São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 2002

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CAMPANHA

João Pedro Stedile afirma que petista está hoje no centro e que alianças feriram a "tradição e coerência" do partido

Discurso de Lula não é de esquerda, diz MST

PLÍNIO FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

Os discursos dos candidatos a presidente andam tão próximos que nem um tradicional aliado de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reconhece mais as diferenças entre as suas propostas e, por exemplo, as do tucano José Serra.
O economista João Pedro Stedile, 48, um dos dirigentes nacionais e o principal ideólogo do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), aceitou convite da Folha para tentar associar propostas dos candidatos para a reforma agrária a seus autores.
Por ironia, atribuiu ao presidenciável José Serra -candidato do governo ao qual tem combatido há oito anos- trecho do programa de Lula- a quem apóia desde a campanha de 1989.
Talvez não tenha sido mero acidente causado por uma pegadinha jornalística. Lula, o próprio admite, não é mais o mesmo, e Stedile não tem gostado de seu novo discurso. "Evidentemente que não é um discurso de defesa de um programa de esquerda ou das necessárias mudanças radicais de que nossa sociedade precisa. É um discurso de centro, no espectro ideológico", afirma.
Para um movimento que prega a radicalidade, "discurso de centro" é quase palavrão. O líder dos sem-terra assiste inquieto a aproximação de Lula a políticos como os peemedebistas José Sarney e Orestes Quércia e com o liberal José Alencar. "Esse tipo de aliança feriu a tradição de esquerda e a coerência do partido", critica.
Stedile continua a ser um defensor do não-pagamento da dívida externa e da dívida interna, mas também mudou. Incluiu nas aulas da militância do MST textos do deputado federal Antonio Delfim Netto (PPB), ex-czar da economia no regime militar, a quem elogia por fazer, "melhor que os economistas do PT", análises agudas da política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. "Veja a quem ponto chegamos: a esquerda tem que usar os economistas de direita para fazer uma crítica contundente ao modelo." A seguir, trechos da entrevista que concedeu à Folha, por meio de correio eletrônico.

 

Folha - Os discursos dos candidatos estão cada vez mais parecidos, inclusive na questão da reforma agrária. Há uma proposta melhor ou pior para a questão da terra?
João Pedro Stedile
- De fato, a diferença entre eles é muito pequena. E as semelhanças se devem ao fato de que o clima da campanha não levou a um debate das verdadeiras causas dos problemas brasileiros. Assim, na reforma agraria, todos preferiram apontar soluções paliativas para a pobreza, sem enfrentar com clareza que a sociedade brasileira, para ser democrática, precisa eliminar o latifúndio, ou seja, a concentração da propriedade da terra.

Folha - A inclusão da reforma agrária na agenda eleitoral é fruto dos movimentos sociais ou a uma ação exclusiva de marketing?
Stedile -
Nossa preocupação não é com o discurso dos candidatos. É com as forças sociais que cada um representa. É evidente que o Serra representa a continuidade desse modelo perverso que está aí. O Ciro, forças que querem pequenas mudanças e no essencial manter igual. O Garotinho não conseguiu articular em torno de si forças sociais representativas. O único candidato que representa as força sociais que querem mudanças reais neste país é o Lula.

Folha - Como o sr. avalia o atual discurso moderado de Lula?
Stedile -
O Lula está fazendo um discurso dentro dos paramentos de uma campanha eleitoral. Evidentemente que não é um discurso de defesa de um programa de esquerda ou das necessárias mudanças radicais que nossa sociedade precisa. É um discurso de centro, no espectro ideológico. Mas, como disse antes, o mais importante não é o discurso. O mais importante são as forças sociais que se aglutinam em torno deste ou daquele candidato. E a candidatura Lula tem o símbolo da mudança. Vou votar no Lula e, embora não haja deliberações de congressos ou instâncias, toda nossa militância social, tanto do MST, como dos demais movimentos da Via Campesina, está engajada na campanha de Lula.

Folha - O que o sr. achou das alianças do PT com o PL e com políticos como José Sarney, Orestes Quércia, Luiz Antônio de Medeiros?
Stedile -
Isso é uma questão eleitoral do PT. Nós do MST já temos problemas suficientes para nos envolvermos nos problemas dos outros, embora, como militante, a gente saiba que esse tipo de aliança feriu a tradição de esquerda e a coerência do partido. Certamente ela terá consequências positivas e negativas. Mas só a história dirá qual foi vitoriosa.

Folha - Por que o MST não está fazendo campanha aberta para o Lula? Houve a negociação de um pacto para suspender as invasões para não prejudicar o petista?
Stedile -
A cada dois anos, no período eleitoral, todas as lutas sociais se arrefecem. Não só no campo, mas na cidade também. A diminuição de ocupações de terra nesse período não é típico de 2002 nem de qualquer acordo. E ocupações de terra não acontecem por vontades de dirigentes. Acontecem pela conjuntura e correlação de forças de cada local.

Folha - Lula já deu a seguinte declaração: "Se o companheiro João Pedro Stedile repetir na campanha de 2002 o que disse em 1998, não estará me ajudando. Ele disse: "Se o companheiro Lula ganhar as eleições, não estarei na posse dele, porque estarei ocupando todas as terras do Brasil". Ele não ajudou." Onde o senhor vai estar no dia 1º de janeiro, se Lula ganhar as eleições?
Stedile -
Essa expressão que usei não foi no sentido de bravata ou de desafiar um futuro governo Lula. Foi no sentido pedagógico de defender e esclarecer para nossa militância e todo povo sofrido que não basta eleger um novo governo. É necessário que o povo se organize e lute por mudança sociais. Nenhum governo, vai fazer mudanças sociais apenas por vontade própria.

Folha - Em junho, o PT aprovou documento do qual constava o objetivo de assentar 500 mil famílias em quatro anos. Para evitar polêmica, retirou a menção. Em 94, a promessa de Lula era assentar 800 mil famílias. Em 1998, 1 milhão. Como o sr. vê esse recuo?
Stedile -
Isso não é recuo. Isso são apenas formas diferenciadas de quantificar ou não metas no programa. De novo, para nós, pouco importa o que está escrito nos programas. No Brasil, programas eleitorais são meros exercícios de retórica política.

Folha - Se a eleição fosse hoje, Lula venceria. O sr. reafirmaria o seguinte recado que mandou em um seminário internacional aos investidores estrangeiros: "Não venham para o Brasil, porque vocês vão perder dinheiro. Mais cedo ou mais tarde, vamos recuperar a soberania nacional"?
Stedile -
Isso não é um recado, é uma tese. O Brasil deve ter um governo que repudie a entrada de capital estrangeiro especulativo e que vem aqui apenas comprar nossas empresas (para pegar o lucro), aplicar na Bolsa e viver de juros. Devemos aceitar o capital estrangeiro quando vier aqui aplicar na produção e se comprometer a reaplicar o lucro no Brasil. Que os capitais especulativos vão perder dinheiro eles sabem pela lógica do mercado. Não precisam ser ameaçados por mim.

Folha - O sr. disse a seguinte frase: "Para ser justo, as críticas do Delfim nos ajudam mais do que o próprio PT tem ajudado". O sr. poderia explicá-la?
Stedile -
O que disse foi que ultimamente o economista Delfim Netto estava sendo mais crítico do modelo agrícola e seus efeitos perversos para a sociedade brasileira do que alguns economistas do PT. E continuo com a mesma opinião. O último ensaio que o professor Delfim Netto fez sobre o modelo econômico de FHC é uma análise contundente, com uma impressionante clareza. Estamos usando esse texto como estudo na nossa militância para entender por que o modelo econômico implantado pelo governo FHC está falido. Ele prova, com números e análises, como o governo subserviente de FHC colocou a economia brasileira em um beco sem saída. A vulnerabilidade externa nos obriga agora a enviar por exterior US$ 1 bilhão por semana. Prova como em oito anos o Brasil virou exportador de capitais. Veja a quem ponto chegamos: a esquerda tem que usar os economistas de direita para fazer uma crítica contundente ao modelo. Digo isso como economista-aprendiz.

Folha - No plebiscito de 2000, o sr. defendeu o não-pagamento da dívida externa e já se disse favorável à limitação do pagamento dos juros da dívida interna. Como economista, o sr. pode explicar sua posição sobre esses temas?
Stedile -
A dívida externa não é uma questão moral: quem deve, paga. A dívida externa é um mecanismo que o capital internacional criou para explorar os países do Terceiro Mundo. No período colonial, nos exploravam roubando nossos recursos naturais. No século 20, nos exploraram vindo aqui com suas fábricas explorar nossa mão-de-obra.
No tocante à dívida interna, é quase igual. O Orçamento da União está refém dos bancos. O governo usa US$ 140 bilhões por ano apenas para pagar juros. É preciso acabar com isso. Como? Existem muitas formas. Mas é preciso que se discuta isso. O que todos os economistas sérios estão dizendo é que se não resolvermos esses dois gargalos estruturais, o Brasil será a nova Argentina, logo aí no primeiro semestre de 2003. Aguardem.

Folha - O MST está na organização do plebiscito sobre a Alca. Em que isso pode mudar a negociação?
Stedile -
A Alca não é um acordo comercial qualquer, ou bilateral, que vai trazer benefícios aos dois lados. A Alca é um plano estratégico das 200 maiores corporações norte-americanas e do governo dos EUA para tomarem conta de nossas riquezas. É preciso dizer ao governo norte-americano: não queremos a Alca. E pronto.

Folha - O sr. admite que há poucos negros no MST e atribui o fato à formação agrária brasileira. Não é um reforço à segregação racial?
Stedile -
O MST se orgulha de ser um movimento que tem contribuído para resgatar a cidadania e as oportunidades para os pobres que são também negros. Mas infelizmente as elites brasileiras condenaram historicamente a população negra à exclusão. Primeiro foram os 400 anos de escravidão e, depois, com a Lei de Terras de 1850, evitaram que os escravos libertos se transformassem em camponeses. E por isso a maior parte teve que migrar das fazendas para as cidades portuárias. Daí que temos uma pequena parcela de população negra entre os camponeses sem terra.

Folha - A Folha publicou uma série de reportagens sobre irregularidades apontadas pelo Ministério Público no financiamento de cooperativas ligadas ao MST, incluindo a cobrança de pedágios. Por que ninguém foi punido?
Stedile -
A Folha se prestou ao jogo de propaganda do governo FHC. Os sem-terra não se mobilizam por ideologia, mobilizam-se por necessidades sociais. Cada vez que fizemos mobilizações nacionais, o governo FHC, em vez de resolver os problemas, adotava mecanismos de propaganda, de uso dos meios de comunicação para tentar derrotar politicamente o MST. Numa dessas mobilizações, inventou essa de pedágio, de desvio de cooperativas. Apesar dos inúmeros inquéritos, não tenho notícias de que algum virou processo, porque, de fato, não houve desvio de dinheiro público. É claro que nossas cooperativas, como aliás a maioria, mesmo dos fazendeiros, sempre têm problemas administrativos. E isso se procura corrigir.


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