São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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JANIO DE FREITAS

A ressaca compartilhada

Poucas histórias terminam assim, com todas as partes perdendo. Apesar disso, foi a melhor solução para a embrulhada, não por falta de vitorioso, mas pelo surgimento da sensatez onde as partes mostravam que, acima do confronto, confraternizavam na mesma combinação de desequilíbrio e prepotência.
Lula e o governo não se livrarão, ao menos por bastante tempo, das marcas pessoais e políticas que o episódio lhes apôs. É evidente que a percepção lúcida do ministro Márcio Thomaz Bastos convenceu Lula e sua infantaria a ver um pedido de desculpas na carta em que o correspondente Larry Rohter não o fez. Embora de validade apenas temporária, a manifestação inicial do Judiciário já fora bastante sugestiva da improbabilidade de concordância dos tribunais com a cassação do visto de Rohter. A derrota tendia a ser ainda maior.
Larry Rohter, por sua vez, não deixou de ser mentiroso, por ter recebido salvo-conduto preliminar do Judiciário, nem pelo recuo do governo na cassação de seu visto. A afirmação de que a bebida de Lula mobiliza a "consciência popular" e é hoje uma "preocupação nacional" não decorreu da falta de fontes de informação precisas. Constatar a existência ou não de tamanha preocupação dependeria só de observação pessoal. Rohter mora no Brasil e não viu tal "preocupação nacional", porque a bebida não está entre as tantas preocupações de amplitude nacional provocadas por Lula. Aquela Rohter inventou, para dar alguma motivação "objetiva" e "factual" à elaboração do seu texto difamante.
Rohter diz, na carta considerada aceitável por "The New York Times" - sem pedido de desculpas-, "jamais ter tido a intenção de ofender a honra" de Lula. Aí está a questão mais importante e, no entanto, relegada: a intenção da "reportagem" tão grosseiramente desmoralizante. Invenções são freqüentes na mídia norte-americana, como se viu em recente escândalo no próprio NYT, e o são especialmente quando se trata de política e instituições latino-americanas. Não são exclusividade de lá. A reportagem política em Brasília e a de assuntos policiais no Rio inclui vários especialistas no gênero. É um problema do jornalismo em toda parte.
Nem assim é imaginável que um repórter decida, gratuitamente, produzir difamações tão graves, leve mesmo um mês elaborando-as, e um editor do NYT as publique sem verificação alguma. Ainda mais no jornal que há tão pouco, sob o abalo da descoberta de reportagens mentirosas, demitiu seu diretor de redação e comunicou a adoção de novas e rígidas regras para repórteres e editores (no fundo, são as regras de sempre, que estavam, ou estão, desprezadas).
Há muito mais do que preconceito, no texto que o NYT publicou com grande destaque. Preconceito em relação a Lula há muito por aqui mesmo. Exemplo recente gerou até uma situação rara: divergência pública entre integrantes do "Globo".
Em dia bem apropriado para considerações sobre um presidente-operário, o Dia do Trabalho, dizia um artigo no jornal: "O presidente fala demais. De forma irrefletida. Diariamente, os jornais relatam suas impropriedades, escorregões e gafes. No jantar da bancada do PTB, ele fez algo mais perigoso: misturou uma dose de uísque com o improviso". E seguia-se o resultado da "mistura perigosa", apenas um punhado de louvações de Lula a si mesmo.
A clara afirmação de influência da bebida no comportamento presidencial foi mais surpreendente pela autoria, uma entusiasta da política econômica de Lula, do que pela presunção de uma obra do álcool. O também jornalista Ali Kamel observou a propósito, no artigo "FH e Lula", que não houve críticas a outros presidentes por suas óbvias bebericagens. O título explicitara a referência, e a conclusão era direta: "Isso cheira a preconceito". Míriam Leitão replicou, como Lula faria, com menção aos elogios recebidos (não só nesse caso, Míriam Leitão é, de fato, muito apreciada no mercado financeiro e no grupo de Palocci), e considerou a observação de Kamel "ofensiva e injuriosa à coluna". Como Rohter, não considerou assim o seu próprio texto e, ótimo, também Lula e Luiz Gushiken não o consideraram. Ou consideraram, mas, TV Globo, essas coisas, bem, deixa pra lá.
Larry Rohter não ficou no preconceito. Fez um artigo político. O que estava indicado desde o começo do caso com a inserção, logo na abertura do segundo parágrafo, da qualificação do governo Lula como "esquerdista". Pelas políticas internas, o governo é notoriamente conservador, para não dizer direitista, com os ônus descarregados sobre aposentadorias, salário mínimo, investimentos governamentais, e favorecimentos recordistas ao mercado financeiro. "Esquerdista", então, só se na política externa de conotação independente. Razão bastante e tradicional para que a chamada grande imprensa norte-americana tire das gavetas o cartaz "Tio Sam precisa de você".
Larry Rohter respondeu. E o governo Lula colaborou com seu propósito, dando expansão mundial ao assunto.



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