele vivia há seis anos com outro homem. Daí ter sido convidado a comparecer à Câmara. Falava aos parlamentares sobre a conveniência da aprovação da proposta que previa o reconhecimento da união civil entre casais gays. Entre as vantagens, mencionou o reconhecimento judicial do direito à herança de parceiros homossexuais.
Atalhado por Severino, Toni Reis reagiu com humor: "Ah, senhor deputado, isso a gente conversa depois. A gente pode combinar um vinho".
A deputada Maria Elvira (PMDB-MG), que presidia o encontro, ainda tentou retomar a meada da conversa. "Senhor deputado, sua participação é com essa pergunta?!?!" Severino, porém, não se deu por achado: "Quero ouvir a resposta". E Toni Reis: "Temos que variar, sr. deputado. Não é só sexo penetrativo. Há outras formas de prazer". Severino não integrava formalmente a comissão. Define-se, porém, como um "eterno vigilante contra a pornografia e a libertinagem".
Eleito ontem presidente da Câmara, o pernambucano Severino Cavalcanti, 74, é a personificação daquilo que se convencionou chamar de "baixo clero". O país ainda não o havia notado. Mas ele está na vida pública há mais de 40 anos. Tornou-se prefeito de João Alfredo (PE), sua cidade natal, em 1964. Desde então, jamais ficou sem mandato. Seguindo as pegadas da ditadura militar, a quem sempre devotou fidelidade, foi deputado estadual por 28 anos.
Em 1980, Severino atraiu o então presidente João Baptista Figueiredo para uma causa pessoal. Elegera um padre italiano, Vito Miracapillo, como seu inimigo em Pernambuco. E convenceu o governo a expulsá-lo do país.
Severino diz ter defendido a expulsão o porque ele teria se recusado a celebrar uma missa pela Independência, num Sete de Setembro. O padre diz que esse foi um pretexto. Na verdade, o deputado o considerava "subversivo".
A partir de 1995, sob Fernando Henrique Cardoso, Pernambuco concedeu a Severino um mandato federal. Não saiu mais da Câmara. Está em seu terceiro mandato. Um de seus assessores dizia ontem que o chefe ascendeu à presidência da Câmara "comendo o mingau pelas beiradas".
Pleiteou e obteve cargos na mesa diretora da Câmara. Na Segunda Secretaria, seu último posto, esmerou-se na defesa dos interesses dos colegas. Alçou a "valorização do mandato" -leia-se aumento salarial e um imenso etc.- ao topo de sua plataforma de campanha. Assim tornou-se o terceiro homem na linha sucessória da República, substituto eventual de Luiz Inácio Lula da Silva.
O próprio Severino acha, segundo confidenciava ontem a amigos, que a presidência lhe caiu no colo porque o governo trata deputados com soberba. Esse seu ponto de vista é antigo. Em discurso de 7 de abril de 2003, disse que "os tecnocratas encastelados no poder parecem abominar os pedidos dos políticos". Defendeu a transformação do Orçamento da União em algo "impositivo", para que o governo não possa mais se negar a liberar verbas de emendas dos parlamentares.
O novo presidente da Câmara assume com orgulho a condição de despachante de interesses paroquiais. "Boa parte do nosso tempo é gasto em repartições do Poder Executivo, lutando para liberar os recursos de nossas prefeituras, naquilo que já foi chamado de trabalho de vereador federal. Menciono o termo com tranqüilidade. Em vez de nos diminuir, nos honra e engrandece."
Em diálogos reservados, Severino saboreava o triunfo ontem repetindo uma frase à Zagalo: "Eles vão ter que me engolir". Referia-se aos jornalistas. Acha que nunca teve da grande imprensa a atenção que merecia. A presidência da Câmara dá a Severino um púlpito que ele jamais teve. Agora sob holofotes, quer fazer da defesa da revitalização dos valores familiares o seu maior baluarte.
Para o deputado, "o papa João Paulo 2º é a figura maior do século 20". Severino se define como "católico roxo". Além de combater a união civil entre homossexuais, deseja restringir a exposição de cenas que contenham sexo e violência na televisão no intervalo de 6h às 22h e proibir o aborto, mesmo em casos de estupro e risco de morte da mãe.
Diz ele: "As nossas autoridades estão fechando os olhos aos malefícios que a permissiva programação das TVs vêm fazendo às nossas crianças e adolescentes e à família brasileira. Estão erotizando precocemente corpos infantis, incentivando a pedofilia, com novelas de grande audiência promovendo o sexo de crianças com adultos, alimentando a tara de adultos por adolescentes (...)".
A coerência do discurso moralista de Severino contrasta com sua fluidez partidária. Já trocou do partido seis vezes. Hoje, é filiado ao PP de Paulo Maluf. Sob o tucanato, sempre votou afinado com o governo. Os articuladores políticos de Lula também não têm do que se queixar.
O ministro Aldo Rebelo (Coordenação Política) passou em revista ontem a ficha de Severino. No essencial, sempre votou com o Planalto. Foi a favor, por exemplo, das reformas previdenciária e tributária.


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