|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Sem transposição de água, Los Angeles não existiria
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Jack Nicholson está imobilizado
por brutamontes contra a cerca
de um reservatório, Roman Polanski chega e corta uma de suas
narinas, em represália por estar
fazendo perguntas demais. Ele é
um detetive particular e investiga
a máfia da água em Los Angeles
no começo do século passado.
Quem assistiu ao clássico "Chinatown", de 1974, reconhece a cena, parte de um roteiro que tinha
como pano de fundo uma versão
ficcionalizada do que se convencionou chamar depois de "The
Owens Valley Water War" (a
guerra da água do vale Owens).
Na "vida real", foi feita a transposição de um rio que irrigava o
vale californiano, na Sierra Nevada, que foi direcionado para a terra seca de Los Angeles. Sem isso, a
segunda maior cidade dos EUA,
capital de fato do Estado mais rico
do país mais rico do mundo, não
existiria como a conhecemos.
Até o século retrasado, El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de
los Ángeles de la Porciúncula,
uma missão franciscana fundada
pela igreja católica espanhola, era
um vilarejo pobre e atrasado.
Com a descoberta de petróleo em
suas terras, começou a atrair cada
vez mais gente. Estima-se que, entre 1900 e 1904, a população tenha
dobrado para 200 mil pessoas.
"Não havia água para todo
mundo", segundo Norris Hundley Jr., autor de "The Great
Thirst" (a grande sede, University
of California Press) e professor de
história americana. Los Angeles
se espalha por um platô semi-árido, um quadrado cercado por três
desertos e o Oceano Pacífico e
com um índice pluviométrico
anual médio de parcos 380 mm
-o do Pantanal, por exemplo, fica entre 1.000 mm e 1.400 mm.
Sua única fonte de água doce
então era o esquálido rio Los Angeles, hoje um canal de concreto
que também já foi cenário de
muitos filmes (entre eles, a corrida de carros de "Grease - Nos
Tempos da Brilhantina", de 1978,
com John Travolta). No auge da
exploração, calcularam as autoridades de então, sua água serviria
até a 250 mil pessoas, não mais.
Até que alguém teve a idéia. "E
se usássemos a água de sobra do
vale Owens?" A 350 km dali, 6.000
metros acima do nível do mar,
serpenteava um rio ao largo de
uma série de cidadezinhas e desembocava no lago homônimo.
Melhor: a distância entre Los Angeles e Owens era em declive.
Quer dizer, havia a possibilidade
de usar a inércia como motor da
empreitada e ainda construir usinas de eletricidade no caminho.
Como no caso da transposição
do São Francisco, ninguém sabe
exatamente quem primeiro teve a
idéia, mas ela encontrou ressonância, principalmente entre a
elite político-financeira da cidade.
Para que saísse do papel, seria
preciso construir um aqueduto
gigantesco, inédito nos Estados
Unidos, 350 quilômetros de concretos, pontes e desapropriações.
Entram em cena Frederick Eaton, ex-prefeito da cidade, e William Mulholland, responsável
pela irrigação do Departamento
de Água, que viram ali uma boa
obra para a cidade e boas oportunidades para negócios. Foram
buscar a parceria público-privada
com um dono de estrada de ferro
(E.H. Harriman), um empreiteiro
(Moses Sherman) e dois empresários de comunicação (Harrison
Gray Otis e seu genro, Harry
Chandler, então proprietários do
"Los Angeles Times", atualmente
o principal jornal da cidade).
Ainda hoje, todos são acusados
por alguns historiadores e autores
de livros sobre o assunto de terem
comprado a preço de banana
mais de 16 mil acres de terra só no
vale de São Fernando, a etapa final da obra, já às portas da cidade,
que sabiam de antemão que seriam desapropriados -Eaton,
sozinho, teria comprado outros
23 mil acres no deserto e depois
revendido-os para o aqueduto.
Todos negaram à época.
O projeto começou em 1904.
Mais de 5.000 homens, dos quais
43 morreram, principalmente por
conta das altas temperaturas do
deserto do Mojave, 800 quilômetros de estrada de ferro, 240 quilômetros de fios telefônicos e de telégrafo e 430 de canos de água potável para os trabalhadores depois, o aqueduto foi inaugurado,
em 5 de novembro de 1913, a um
custo inicial de US$ 1,3 bilhão, em
dólares atuais. O custo final nunca
foi determinado.
Inaugurado, mas são sem problemas. Na seca de uma hora para
outra, fazendas e sítios de Owens
fecharam, o comércio das cidadezinhas do vale faliu. Alguns começaram a roubar o aqueduto ou a
usar "gatos" para desviar a água.
Até que, em maio de 1924, em
protesto, uma turma de 40 homens dinamitou um dos canais.
Os empresários tentaram convencer Los Angeles a comprar as
terras secas do vale; a prefeitura
recusou. Três anos depois, outras
partes do aqueduto seriam dinamitadas. O governo federal colocou Owens sob lei marcial. Daí
veio o nome do episódio, "The
Owens Valley Water War". Aos
poucos, porém, os fazendeiros e
comerciantes foram desistindo.
Hoje, Los Angeles é Los Angeles, e Arnold Schwarzenegger é
seu governador. Já Owens ficou
conhecido como o "vale fantasma", com cidades pobres ou
abandonadas. Onde antes ficavam o lago e o leito do rio, há um
deserto. O vento que passa por ali
levanta uma poeira considerada
tóxica pelas agências de meio ambiente. Mas o aqueduto ainda leva
água para boa parte dos mais de
20 milhões de angelenos.
Texto Anterior: Caminho das águas: Para opositores, projeto vai apenas "chover no molhado" Próximo Texto: Pescadores são a favor de projeto com revitalização Índice
|