São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 2006

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ELIO GASPARI

O fantasma do Conselheiro ainda assusta

Não é Canudos que se repete na periferia das grandes cidades. É o andar de cima

O GOVERNADOR de São Paulo, Cláudio Lembo, prestou uma contribuição para o debate da questão da segurança pública nas grandes cidades brasileiras ao dizer que "está acontecendo uma repetição de Canudos".
Ao primeiro lance de vista, parece o contrário. Canudos foi uma aldeia perdida no sertão baiano, habitada a partir de 1893 por miseráveis e pelo "povo do 13 de maio". Um caso de excluídos encrencados porque que se excluíram. "Por causa do flagelo do Conselheiro, não há trabalhadores", reclamava um fazendeiro. Nas grandes cidades brasileiras sucede o oposto. A encrenca resulta da exclusão de gente que deseja ser incluída. Os sertanejos do Conselheiro não eram bandidos e os bandidos de hoje não são sertanejos. O crime organizado de Canudos foi o massacre, praticado pelo Exército, dos prisioneiros e sobreviventes da destruição do arraial.
Andando-se nas cercanias do Alto do Mário, no Parque de Canudos, ainda se acham pedaços de pentes de balas disparadas durante a guerra. Andando-se pela avenida Paulista, passa-se por um tipo especial de "repetição de Canudos". Como a guerra do sertão é história, o que se dizia a seu respeito em 1897 parece hoje manipulação pueril. A jeremiada de Lembo permite que os brasileiros do século 21 se vacinem contra as mistificações neurastênicas do 19.
Pode-se começar pelas declarações do cardinalato tucano-pefelê tentando associar as ações dos bandos criminosos ao PT. O raciocínio é simples: a crise da segurança prejudica o candidato Geraldo Alckmin e ajuda "nosso guia", portanto há uma conexão entre o PCC e o PT. Como o Conselheiro condenava a República, seu arraial seria parte de uma conspiração monarquista. Existiria uma carta da princesa Isabel endereçada a ele. Haveria oficiais austríacos em Monte Santo, como haveria guerrilheiros colombianos nos morros do Rio no ano passado. Os jagunços disparavam balas de aço de "armas modernas, que não possuímos", da mesma forma que a quadrilha de Fernandinho Beira-Mar conseguira um míssil para retirá-lo da penitenciária de Presidente Bernardes.
Há na idéia da "repetição de Canudos" um certo receio do conflito e uma certa ameaça com o desfecho. A idéia de sair por aí matando bandidos, amigos de bandidos, suspeitos e parentes de suspeitos faz algum sucesso, como fez sucesso a patriotada jacobina que mudou o nome da rua do Ouvidor. A tropa que bombardeava Canudos era politicamente correta: comemorou a Queda da Bastilha com uma salva de 21 tiros. Graças ao arquivo da correspondência do barão de Jeremoabo (Cícero Dantas, dono de 59 fazendas), sabe-se que os fazendeiros pediam a degola dos sobreviventes, pois tinham medo de um sertão invadido por "bandos errantes".
Não é Canudos que se repete. É o andar de cima de Pindorama que não muda. No campo traiçoeiro das semelhanças históricas, pode-se deixar o sertão de lado. Em 1897, no Rio, dizia-se que havia um novo Brasil logo adiante. Acabara-se de arrendar (escandalosamente) a Central do Brasil. O Conselheiro, o "povo de 13 de maio" e os "bandos errantes" eram um Brasil atrasado que atrapalhava o progresso e derrubava o valor dos papéis da dívida em Londres. Felizmente, o mais conhecido descendente do barão nunca se meteu em brigas sertanejas. Daniel Dantas criou a Brasil Telecom e tornou-se um dos marqueses da privataria dos anos 90.


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