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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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JUSTIÇA

Advogado não pode ser cúmplice de criminoso, afirma Márcio Thomaz Bastos

Reforma do Judiciário virou "jogo de lobbies", diz ministro

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, 67, diz ser "contra essa legislação de pânico", ao se referir, em entrevista à Folha, às propostas de endurecimento de pena e do tratamento de presos em tramitação no Congresso.
Pena de morte, prisão perpétua, aumentar a punição de crimes hediondos só "distraem" a população e criam a falsa sensação de que o problema acabou.
"Não acho que a lei mude a realidade. A gente tem que transformar os instrumentos do Estado, senão não vai chegar a lugar nenhum. São a Febem, a polícia, a Justiça, o sistema penitenciário, o Ministério Público", afirma.
Ao mesmo tempo, esse paulista de Cruzeiro que foi advogado por mais de 45 anos avisa: "Vou gastar mais um pouco da minha milhagem com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Advogado não pode ser cúmplice de criminoso. Evitar contato físico e passar por detectores de metais é aceitável. As comissões de ética da OAB têm que endurecer".
O ministro critica a proposta de reforma do Judiciário que tramita há 12 anos no Legislativo: "Acabou se transformando num produto deformado de um jogo de lobbies e de pressões".
Apesar de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter defendido a abertura da "caixa-preta" do Judiciário", o ministro diz que não tem prazo para o envio de uma nova proposta de reforma. Promete insistir no controle externo do Judiciário, excluído da reforma que está no Senado.
Diz que juízes não são bons gestores e resume sua proposta assim: "Não invade a independência dos juízes, mas visa o cumprimento dos deveres funcionais de juízes e representantes do Ministério Público e a participação no planejamento orçamentário". A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida na última sexta, em seu gabinete.

Folha -O Planalto avalia que o Ministério da Justiça é excessivamente inflado, tratando de polícia, segurança, penitenciárias, índios, direito econômico. O sr. estuda enxugamento?
Márcio Thomaz Bastos -
Ao contrário, o Ministério da Justiça está aumentando. Nós criamos uma secretaria para a reforma do Judiciário e estamos fazendo um trabalho teórico sobre a lavagem de dinheiro no Brasil, que já está resultando em medidas práticas e vai redundar na criação de mais um departamento.

Folha - Isso não cria problemas? Como o sr. pode cuidar simultaneamente de Polícia Federal, direito econômico, Funai (Fundação Nacional do Índio)?
Thomaz Bastos -
Dá, se você souber delegar. Estou fazendo um aprendizado de administração pública. Tem de confiar nas pessoas, delegar, cobrar resultados.

Folha - Quando o sr. assumiu, prometeu reformular a Funai, mas até agora nada foi feito. O sr. está sendo criticado, inclusive, por causa da demarcação de terras em Roraima.
Thomaz Bastos -
Estamos atrasados nisso. Estou marcando uma viagem em junho a Roraima e, para não fazer uma viagem dirigida, estamos levantando a área de Raposa Serra do Sol, que é bem grande, com 160 mil hectares, onde há um jogo de pressão e contrapressão muito grande.

Folha - O sr. vai homologar?
Thomaz Bastos -
A homologação é inevitável, mas é preciso criar mecanismos para que isso seja digerível para o Estado de Roraima. É um caso emblemático da política indígena do governo.

Folha - O sr. pegou um bonde que já estava andando e parou tudo, como se desejasse começar do zero. A reforma do Judiciário é um exemplo. É uma tendência sua?
Thomaz Bastos -
Isso não é um cacoete meu. É opinião teórico-prática minha de que a reforma do Judiciário que se encontra no Senado neste momento, se for aprovada ou se for rejeitada, não resolverá o problema da Justiça.

Folha - Por quê?
Thomaz Bastos -
Ela acabou se transformando num produto deformado de um jogo de lobbies e de pressões e não toca nos verdadeiros problemas.

Folha - Exemplo.
Thomaz Bastos -
Mudança de competência, criação de cargos, mudança na maneira de indicar os ministros do Supremo Tribunal Federal, súmula vinculante de maneira inexata, controle interno do Poder Judiciário. São medidas assim, tópicas e justapostas, que não atingem a verdadeira questão do Judiciário, que é a primeira instância, a que afeta mais a vida do cidadão. Não é a reforma radical que queremos.

Folha - O governo insistirá no controle externo do Judiciário?
Thomaz Bastos -
Claro. O presidente tem declarado isso publicamente, e eu também defendo, mas achamos que não é o momento de discutir isso.

Folha - Não é o momento? Mas não foi o presidente que ganhou manchetes criticando a "caixa preta" do Judiciário?
Thomaz Bastos -
A questão está sendo discutida, mas nosso cronograma é diferente. Pretendemos fazer duas coisas ao mesmo tempo. Uma é o diagnóstico através de pesquisa. Outra é a identificação de certas situações em que se trabalhou com gestão, com informática, com treinamento de pessoal, com motivação, com tentativa de diminuição do percurso judiciário.

Folha - Lula já disse que tem que votar as reformas da Previdência e tributária neste ano, porque o ano que vem é de eleição e ninguém vota nada. A parte legislativa da sua reforma ficará para 2005?
Thomaz Bastos -
O meu prazo é o mandato do presidente.

Folha - Todos dizem que são a favor do controle externo, mas depende de qual controle externo. Que modelo defende?
Thomaz Bastos -
É extremamente simples. Não invade a independência dos juízes, não tenta controlar a consciência dos juízes, mas visa a duas coisas: o cumprimento dos deveres funcionais de juízes e representantes do Ministério Público e a participação de planejamento orçamentário e financeiro. É só isso.

Folha - E por que eles resistem tanto?
Thomaz Bastos -
Não sei. Acho que é porque eles trabalharam muito tempo assim, nesse regime fechado. Mas nós não vamos fazer uma reforma contra o Poder Judiciário, mas de dentro do Poder Judiciário. Pretendo convencê-los de que o controle externo é uma precondição para que tenhamos um Judiciário democratizado e oxigenado. O ministro [Nelson] Jobim [do Supremo] noutro dia disse isso, que os juízes precisam saber que eles não sabem gerir. Concordo.

Folha - A principal bandeira do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) ao voltar ao Congresso na Legislatura passada foi a reforma do Judiciário. O sr. foi advogado e é amigo dele. Ele é um aliado seu na reforma?
Thomaz Bastos -
Ele tem idéias claras a respeito, apesar de não ser da área, e deve ajudar, como vários outros deputados e senadores, mas não especialmente.

Folha - No seu encontro com o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), dias antes da decisão do Senado sobre ACM, o sr. defendeu salvar o mandato dele?
Thomaz Bastos -
Nunca tratei desse assunto com o presidente Sarney. Estabeleci uma muralha chinesa desde que assumi o ministério e não converso sobre assuntos de pessoas que foram minhas clientes. Até evito fazer coisas que seriam legítimas para evitar que digam isso ou aquilo.

Folha - O sr. não acha que, ao falar em "caixa preta", o presidente acirrou os ânimos no Judiciário às vésperas de votar reformas constitucionais?
Thomaz Bastos -
Acho que levantou o problema e acirrou um pouco os ânimos, mas o próprio ministro Marco Aurélio [de Mello, presidente do Supremo] já disse que isso são águas passadas.

Folha - O sr. tem tanta preocupação em dar conotação liberal às suas posições e ao governo Lula que vem sendo acusado de ideologizar algumas discussões sobre a Lei de Execuções Penais, por exemplo. O agravamento de penas e o corte de benefícios de presos perigosos são coisa da direita, do Paulo Maluf?
Thomaz Bastos -
Esse aí que você descreve não sou eu. Deve ser algum outro ministro da Justiça, não eu, que fui advogado de defesa. Digo hoje o que digo há trinta anos. Eu não acho que a lei mude a realidade. Para a gente enfrentar a violência no Brasil, a gente tem que transformar as instrumentos do Estado, senão não vai chegar a lugar nenhum. São a Febem, a polícia, a Justiça, o sistema penitenciário. O que sou contra é essa legislação de pânico, que surge reativamente quando acontece alguma coisa no Brasil, como o sequestro de alguém conhecido ou a morte de um juiz. Ela não resolve nada, imobiliza e distrai as pessoas. As pessoas pensam que, subindo a pena, acabou o problema. E não acabou.
Vou te dar um exemplo de que não sou essa pomba que você descreveu. Apresentamos agora um projeto que aumenta o tempo de isolamento disciplinar para um ano. Estou levando um pau danado da esquerda, do movimento antiterror. Não sou ingênuo, mas fazer a prisão perpétua, a pena de morte, tudo isso é bobagem.

Folha - O que o sr. acha da promiscuidade de advogados com criminosos presos? Em alguns casos eles não acabam membros da quadrilha?
Thomaz Bastos -
Vou gastar mais um pouco da minha milhagem com a OAB. Mas acho que isso tem que ser repensado. O direito de defesa, de o preso se entrevistar com o seu advogado, é indeclinável. Acho que a idéia de evitar contato físico e passar por detectores de metais é aceitável e que a OAB tem que endurecer um pouco suas comissões de ética em relação a essas pessoas que são claramente co-autoras de crimes.


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