São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 2005

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Sem transposição de água, Los Angeles não existiria

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Jack Nicholson está imobilizado por brutamontes contra a cerca de um reservatório, Roman Polanski chega e corta uma de suas narinas, em represália por estar fazendo perguntas demais. Ele é um detetive particular e investiga a máfia da água em Los Angeles no começo do século passado.
Quem assistiu ao clássico "Chinatown", de 1974, reconhece a cena, parte de um roteiro que tinha como pano de fundo uma versão ficcionalizada do que se convencionou chamar depois de "The Owens Valley Water War" (a guerra da água do vale Owens).
Na "vida real", foi feita a transposição de um rio que irrigava o vale californiano, na Sierra Nevada, que foi direcionado para a terra seca de Los Angeles. Sem isso, a segunda maior cidade dos EUA, capital de fato do Estado mais rico do país mais rico do mundo, não existiria como a conhecemos.
Até o século retrasado, El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Ángeles de la Porciúncula, uma missão franciscana fundada pela igreja católica espanhola, era um vilarejo pobre e atrasado. Com a descoberta de petróleo em suas terras, começou a atrair cada vez mais gente. Estima-se que, entre 1900 e 1904, a população tenha dobrado para 200 mil pessoas.
"Não havia água para todo mundo", segundo Norris Hundley Jr., autor de "The Great Thirst" (a grande sede, University of California Press) e professor de história americana. Los Angeles se espalha por um platô semi-árido, um quadrado cercado por três desertos e o Oceano Pacífico e com um índice pluviométrico anual médio de parcos 380 mm -o do Pantanal, por exemplo, fica entre 1.000 mm e 1.400 mm.
Sua única fonte de água doce então era o esquálido rio Los Angeles, hoje um canal de concreto que também já foi cenário de muitos filmes (entre eles, a corrida de carros de "Grease - Nos Tempos da Brilhantina", de 1978, com John Travolta). No auge da exploração, calcularam as autoridades de então, sua água serviria até a 250 mil pessoas, não mais.
Até que alguém teve a idéia. "E se usássemos a água de sobra do vale Owens?" A 350 km dali, 6.000 metros acima do nível do mar, serpenteava um rio ao largo de uma série de cidadezinhas e desembocava no lago homônimo. Melhor: a distância entre Los Angeles e Owens era em declive. Quer dizer, havia a possibilidade de usar a inércia como motor da empreitada e ainda construir usinas de eletricidade no caminho.
Como no caso da transposição do São Francisco, ninguém sabe exatamente quem primeiro teve a idéia, mas ela encontrou ressonância, principalmente entre a elite político-financeira da cidade. Para que saísse do papel, seria preciso construir um aqueduto gigantesco, inédito nos Estados Unidos, 350 quilômetros de concretos, pontes e desapropriações.
Entram em cena Frederick Eaton, ex-prefeito da cidade, e William Mulholland, responsável pela irrigação do Departamento de Água, que viram ali uma boa obra para a cidade e boas oportunidades para negócios. Foram buscar a parceria público-privada com um dono de estrada de ferro (E.H. Harriman), um empreiteiro (Moses Sherman) e dois empresários de comunicação (Harrison Gray Otis e seu genro, Harry Chandler, então proprietários do "Los Angeles Times", atualmente o principal jornal da cidade).
Ainda hoje, todos são acusados por alguns historiadores e autores de livros sobre o assunto de terem comprado a preço de banana mais de 16 mil acres de terra só no vale de São Fernando, a etapa final da obra, já às portas da cidade, que sabiam de antemão que seriam desapropriados -Eaton, sozinho, teria comprado outros 23 mil acres no deserto e depois revendido-os para o aqueduto. Todos negaram à época.
O projeto começou em 1904. Mais de 5.000 homens, dos quais 43 morreram, principalmente por conta das altas temperaturas do deserto do Mojave, 800 quilômetros de estrada de ferro, 240 quilômetros de fios telefônicos e de telégrafo e 430 de canos de água potável para os trabalhadores depois, o aqueduto foi inaugurado, em 5 de novembro de 1913, a um custo inicial de US$ 1,3 bilhão, em dólares atuais. O custo final nunca foi determinado.
Inaugurado, mas são sem problemas. Na seca de uma hora para outra, fazendas e sítios de Owens fecharam, o comércio das cidadezinhas do vale faliu. Alguns começaram a roubar o aqueduto ou a usar "gatos" para desviar a água. Até que, em maio de 1924, em protesto, uma turma de 40 homens dinamitou um dos canais.
Os empresários tentaram convencer Los Angeles a comprar as terras secas do vale; a prefeitura recusou. Três anos depois, outras partes do aqueduto seriam dinamitadas. O governo federal colocou Owens sob lei marcial. Daí veio o nome do episódio, "The Owens Valley Water War". Aos poucos, porém, os fazendeiros e comerciantes foram desistindo.
Hoje, Los Angeles é Los Angeles, e Arnold Schwarzenegger é seu governador. Já Owens ficou conhecido como o "vale fantasma", com cidades pobres ou abandonadas. Onde antes ficavam o lago e o leito do rio, há um deserto. O vento que passa por ali levanta uma poeira considerada tóxica pelas agências de meio ambiente. Mas o aqueduto ainda leva água para boa parte dos mais de 20 milhões de angelenos.


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