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JANIO DE FEITAS
Perigo à vista
A estrutura de distorção do
processo eleitoral que está
posta em ação não tem paralelo
nem na campanha de Fernando
Collor. Nesta, o dispositivo era
composto pela mídia e por grandes empresários e suas fortunas.
Era particular, portanto. Na
atual, se o dispositivo particular
não tem (ainda?) a mesma intensidade, há o envolvimento do poder público, com participação que
excede muito o seu uso na reeleição e transgride e ameaça o Estado de Direito democrático.
Uma ou outra coincidência casual é sempre possível. Mas o acúmulo de incidências, algumas
complexas e todas no mesmo sentido, só pode resultar do funcionamento articulado de uma estrutura ativada com propósitos
determinados. É o que se constata
com a perfeita coincidência de
atos e fatos que interligam, como
partes de uma mesma circunstância, certa representação do Judiciário federal, outra da Procuradoria da República, Ministério da
Justiça, Polícia Federal, BNDES,
Ministério da Saúde, uma empresa especializada em ("detectar")
escutas telefônicas e a Presidência
da República com seus fax.
Nada do que o Ministério da
Saúde disse sobre a contratação
da Fence Consultoria Empresarial merece crédito. Suas pretensas explicações não se conciliam
nem com o que diz o próprio representante da empresa, coronel e
ex-SNI Enio Fontenelle, sobre o
contrato feito na gestão de José
Serra na Saúde, alegadamente
para vistoria de possíveis escutas
clandestinas em instalações do
ministério.
Atual ministro e secretário executivo do ministério ao tempo de
Serra, Barjas Negri emitiu nota
oficial afirmando que o valor do
contrato multiplicou-se por seis,
dois meses antes da mudança de
ministro, porque a frequência de
verificações aumentou. De mensais, passaram a semanais. O custo, para os cofres da Saúde, passou de R$ 308.670,84 por ano
(média mensal de R$ 25.722,57),
segundo o contrato firmado em
abril de 99, para R$ 1.872.576,00
(média mensal de R$ 156.048,00),
conforme o contrato assinado em
19 de dezembro de 2001.
Ao passar de verificações mensais a semanais, a lógica levaria o
valor do contrato a subir quatro
vezes, de R$ 308.670,84 para R$
1.234.683,36. Há, pois, R$
537.892,64 não explicados pelo
contrato para "varredura" no
Ministério da Saúde.
O número mesmo de "varreduras" indicado pelo governo é falso. Em tranquilo esclarecimento
dado à Folha na tarde de sexta-feira, o coronel Fontenelle negou
a ocorrência de periodicidade regular entre vistorias. A referência
à periodicidade mensal, no primeiro contrato, deveu-se a conveniências de contratos no serviço
público. No contrato feito dois
meses antes da saída de Serra, a
palavra "mensal" foi retirada do
texto. Apenas "foi pedida", mas
sem menção no contrato, "mais
frequência de verificações", nas
palavras do coronel.
As "varreduras" eram "sem periodicidade definida" e, esclarece
Fontenelle, não abrangiam todos
os pontos de cada vez. "Segunda-feira e terça, alguns. Mais tarde,
outros. Não existe "varredura" todos os dias."
Barjas Negri deu a dimensão
desse trabalho: "600 itens" de verificação a R$ 260,08 por item, o
que leva aos montantes anual e
mensal do novo contrato. Observação inicial: o coronel Fontenelle
diz que "não verifica todos os
itens a cada inspeção", mas um
grupo de cada vez, "até para não
despertar suspeita". Logo, não caberia multiplicar os 600 itens por
seu valor unitário para fixar ou
explicar o valor do contrato. Mais
uma demonstração, portanto, da
impropriedade do alto valor considerando-se apenas o serviço das
"varreduras" referidas.
Outra observação sobre os itens
a serem verificados: os 600 citados
por Barjas Negri são produto de
uma conta de chegar, para bater
no total do contrato. O número é
falso. "São mais ou menos uns 80
itens", esclareceu o coronel Fontenelle, já 24 horas depois de divulgada a nota de Barjas Negri com
o número fabricado.
Ainda em seu atabalhoado e
duvidoso socorro a quem o fez
ministro, Barjas Negri diz que a
"Abin [Agência Brasileira de Inteligência, o SNI criado pelo atual
governo" e a Polícia Federal não
teriam condições de fazer varreduras quinzenais ou mensais",
por falta de pessoal e de estrutura.
É mentira. Palavras do coronel
Fontenelle: "Para fazer [varredura" de um telefone, um minuto e
meio. Para fazer uma sala, meia
hora". (E acrescenta o pormenor
técnico: "Sempre fora do expediente, de preferência à noite").
Abin e Polícia Federal têm tal habilitação para "varreduras", seja
em que periodicidade for, que são
as incumbidas de fazê-las na própria Presidência da República.
Isso tudo é significativo, além
dos seus aspectos administrativamente negativos, porque há forte
evidência de escuta clandestina
de telefones em São Luís, onde a
apreensão do dinheiro de mil versões deu-se menos de 48 horas depois de sua chegada ao cofre que
abrigava.
A Polícia Federal e o Ministério
da Justiça, que a controla ou deve
fazê-lo, proporcionam a incidência de vários fatos no sentido de
sua participação eleitoral. "Não
falo política nem falo sobre política enquanto estiver no comando
da PF", diz o diretor da Polícia
Federal. Faz e fala, sim. Em setembro passado, filiou-se ao
PSDB de José Serra, o que constitui o mais explícito ato formal de
definição política e partidária.
Nos últimos meses, o delegado
Agílio Monteiro Filho tem viajado em frequentes fins de semana
para Belo Horizonte, se tornou
notório o seu propósito de candidatar-se a deputado federal.
O repentino afastamento do delegado federal que presidia o inquérito sobre irregularidades na
privatização de telefônicas
-aquelas reveladas por gravações em que Fernando Henrique,
Mendonça de Barros e outros
combinam ingerências manipuladoras no processo de licitação- é mais do que um fato estranho. É um fato cujos componentes todos conduzem, forçosamente, à dedução de motivações
políticas e eleitorais. Notabilizado
como arrecadador de dinheiro
para as campanhas de José Serra,
Ricardo Sérgio de Oliveira tem
posição muito delicada no inquérito. E não é o único dos identificados com Serra nessa história.
Em artigo na Folha de anteontem, o ex-ministro Saulo Ramos
demonstrou a violência institucional, contra o Código de Processo Penal e contra a própria Constituição, do Ministério da Justiça
e da Polícia Federal ao praticarem a operação no escritório da
empresa Lunus, de Roseana Sarney e Jorge Murad.
"Em diligência desse tipo, quem
cumpre mandado judicial deprecado é oficial de Justiça (art.355,
pr. 2º, do CPP). E a polícia, a da
comarca (de São Luís, no caso)
somente pode e deve ser requisitada se houver resistência contra a
busca e a apreensão." (...) "O
mandado judicial, expedido em
Palmas, estava em carta precatória ao juiz do Maranhão e era este
quem deveria, se necessário, requisitar a polícia federal de lá para cumprimento da diligência." A
operação foi toda feita pela Polícia Federal, e não por oficial de
Justiça, e com policiais de Brasília
especialmente escalados por Agílio Monteiro Filho.
Os procedimentos dessa operação deixam, também, uma lamentável interrogação sobre a
conduta dos representantes da
Procuradoria da República no inquérito da Sudam. Não por considerarem necessária a apreensão
no escritório da Lunus, cujas suspeitas de participação nas fraudes
e desvios financeiros da Sudam
precisam ser apuradas sem reserva alguma, nem mesmo a do período eleitoral. Mas ficaram indícios de que colaboração de procuradores com as numerosas irregularidades praticadas na operação, e ainda depois dela, com implicações eleitorais cujos benefícios já estão expostos por pelo menos três pesquisas de opinião do
eleitorado.
Em outra linha de presença do
poder público, uma peculiaridade
está impossibilitando a aceitação
de motivos técnicos do BNDES
para a concessão de R$ 284 milhões à Globo Cabo. É que a empresa acumula alto prejuízo e não
tem evidenciado condições de
cumprir compromissos inclusive
com o BNDES mesmo. A atitude
do banco, a esta altura, tem implicação eleitoral evidente a cada
dia e, dados os precedentes, com
esperável intensificação.
Entre jornalistas, comentam-se
muito as pressões que José Serra
tem feito sobre alguns deles, mais
diretamente envolvidos com notícias e comentários a ele referentes, mesmo que ainda não publicados. É daí, em grande parte,
que vêm as menções, em número
crescente, ao seu autoritarismo e
ambição desmedida de poder.
O uso das engrenagens do poder
está mais desabrido e intenso do
que jamais. Se no começo é assim,
depois não será menos incondizente com os direitos e a legalidade que tanto têm custado a este
país.
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