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JANIO DE FREITAS
O Cesar da crise
O quadro era feito das mais
claras e tristes certezas: há
muito tempo os grandes hospitais
geridos pela prefeitura do Rio
agravavam mais e mais, já em extremos impensáveis, o seu caráter
de representações do horror. As
dúvidas, em torno do problema,
recaíram na sua origem e, portanto, nas responsabilidades.
A situação chegou a tal absurdo, que ficou difícil imaginar Cesar Maia tomado de tamanha incúria, para dizer o menos. Mas
suas exibições de insensatez há
anos não dependem mais de planos para fazer no Rio um novo
Museu Guggenheim, Olimpíada,
Jogos Pan-Americanos, e outros
desatinos ou negócios, menores e
maiores. Enquanto a cidade necessita de providências urbanas
elementares.
De sua parte, o governo Lula já
deu demonstração de que é capaz
das atitudes antiéticas mais inesperadas, se nem a palavra dada a
quem o elegeu lhe merece respeito. Agora mesmo, no começo deste mês, o governo projetou o corte
de R$ 1,2 bilhão na verba anual
da Saúde, em favor do propagandístico Bolsa-Família. Não surpreenderia se o médico Antonio
Palocci repetisse a sua ânsia de
amputação, ao deparar uma verba social, quando deveriam ocorrer as transferências de recursos
devidos pelo governo federal para
seus hospitais administrados pela
prefeitura carioca.
A intervenção nos hospitais eliminou as dúvidas. Cesar Maia
tem confiado, para muitos efeitos,
em suas sólidas relações com com
o quase monopólio global da informação de TV, rádio e jornal no
Rio. Mas a intervenção constituiu-se em fato com força para
impor manchetes, ocupar espaços
nobres, abrir os hospitais e expor
a realidade que neles se divide entre o drama e a tragédia. E apareceram cifras.
O que surgiu, como desordem,
desperdício, incúria, improbidade, é matéria para o Código Penal: esse horror tinha como objeto
a dor, a vida e a morte. De milhares de pessoas a cada dia, dezenas
de milhares a cada mês, milhões a
cada ano. E, ainda que a auditoria em curso conclua pela falta ou
pelo atraso de certas remessas de
recursos, nada aconteceu por falta de dinheiro, fosse federal ou
municipal. Tanto que uma das
primeiras comprovações, entre as
relativas a recursos financeiros,
foi a de que R$ 30 milhões destinados à Saúde no Rio foram destinados à aplicação financeira. O
secretário de Saúde, Ronaldo Cesar Coelho, era co-proprietário e
diretor de banco.
No dia mesmo, 4 de outubro de
2004, em que foi proclamado reeleito no primeiro turno, Cesar
Maia dava longa entrevista:
"Aplausos são fáceis de serem ouvidos. Mas eu ouvi as vaias também, na área de saúde e na de
transporte. Se eu tive 1,7 milhão
de votos, o outro lado também teve [Cesar Maia venceu por 7.000
votos]. As críticas me pareceram
perfeitas. Temos absoluta consciência de que precisamos superar a crise na saúde e oferecer um
sistema de transporte mais adequado à população". Crise na
saúde.
Menos de um mês depois, as 27
unidades da rede municipal de
saúde ficaram sem comida por
vários dias, e o hospital do imenso
Jacarepaguá, o Cardoso Fontes,
suspendia o atendimento ambulatorial por absoluta falta de condições. Se havia, e provavelmente
havia, o que discutir e negociar
com o governo federal, não consta
que a prefeitura do Rio tenha jamais tentado a sério. Sua agressividade ostensiva, nas eventualidades em que abordou o tema, estavam infiltradas da condição assumida por Cesar Maia, com a
pior repercussão no seu eleitorado, tão logo reeleito: pré-candidato do PFL à Presidência, com o
programa de viagens imediatas
por todo o país para fazer-se conhecido.
Bem, Cesar Maia já conseguiu
ficar mais conhecido em âmbito
nacional. Mas ficou ainda mais
incompreensível. Ainda mais, está dito, porque há muito deixou
de sê-lo. Não há como compreender um administrador de indiscutível preparo e experiência, que
diz o seguinte (novembro de
2004), a propósito da construção
de uma Vila Olímpica para o pretenso Pan-Americano de 2007,
sua obsessão:
"Normalmente, a infra-estrutura seria de responsabilidade da
construtora [Agenco, que constrói
os prédios em área do município e
depois os venderá como seus].
Mas a CEF entendeu que os custos excederiam seus critérios de financiamento. O orçamento foi estimado pela Agenco. Vou tentar
assegurar recursos na própria
CEF, no BNDES, com emendas no
Orçamento da União." O estimado pela construtora que "normalmente" seria responsável pelo recursos, no entanto transformados
em obrigação para os cofres da
Prefeitura, são R$ 232 milhões.
Simples como deixar hospitais e
doentes relegados.
O que aí está dito não é coisa
que um administrador nem sequer pense.
Já que não pode haver intervenção contra o Pan-Americano, a
que o governo federal enfim decidiu fazer nos hospitais da prefeitura é, sem dúvida, muito benfazeja. Cesar tentou apresentá-la
como resultado de velha reivindicação sua. O horror de abandono,
desperdício e sofrimento já constatados sufocou seu truque político.
A hipótese, bastante encontrável, de que o governo federal tenha feito a intervenção contra
um declarado concorrente à Presidência, parece incapaz de resistir a este contra-argumento: se
feita para liquidar um concorrente, a intervenção não se limitaria
aos hospitais, porque a gravidade
das condições conhecidas autoriza muito mais.
A única ressalva, aliás indispensável: o corpo médico dos hospitais em questão, tomado como
um todo, lutou bravamente desde
o começo da crise para contê-la.
Se os pacientes lhes devem muito,
Cesar Maia lhes deve muito mais.
No mínimo, sua atual sobrevivência política.
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