São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 2005

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ELIO GASPARI

"Nosso Guia" se esqueceu do Paraguai

Lula foi a Portugal, à Espanha, à Itália e à Rússia. Coisa de uns 15 mil quilômetros com direito a duas "reuniões de cúpula". É a diplomacia do "nosso guia". Fez tudo isso enquanto um dos principais problemas das relações internacionais brasileiras ferve no Paraguai, a apenas 1.500 quilômetros da Granja do Torto.
A malha de contravenções que domina a região onde corre a fronteira dos dois países escorregou para a acusação de que criadores paraguaios têm a ver com os focos de febre aftosa descobertos em Mato Grosso do Sul. A doença provocou o fechamento parcial do mercado de 35 países para a carne brasileira e arrisca mutilar a exportações. É melhor falar mal da fome em Roma do que discutir contrabando em Assunção.
O ministro da Agricultura paraguaio, Gustavo Ruiz Díaz, defende seus pecuaristas e classifica a insinuação de que o gado tenha saído de suas fazendas como uma "jogada muito vil".
Lula não é a causa das malfeitorias dos pecuaristas da fronteira nem a febre aftosa surgiu no seu governo. Nenhum problema das relações com o Paraguai foi produzido por "nosso guia", mas durante seu mandarinato as relações entre os dois países vão de mal a muito pior.
Sucessivas administrações brasileiras toleraram o entreposto de contrabando de bens e moedas que se estabeleceu na região de Foz do Iguaçu. Ele deságua no crime organizado, numa lavanderia de caixa dois e em boiadas doentes. A diplomacia da dissimulação funcionou por décadas, até 2002, quando o governo dos Estados Unidos passou a acreditar que, entre os delinqüentes da Tríplice Fronteira, há focos de financiamento do terrorismo islâmico. Nessa hora, o jogo mudou de cacife.
O governo americano ofereceu um tratado comercial ao Paraguai e há sinais de que se arma a instalação de uma base militar em torno do aeroporto de Marechal Estigarribia, no Chaco, a 300 quilômetros da fronteira do Brasil e a 200 quilômetros da da Bolívia. Seria a segunda base dos Estados Unidos na América do Sul. A outra fica em Manta, no litoral do Equador, onde funciona um dos mais modernos aeroportos do continente. Lá o governo americano opera também uma flotilha para capturar barcos que transportam drogas ou cidadãos equatorianos que buscam trabalho nos Estados Unidos.
A tropa americana no Paraguai soma cerca de 400 militares. Como os súditos ingleses do século 19, estão fora do alcance das leis dos nativos. (O mesmo sucede no Equador e na Colômbia, por onde, em dois anos, passaram 7.000 soldados americanos.) A chancelaria paraguaia e o governo americano desmentem que exista o projeto de construção da base. Pode-se acreditar nos paraguaios. No governo americano, é mais difícil.
Em 1999, quando se denunciou a construção da base de Manta, o Pentágono disse que estava apenas reparando uma pista poeirenta. Dias depois, corrigiu-se.
Lula já falou bastante sobre a presença americana no Iraque. Sobre essa mesma presença embaixo da barriga do Brasil, nada. Em cinco séculos de civilização, a América do Sul teve a dádiva de não hospedar bases com efetivos relevantes de potências estrangeiras. Nenhum pesquisador encontrará nos arquivos militares brasileiros um plano de desembarque de tropas de Pindorama nos Estados Unidos. Planos americanos de desembarque no Brasil houve dois. Um é de 1941, quando se tratava de garantir às tropas aliadas o acesso aéreo à África. O outro é de 1964. (Isso fazendo-se de conta que o almirante Andrew Benham e sua frota ficaram neutros em 1894, durante a revolta da Armada.)
Lula faz o maior sucesso na Oropa, mas o descaso da relação com o Paraguai pode produzir a seguinte macumba: o Brasil fica com o bate-boca, e os americanos levam o tratado de comércio e a base militar.


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