São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 2005

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JANIO DE FREITAS

O Cesar da crise

O quadro era feito das mais claras e tristes certezas: há muito tempo os grandes hospitais geridos pela prefeitura do Rio agravavam mais e mais, já em extremos impensáveis, o seu caráter de representações do horror. As dúvidas, em torno do problema, recaíram na sua origem e, portanto, nas responsabilidades.
A situação chegou a tal absurdo, que ficou difícil imaginar Cesar Maia tomado de tamanha incúria, para dizer o menos. Mas suas exibições de insensatez há anos não dependem mais de planos para fazer no Rio um novo Museu Guggenheim, Olimpíada, Jogos Pan-Americanos, e outros desatinos ou negócios, menores e maiores. Enquanto a cidade necessita de providências urbanas elementares.
De sua parte, o governo Lula já deu demonstração de que é capaz das atitudes antiéticas mais inesperadas, se nem a palavra dada a quem o elegeu lhe merece respeito. Agora mesmo, no começo deste mês, o governo projetou o corte de R$ 1,2 bilhão na verba anual da Saúde, em favor do propagandístico Bolsa-Família. Não surpreenderia se o médico Antonio Palocci repetisse a sua ânsia de amputação, ao deparar uma verba social, quando deveriam ocorrer as transferências de recursos devidos pelo governo federal para seus hospitais administrados pela prefeitura carioca.
A intervenção nos hospitais eliminou as dúvidas. Cesar Maia tem confiado, para muitos efeitos, em suas sólidas relações com com o quase monopólio global da informação de TV, rádio e jornal no Rio. Mas a intervenção constituiu-se em fato com força para impor manchetes, ocupar espaços nobres, abrir os hospitais e expor a realidade que neles se divide entre o drama e a tragédia. E apareceram cifras.
O que surgiu, como desordem, desperdício, incúria, improbidade, é matéria para o Código Penal: esse horror tinha como objeto a dor, a vida e a morte. De milhares de pessoas a cada dia, dezenas de milhares a cada mês, milhões a cada ano. E, ainda que a auditoria em curso conclua pela falta ou pelo atraso de certas remessas de recursos, nada aconteceu por falta de dinheiro, fosse federal ou municipal. Tanto que uma das primeiras comprovações, entre as relativas a recursos financeiros, foi a de que R$ 30 milhões destinados à Saúde no Rio foram destinados à aplicação financeira. O secretário de Saúde, Ronaldo Cesar Coelho, era co-proprietário e diretor de banco.
No dia mesmo, 4 de outubro de 2004, em que foi proclamado reeleito no primeiro turno, Cesar Maia dava longa entrevista: "Aplausos são fáceis de serem ouvidos. Mas eu ouvi as vaias também, na área de saúde e na de transporte. Se eu tive 1,7 milhão de votos, o outro lado também teve [Cesar Maia venceu por 7.000 votos]. As críticas me pareceram perfeitas. Temos absoluta consciência de que precisamos superar a crise na saúde e oferecer um sistema de transporte mais adequado à população". Crise na saúde.
Menos de um mês depois, as 27 unidades da rede municipal de saúde ficaram sem comida por vários dias, e o hospital do imenso Jacarepaguá, o Cardoso Fontes, suspendia o atendimento ambulatorial por absoluta falta de condições. Se havia, e provavelmente havia, o que discutir e negociar com o governo federal, não consta que a prefeitura do Rio tenha jamais tentado a sério. Sua agressividade ostensiva, nas eventualidades em que abordou o tema, estavam infiltradas da condição assumida por Cesar Maia, com a pior repercussão no seu eleitorado, tão logo reeleito: pré-candidato do PFL à Presidência, com o programa de viagens imediatas por todo o país para fazer-se conhecido.
Bem, Cesar Maia já conseguiu ficar mais conhecido em âmbito nacional. Mas ficou ainda mais incompreensível. Ainda mais, está dito, porque há muito deixou de sê-lo. Não há como compreender um administrador de indiscutível preparo e experiência, que diz o seguinte (novembro de 2004), a propósito da construção de uma Vila Olímpica para o pretenso Pan-Americano de 2007, sua obsessão:
"Normalmente, a infra-estrutura seria de responsabilidade da construtora [Agenco, que constrói os prédios em área do município e depois os venderá como seus]. Mas a CEF entendeu que os custos excederiam seus critérios de financiamento. O orçamento foi estimado pela Agenco. Vou tentar assegurar recursos na própria CEF, no BNDES, com emendas no Orçamento da União." O estimado pela construtora que "normalmente" seria responsável pelo recursos, no entanto transformados em obrigação para os cofres da Prefeitura, são R$ 232 milhões. Simples como deixar hospitais e doentes relegados.
O que aí está dito não é coisa que um administrador nem sequer pense.
Já que não pode haver intervenção contra o Pan-Americano, a que o governo federal enfim decidiu fazer nos hospitais da prefeitura é, sem dúvida, muito benfazeja. Cesar tentou apresentá-la como resultado de velha reivindicação sua. O horror de abandono, desperdício e sofrimento já constatados sufocou seu truque político.
A hipótese, bastante encontrável, de que o governo federal tenha feito a intervenção contra um declarado concorrente à Presidência, parece incapaz de resistir a este contra-argumento: se feita para liquidar um concorrente, a intervenção não se limitaria aos hospitais, porque a gravidade das condições conhecidas autoriza muito mais.
A única ressalva, aliás indispensável: o corpo médico dos hospitais em questão, tomado como um todo, lutou bravamente desde o começo da crise para contê-la. Se os pacientes lhes devem muito, Cesar Maia lhes deve muito mais. No mínimo, sua atual sobrevivência política.


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