São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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JANIO DE FREITAS

Gente desclassificada


É possível que esta disputa eleitoral sem teor e sem musculatura reflita um estado da população

Na última reta, a campanha eleitoral enfim exibe alguma agitação, com alvo na disputa paulista e estilhaços na presidencial, mas como se quisesse fazer um epílogo consagrador de sua peculiaridade: uma campanha mais longa do que todas as anteriores e a única sem uma só idéia em confronto. Quando as palavras vazias cederam lugar, ocuparam-no desaforos adjetivosos, que nem chegaram a ser acusações por falta de substância. Por convenientes cautelas, a nenhuma das partes interessou fazer mais do que a encenação mambembe de sua alegada diferença, incomprovável em tantos casos.
É possível que esta disputa eleitoral sem teor e sem musculatura reflita um estado da população, aturdida entre a desagregação veloz de todos os costumes e o desconhecimento de possíveis opções de futuro. Se, porém, a campanha não é tal reflexo, trata-se de uma humilhação esmagadora imposta ao eleitorado pela classe política, por intermédio das organizações inconfiáveis que são os partidos brasileiros. A primeira hipótese é tentadora, mas a segunda convive melhor com o desenrolar da realidade nas últimas décadas.
Acusações foram componente importante também nas disputas eleitorais pós-ditadura de Getúlio. Mas ao lado do debate em torno das questões mais relevantes em cada período. A política para o petróleo, antes e depois do monopólio; o aprimoramento do processo eleitoral, a modernização institucional, a dimensão das liberdades civis, modalidades de reforma agrária, a reforma habitacional, as prioridades da infra-estrutura do país, e por aí afora. Era o Brasil em discussão, as opções postos diante do eleitorado. A ditadura militar retroagiu os costumes políticos à idade da pedra - em muitos sentidos bastante parecida com o que poderia chamar-se, na história de Napoleão para cá, de idade militar.
A primeira campanha presidencial da redemocratização, apesar de decidida com os recursos anti-éticos em favor de Collor, buscou retomar o sentido de debate próprio das verdadeiras campanhas presidenciais. Ulysses, Covas, Brizola, Aureliano, e outros, vinham da cultura política anterior à ditadura, e a retomaram na medida das circunstâncias. Na eleição seguinte, debates e idéias foram substituídos pela bandeira do Plano Real, e assim novamente com Fernando Henrique em 98. Em 2002, Serra calou suas idéias, para não ser crítico de Fernando Henrique, enquanto Lula encenava uma personagem adequada à grande ansiedade de mudança. Se um não diz, dois não debatem.
Outra novidade trazida pelas campanhas recentes é a do descompromisso entre as políticas do eleito e as políticas que aparentou representar para o eleitorado. Lula chegou ao extremo inimaginável, com evidente questionamento dos seus valores morais. Mas o descumprimento de promessas e compromissos, compreensível em parte nos governos todos, já fora levado longe por Collor e por Fernando Henrique.
A margem de exercício da cidadania que a classe política deixa à população é, portanto, cada vez mais próxima dos regimes militares. Apesar dos seus e dos nossos pesares, o Judiciário é que preserva o sentido de regime democrático. Para o demais, nós outros ficamos como cidadãos desclassificados: cidadãos com a cidadania cassada pela inutilidade.


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