São Paulo, quarta-feira, 16 de junho de 2004

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RÉPLICA

Com todo o respeito, Danuza!

MARCIA CAMARGOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A carga de preconceito patente no artigo de Danuza Leão ontem neste jornal, ao criticar o arraial caipira promovido pelo presidente da República, estarrece quem se preocupa com a preservação da cultura e da identidade nacional. Por que a idéia de celebrar as bodas de pérola com uma festa autenticamente brasileira, comemorada de Norte a Sul no país inteiro, não é apropriada?
Qual o problema de o primeiro casal promover um tipo de confraternização realizada em cada escola, praça e rua, por pobres e ricos, nas capitais e no interior durante o mês de junho? Que outro "regionalismo bacana" eles poderiam ter encenado, já que esta é a época, por excelência, das fogueiras de São João? E por que seria um mico usar trajes típicos e pendurar bandeirinhas, se são esses os ingredientes que tornam a festa mais saborosa?
Quando a colunista resolve citar Jeca Tatu para personificar um "Brasil que lembramos com carinho, mas que não é a imagem a ser exportada", a emenda sai pior do que o soneto. Criado por Monteiro Lobato em 1914, o personagem, retrato da indolência e do atraso, nasceu do descontentamento do fazendeiro frente aos insucessos agrícolas no solo esgotado da sua fazenda no Vale do Paraíba. Quatro anos mais tarde, o escritor descobre que a apatia do caboclo advinha do subdesenvolvimento, da fome e da exclusão social. "Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie", afirma então. "É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte." Na década de 40, outra guinada, e Lobato passa a ver o camponês como agente da própria história. O velho Jeca Tatu virava Zé Brasil, um trabalhador rural em luta por terra, saúde e educação.
Por tudo isso, Danuza confunde "chique" com moderno. Participar de um "arraial" pode não ser o supra-sumo da sofisticação para quem se espelha em "Maiami". Mas revela sintonia com nossa cultura popular e com gostosos folguedos tradicionais que resistem aos bombardeios "roliudianos". Para a colunista, chique deve ser comemorar "Ralouim" fantasiado de abóbora, alimentando a eterna submissão que tão bem define os colonizados.
Além do desserviço à nossa cultura, considerando "brega" um evento vivo do folclore, ela ainda se arvora em porta-voz da nação. Expressar uma opinião particular, ainda que ultrapassada e esnobe, pode ser aceitável no caso de uma colunista. Mas dizer que "sempre se soube que a saudade de Fernando Henrique ia ser grande" é generalizar sentimentos personalíssimos.
Quanto a mim, prefiro um presidente "caipira", um homem que não se envergonha de suas raízes nem das tradições do seu povo, do que, com a licença do macaco Simão, uma Maria Antonieta dançando minueto no Planalto.
Caia na real, Danuza! Não estamos na Sorbonne, e isso aqui não é a corte de Luís 15. Ainda bem.


Marcia Camargos é jornalista, doutora em História Social pela USP e co-autora de "Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia" (Senac/1997).


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