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Cada país tem o seu Custer, diz Possuelo
Sertanista Sydney Possuelo compara general Augusto Heleno a militar americano que massacrou os índios no século 19
Ex-presidente da Funai diz
que Exército, agronegócio e
garimpeiros somam suas
forças para negar os direitos
dos povos indígenas
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
O sertanista Sydney Possuelo, que completa 68 anos hoje,
já viu antes o discurso de soberania nacional ser usado para
tentar impedir a demarcação
contínua de terras indígenas na
Amazônia. Foi em 1992, quando era presidente da Funai
(Fundação Nacional do Índio)
e agiu, no governo Collor, para
homologar a terra indígena ianomâmi, de 9,7 milhões de hectares, entre os Estados de Roraima e Amazonas.
"Eu me recordo de uma reportagem que saiu no jornal dizendo que meu objetivo era demarcar a terra ianomâmi juntamente com potências européias e os Estados Unidos e, ao
final da demarcação, eu seria
aclamado o rei da área indígena", recorda-se, completando:
"Mais de 16 anos depois, a Amazônia continua com a mesma
configuração".
Possuelo diz que as declarações do general Augusto Heleno sobre a política indigenista
"caótica" brasileira, feitas nesta
semana no contexto da disputa
em torno da terra Raposa/Serra do Sol (RR), refletem uma
postura que ressurge toda vez
que o Estado quer cumprir a lei
a favor dos povos indígenas.
"Os militares com essa questão de segurança nacional, as
pessoas do agronegócio, que se
unem também aos garimpeiros. Essas forças se somam para
negar aos povos indígenas o direito que eles têm."
O sertanista comparou Heleno ao general americano George Custer (1839-1876), que
massacrou os índios cheyennes
e sioux ("Cada país tem o Heleno ou o Custer que merece") e
disse que "ainda bem" que a política indigenista brasileira está
dissociada da história do país:
"O que seria interessante? O retorno ao que era antes? O retorno aos massacres? É isso o que
ele propõe?" Leia a entrevista:
FOLHA - O general Augusto Heleno, comandante da Amazônia, disse
na quarta-feira que a política indigenista brasileira é "caótica" e está
"dissociada da história do país". Como o sr. avalia a declaração?
SYDNEY POSSUELO - Ainda bem
que está dissociada da história
do Brasil, porque a história do
Brasil é uma sucessão de massacres, violência e desrespeito
aos povos que já habitavam
aqui antes. O que seria interessante? O retorno ao que era antes? O retorno aos massacres?
É isso o que ele propõe?
FOLHA - De tempos em tempos, esse discurso de soberania nacional
ressurge no Exército. Por quê?
POSSUELO - Esse problema
sempre retorna. Os militares
têm com esse boneco empalhado internacional que eles vêem
querendo engolir a Amazônia a
todo momento sempre pela
mão dos povos indígenas. E essa postura retorna toda vez que
o Estado quer reconhecer as
terras indígenas. Todas as vezes que o Estado quer efetuar
aquilo que é de lei essas forças
ressurgem. E elas se somam,
elas se unem: os militares com
essa questão de segurança nacional, as pessoas do agronegócio, que se unem também aos
garimpeiros. Essas forças se somam para negar aos povos indígenas o direito que eles têm de
viver naquele espaço, que é território nacional. Nos EUA, dezenas de reservas já foram demarcadas, e etnias têm lá o seu
controle de pessoas que entram
e saem, porque é a casa deles.
FOLHA - Sem que nos EUA isso seja
considerado perda de soberania...
POSSUELO - Exatamente! Isso
não existe! Diz para ele [general] entrar com a tropa dele numa área de preservação ambiental, que é território brasileiro, e derrubar tudo. Não pode! Não é porque é Exército que
tem o direito de invadir a casa
dos outros. Isso [as declarações
de Heleno] acontece cinco ou
seis dias depois que o presidente da República fez uma declaração prenhe de bom senso e
justiça defendendo a demarcação contínua de Raposa/Serra
do Sol. A fala dele é no mínimo
hostil ao governo, se não for um
ato de indisciplina.
FOLHA - Por que demarcar uma terra contínua e não em ilhas?
POSSUELO - A terra onde habitam etnias e povos que aqui estavam tem de ser contínua. Você não pode dividir a cidade de
São Paulo: "Eu entro até os Jardins. Dos Jardins para o outro
lugar eu não posso mais entrar,
embora tenha ali o meu cemitério, o lugar onde eu planto".
FOLHA - O STF agiu certo ao suspender a operação de retirada dos
arrozeiros pela Polícia Federal?
POSSUELO - A operação da PF já
deveria ter acontecido anos
atrás, quando o governo FHC
delimitou a terra. [O STF] interrompe um processo que seguiu todo o ritual legal. Se o Supremo pára a ação legal em razão de uma disputa entre o Estado e a União, dá para entender a questão legalmente. Mas
se ele pára porque "o Estado de
Roraima já cedeu terras demais"... o Estado de Roraima
não "cede", a União não "cede"
terras! A União reconhece o direito de os índios estarem ali.
FOLHA - Quando foi feita a demarcação da terra indígena ianomâmi, o
ministro da Justiça era o Jarbas Passarinho, um militar, que apoiou a
demarcação contínua. Mudou a
postura das Forças Armadas?
POSSUELO - Ainda bem que você
não tem só um general no Exército. Você tem homens que não
aprenderam só a marchar. Ainda bem que não temos só o Heleno. Cada país tem o Heleno
ou o [George] Custer que merece. Nós não podemos voltar à
barbárie. Não é a violência que
vai garantir a integridade territorial do Brasil. É você demarcar a terra, dar [ao índio] escola,
respeitar os direitos dele, que
gera o sentimento de brasilidade. Se o sujeito recebe do Brasil
maus-tratos e do Peru recebe
educação e saúde, ele vai dizer:
"Eu sou é peruano".
FOLHA - Existe um sentimento antiíndio em Roraima, de que 50% do
território é terra indígena e sobra
muito pouco para os não-índios.
POSSUELO - Sempre que se disputa terra, você prega estereótipos nos povos indígenas: preguiçosos, com muita terra para
nada, e nós, que queremos produzir, não temos a terra. O [Daniel] Ludwig, quando criou o
projeto Jari, tinha uma área
imensa, 4 milhões a 6 milhões
de hectares, só dele. Mas ninguém brigava. Porque, por trás
daquilo tudo, havia uma intenção: vamos cortar essas árvores
para a Amazônia ser moderna,
dar lucro. Essa grande extensão
territorial do Brasil, principalmente Estados como Roraima,
nós conseguimos manter contra outras potências estrangeiras na época porque os povos
indígenas que ali habitavam foram considerados súditos da
Coroa portuguesa. Então,
quando tem interesse nacional,
eles são súditos, mas quando
não tem interesse, são empecilho ao desenvolvimento.
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