São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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LAVOURA ARCAICA

Pesquisa em relatórios do governo revela que prática avança para grandes empreendimentos

Agronegócios e pecuária de ponta usam trabalho escravo

ELVIRA LOBATO
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA E AO PARÁ

Levantamento exclusivo da Folha com base em 237 relatórios de fiscalizações do Ministério do Trabalho realizadas entre janeiro de 2000 e dezembro de 2003 revela que o trabalho escravo no Brasil acompanha o avanço das fronteiras agrícolas e da pecuária e está presente em grandes empreendimentos agrícolas para a exportação e em modernas fazendas de criação de gado que estão no topo da vanguarda tecnológica.
É a face obscura de parcela do agronegócio, uma cicatriz escondida em meio à riqueza.
Para conhecer a realidade do trabalho análogo a escravo no Brasil, a reportagem da Folha, primeiro, mergulhou nos processos do grupo de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho -considerando só os processos com "resgate" de trabalhadores.
Em seguida, visitou os municípios de Marabá, Xinguara, Curionópolis e Redenção, no sul do Pará, considerada uma área endêmica de trabalho escravo.
De 1995 até o início deste mês de julho, foram resgatados 11.969 trabalhadores rurais que se encontravam em condição análoga à de escravo. Quase metade (5.224) dos casos ocorreu no Pará, seguido por Mato Grosso (2.435) e Bahia (1.139). Depois, vêm Maranhão, Tocantins e Rondônia.

Avulsos
Trata-se de uma mão-de-obra avulsa, usada em serviços temporários e sobre a qual os fazendeiros consideram não ter responsabilidade trabalhista, uma vez que ela é contratada por intermediários especializados, os ""gatos".
Segundo a secretária de Inspeção do Ministério do Trabalho, Ruth Vilela, o fazendeiro trata de forma distinta seu trabalhador fixo e o avulso. O primeiro tem carteira assinada, comida farta e bom alojamento. O outro não tem carteira, é preso ao gato por um sistema de servidão por dívida, não pode abandonar a fazenda antes de terminar a empreitada e trabalha em condições desumanas.
Há casos de resgate em fazendas com pistas de pouso para aviões de médio porte e sedes suntuosas, mas que alojavam os trabalhadores temporários nos currais ou em barracas de plástico, sem paredes, escondidas na mata. Segundo Vilela, os proprietários alegam desconhecer o que se passava em suas propriedades e atribuem a responsabilidade aos gerentes.

Vanguarda
Modernas fazendas de criação de gado estão sendo punidas no Pará, Rondônia e Tocantins. A família Mutran -de pecuaristas e exportadores de castanha do Pará- teve duas fazendas na região de Marabá (PA) autuadas.
Evandro Mutran nega a acusação e afirma que a fazenda Peruano (com 16.500 cabeças de gado) é modelo em seleção genética das raças guzerá, nelore e girolanda. Ele se diz alvo de perseguição.
Os municípios de Sorriso (MT), maior produtor de soja do Brasil, e de São Desidério (BA), maior produtor de grãos do Nordeste, estão na rota oficial do trabalho escravo, juntamente com outros celeiros prósperos da produção de grãos, como Campo Novo dos Parecis, Tapurah e Nova Mutum, no Mato Grosso, e Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, na Bahia.
O prefeito de Sorriso, José Domingos Fraga Filho (PMDB), fala, com orgulho, da cidade de 52 mil habitantes, criada há 18 anos, que já responde por 18% da produção de grãos de Mato Grosso. ""Quase não se usa mão-de-obra bruta braçal aqui, é tudo tecnologia de ponta." Só de soja, foram plantados 590 mil hectares neste ano.
Três dos maiores produtores de soja da região -Darcy Ferrarin, Valdir Daroit e Nei Frâncio- foram autuados no ano passado. O secretário-geral do Sindicato Rural de Sorriso, Rubens Denardi, discorda da autuação e diz que elas maculam o município que, afirma, tem uma agricultura entre as mais avançadas do mundo.
No mês passado, foram autuadas duas fazendas de soja (Java e Tucano) em Campo Novo dos Parecis (MT), segundo maior produtor do grão no Brasil. Uma outra fazenda de soja, a Floresta, foi autuada no município vizinho de Brasnorte. No total, foram resgatados 80 trabalhadores.
O presidente do Sindicato Rural de Campo Novo dos Parecis, Hélio José Brizola, que representa os fazendeiros, afirma que a contratação de trabalhadores avulsos, por intermédio de gatos, sempre existiu na região, mas só agora está sendo fiscalizada e punida.
São Desidério, na Bahia, não fica atrás em termos de pujança agrícola. O município prevê colher, neste ano, 620 mil toneladas de soja, 193,7 mil toneladas de algodão e 280,7 mil toneladas de milho, café, arroz e frutas.
Foi lá que ocorreu, no ano passado, a maior operação de ""libertação" de trabalhadores em condição análoga à escrava já realizada: 745 pessoas retiradas da fazenda Roda Velha, que, segundo o processo de fiscalização, pertence a Ernesto Dias Filho e à Caribbean Participações, que não foram localizados pela reportagem.
Moacir Hoop, presidente do Sindicato Rural de Luiz Eduardo Magalhães, que representa também os fazendeiros de São Desidério, acha que o Ministério do Trabalho exagera o problema.
"Há casos de trabalhadores sem documentos. Com pena de vê-los desempregados, os proprietários contratam sem carteira assinada. Mas daí a ser trabalho escravo salta uma grande distância", diz.
No ano passado, foram retirados 1.043 trabalhadores de três fazendas no Oeste baiano. Um caso teve repercussão pelo contraste entre a situação dos trabalhadores e o poder econômico do proprietário: o da fazenda Tabuleiro, de Constantino de Oliveira, pai do fundador da empresa aérea Gol.
A fazenda, de 20 mil hectares, era preparada para o plantio de soja, arroz e algodão quando houve a autuação. Os trabalhadores faziam a limpeza da terra, catando tocos e raízes. Segundo o relatório da fiscalização, 300 trabalhadores tiveram suas carteiras assinadas após a fiscalização, mas 259 decidiram, ainda assim, deixar a propriedade. Eles haviam sido recrutados na Bahia, em Goiás, no Tocantins e até no Distrito Federal.
Quando o caso veio à tona, o empresário divulgou nota reconhecendo o problema e anunciando que iria vender sua participação. "[...] O projeto da fazenda, que tanto me entusiasmou, estará sempre maculado por este triste episódio", declarou, à época.

Grupo Belga
A multinacional belga Sipef foi autuada sob a acusação de utilizar trabalho escravo na fazenda Senor, em Dom Eliseu (PA). Em outubro de 2002, o Ministério do Trabalho retirou da propriedade 153 trabalhadores, provenientes do Maranhão e do Piauí e usados na colheita da pimenta do reino.
O representante da empresa no Brasil, Joost Christian Brands Smit, afirma que a multinacional agiu errado ao não assinar as carteiras dos safristas, mas não considera ter havido exploração de trabalho escravo. Ele negou também que houvesse crianças trabalhando na propriedade, conforme diz o relatório da fiscalização.


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