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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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ELIO GASPARI

Com vocês, a veloz e felpuda herança bendita

Eremildo é um idiota. Acredita em tudo que o governo diz. Está convencido de que já começou o espetáculo do crescimento e crê que só a isso se pode atribuir o fato de o governo estar preocupado com os metalúrgicos australianos e os lavradores egípcios. Lula, ex-presidente de um sindicato de operários, tem a seu serviço um lote de carros australianos da marca Ômega. Mais: seus cortesãos decidiram que ele e seus convidados, no Alvorada ou na Granja do Torto, devem usar roupões de algodão egípcio.
Os Ômegas que servem aos grão-petistas custam R$ 134 mil para quem quiser comprá-los. São inteiramente montados na Austrália, do pneu à antena. Vendem-se no Brasil menos de 500 por ano.
Lula não é o primeiro monarca a usar esses carros nem eles foram comprados com dinheiro da Viúva. FFHH usava um e continua usando-o. Alguns ministros do PT federal também circulam em Ômegas australianos. O companheiro Antonio Palocci Filho é um deles.
A General Motors empresta nove Ômegas à Presidência, a custo zero. Ela e outras montadoras cedem também carros de fabricação nacional, que são maioria na frota de 23 veículos emprestados ao Planalto.
O presidente brasileiro acha natural andar num carro da GM australiana quando a GM brasileira, por falta de demanda, quer demitir trabalhadores e encostou 600 deles. Se Lula mandasse trocar todos os Ômegas de seu governo por modelos fabricados em Pindorama, empregaria pelo menos uns cem brasileiros por um ano. Pode-se argumentar que o presidente precisa de um carro grande. Isso não explica que outros ministros sigam sua trilha. O país que ele preside não fabrica carros do tamanho dos egos do Planalto. Paciência. Se a história de importar aquilo que o Brasil não produz tivesse prevalecido no tempo de JK, Lula estaria até hoje vendendo tapioca em Santos. O presidente não ficaria menor se andasse em modelos de fabricação nacional.
Eremildo acredita que Lula não providencia essa troca porque quer ajudar o governo do primeiro-ministro John Howard, que administra uma taxa de desemprego de 6,2% (menos da metade da brasileira). Essa opção preferencial do PT federal pela exportação de empregos foi percebida pelo idiota também na licitação do Planalto para a compra de 15 roupões de banho brancos (cinco para cada tamanho). Seguindo o padrão de conforto do governo anterior, a Presidência determina que cada roupão seja "felpudo, 100% algodão egípcio, pré-penteado, pré-lavado e pré-encolhido".
O idiota sabe que o Brasil é um grande produtor de algodão. Sua lavoura emprega 240 mil pessoas, inclusive pernambucanos da região onde Lula nasceu. As exportações nacionais somam neste ano US$ 225 milhões. Trata-se de uma cultura que se modernizou. Em pouco mais de dez anos quadruplicou a produção do hectare plantado. Com as dificuldades da safra australiana (a Austrália de novo), o Brasil tornou-se a melhor opção para importadores chineses, asiáticos e europeus. Nem Lula nem o comissário José Dirceu são capazes de distinguir, ao olhar ou ao tato, um roupão de algodão egípcio ou brasileiro.
O usufruto de carros australianos e a exigência de algodão importado são exemplos de breguice, prepotência e falta de respeito pelo trabalhador brasileiro. D. Pedro 2º tomava água francesa de Evian enquanto contemplava as cachoeiras de Paulo Afonso. FFHH visitou um vinhedo durante uma visita à África do Sul e nunca escondeu o seu gosto por modelos da sapataria inglesa Church. Lula fez questão de tomar posse com um par de sapatos de Franca, São Paulo. O idiota temia que Lula fosse diferente. Tranquiliza-se aos poucos, vendo que a patuléia ficou com a herança maldita e a turma do Planalto achegou-se à herança bendita.

Santos Dumont volta aos ares

Saiu nos Estados Unidos e sairá no Brasil no início do ano que vem uma ótima biografia de Santos Dumont. Chama-se "As Asas da Loucura - Alberto Santos Dumont e a Invenção do Vôo" e foi escrita pelo jornalista Paul Hoffman. (O subtítulo de Hoffman é idêntico ao título de outra boa biografia, publicada há pouco em português pelo físico Henrique Lins de Barros.) Fantástico personagem aquele milionário paulista que encantou Paris nos últimos anos do século 19.
Calado e destemido, tinha mesa cativa no Maxim's e usava pulseira e anéis coloridos. Em 1901, seu balão caiu sobre uma árvore do jardim de Edmond de Rothschild. Acudido pelos criados, disse-lhes que tinha sede e não poderia descer enquanto não tivesse planejado o resgate de seu engenho. O banqueiro mandou-lhe uma champanhota. Uma vizinha (a princesa Isabel) enviou-lhe uma cesta de piquenique e um convite para jantar. Ele aceitou, mas só foi quando conseguiu trocar a gravata vermelha que usava por outra, preta, de um transeunte. Não queria lembrar à princesa os jacobinos que destronaram seu pai.
São muitas as pessoas que tremem ao ouvir o nome do Pai da Aviação, pela má sorte que ele traria. Hoffman explica a origem da superstição: ela estava nele. O Pai da Aviação não dormia longe de seu chapéu, só voava com uma meia de mulher enrolada no pescoço (oculta pelo colarinho alto). Jamais dizia "adeus", não pronunciava nem escrevia o número 50 e se recusava a carregar notas de 50 francos. (No Brasil de hoje há quem não toque no mico amarelo das notas de R$ 20). Namorada, nunca teve. Namorado, talvez. Pode ter sido o escritor e desenhista George Goursat.
Era chegado a pequenas mentiras e, mais tarde, a grandes mentiras. Em 1910, estava terminado. Aos 36 anos, recebeu um diagnóstico de esclerose múltipla. Insano e recluso, enforcou-se em 1932, como a mãe fizera 30 anos antes. Getúlio Vargas decidiu que ele morreu do coração e assim o episódio foi noticiado. Galileu foi sepultado sem um dedo, Lênin e Einstein sem o cérebro. Santos Dumont, como Chopin, sem o coração.
Hoffman dá pouco relevo à discussão da primazia de Santos Dumont sobre os irmãos Wright. Os dois americanos passaram anos tentando fazer um avião, enquanto o brasileiro voava em balões. Os Wright voaram em 1903, e Santos Dumont, com o 14 Bis, três anos depois. Ele decolou sem ajuda, enquanto Wilbur Wright valeu-se de trilhos (não foi catapultado). Uma coisa é certa: ele não inventou o relógio de pulso. Elisabeth da Inglaterra, no século 16, usava um.

O IDH da ONU tem uma pitada de fantasia

O professor Marcelo Paixão, da UFRJ, coordenador do Observatório Afro-Brasileiro, informa:
A promoção do Brasil na tabela do Índice de Desenvolvimento Humano da ONU é produto de uma fantasia. Um artifício de dar vergonha.
Em 2002, o Brasil estava na 73ª posição, entre as ilhas Fiji e o Suriname. No relatório deste ano, passou para a 65ª, entre a Colômbia e a Bósnia. Tamanho progresso foi resultado de uma troca de base de dados educacionais. A ONU trocou os números do IBGE pelos do Ministério da Educação. Assim, a taxa escolaridade de Pindorama pulou de 80% para 95%. O tucanato adorou, mesmo sabendo que esse número dá ao Brasil, com 13% de analfabetos, uma taxa de escolaridade superior à dos Estados Unidos (94%, com 0% de analfabetos) ou à do Japão (83% e 0% de analfabetos). Quem quiser acreditar nisso, terá uma vida feliz.
O professor desagregou as estatísticas da ONU e constatou que, usando-se a base do IBGE na tabela de 2003, o Brasil cairia para a 72ª posição, entre a Venezuela e a Romênia. O que seria um avanço de uma casa no tabuleiro virou um galope de sete casas.
Terrível pesquisador o professor Paixão. Ele separou as estatísticas sociais dos brancos da dos negros. Resultou que o Brasil Branco tem um IDH alto, na 46ª posição, entre a Lituânia e a Croácia, dez pontos abaixo da Argentina e seis abaixo do Uruguai. O Brasil Negro fica na 107ª, entre El Salvador e China, acima de quase todos os países africanos, inclusive a África do Sul e a Nigéria. Se alguém desagregar os números americanos, verificará que por lá os negros estão muito melhor que o brancos de cá.

Maledicência
José Sarney manda mais no governo de Lula do que mandava no dele. Além disso, manda só naquilo de que gosta, sem ter que se preocupar com a opinião de Ulysses Guimarães.

Air PT-PI
Deve-se à repórter Elisabeth Sá mais um parágrafo do capítulo dos hábitos do cotidiano dos petistas que chegaram ao poder.
No domingo passado (Dia dos Pais) dois aviões do governo do Estado do Piauí decolaram de Teresina com destino ao município de São João. Na frente foi um Xingu, levando o governador Wellington Dias e sua mulher, Rejane, cujas raízes familiares estão naquela localidade. Iam inaugurar uma feira agropecuária. Meia hora depois pousou o segundo avião. Transportava o pai do governador e Simone, funcionária dos serviços domésticos de Dias.
É de justiça reconhecer que o governador petista não comprou os dois aviões. Trata-se de uma produção do PFL, ao tempo do governador Hugo Napoleão. Ele comprou quatro aviões. No governo de Mão Santa vendeu-se um, e Wellington Dias vendeu outro. Os que sobraram, usa-os também para transportar familiares.

Desejo
O deputado Raul Jungmann (PPS-PE) quer ser candidato a prefeito do Recife.

Caminhada tucana
Falta muito chão, mas já foram dados os primeiros passos para a aproximação do PSDB (ou de um bom pedaço dele) com o governo de Lula.

Fortes emoções
Apareceram duas assombrações nas listas de transferências de dinheiro guardadas pela CPI do Banestado. Enquanto uma parte dos curiosos procurava nomes do governo passado, surgiram nomes ilustres da atualidade.
A CPI vem conseguindo manter a seriedade de seus trabalhos, escanteando exibicionismos. No seu papelório há registro de operações inteiramente legítimas (desde que envolvam patrimônio conhecido pela Receita Federal), e até agora a grande virtude da CPI tem sido não tentar satanizar pessoas que respeitaram as leis.
Felizmente, o PT convive com uma oposição muito mais civilizada do que aquela feita ao governo passado.

Jabuticaba
Circula nos desvãos do governo um incrível projeto de reforma da economia mundial. Trata-se de criar um mecanismo pelo qual os trabalhadores teriam o direito de tirar parte de seus recursos do FGTS para aplicá-los na bolsa. Até aí, grande notícia, pois sempre que o governo administra o dinheiro da patuléia a transação acaba em tunga.
Para dar um toque de novidade ao projeto, pretende-se que o dinheiro aplicado tenha um rendimento assegurado equivalente à TR mais 3% ao ano.
A plutocracia financeira nacional quer inventar a bolsa de valores sem risco.



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