São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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A desvalorização do real foi uma decisão solitária

DOS ENVIADOS ESPECIAIS

O presidente Fernando Henrique Cardoso conta que decidiu sozinho mudar a política cambial do seu primeiro mandato. Relata que desde o começo de 1998 pensava em desvalorizar o real forte, objeto das maiores polêmicas dos seus anos de governo e motivo, segundo seus críticos, dos juros altos, do aumento da dívida pública, do baixo crescimento e da fragilidade externa da economia.
O presidente chama seus críticos, nessa questão, de "engenheiros de obra feita". Argumenta que o real valorizado serviu para conter a inflação, que a mudança cambial é um assunto muito delicado e arriscado. Diz que, quando decidiu pela mudança, perdeu os principais assessores que pretendia nomear para conduzir o novo rumo da política econômica (os economistas André Lara Resende e José Roberto Mendonça de Barros) e que não contava com o apoio do ministro da Fazenda, Pedro Malan, e do presidente do Banco Central, Gustavo Franco, para mudar o câmbio. Malan chegou a pedir demissão, diz FHC.

Folha - O seu governo tem orgulho de ter estimulado a consciência da responsabilidade fiscal, da prudência financeira. Mas, em especial no primeiro mandato, a dívida pública cresceu e o controle do gasto público foi menor que em 1992 e 1993 e do que viria a haver depois de 1999. Também aumentou o famoso déficit externo. Não houve imprudência financeira? Isso não tornou o país mais vulnerável às crises externas, que começaram já em 1994? Não teria havido erro de análise, de perspectiva?
FHC -
Vamos lá. Primeiro, a questão relativa ao financiamento externo. Nós chegamos tarde à abundância de capitais. O Brasil para poder crescer precisa de capital. A poupança doméstica não é suficiente, não só pelo capital, também por causa de investimento, tecnologia etc. Mas quando houve um momento favorável, nós estávamos desorganizados, não pudemos aproveitar...

Folha - A partir de 1990.
FHC -
Pegamos um finalzinho dessa abundância de capitais. Se não pegássemos essa abundância de capitais, não teríamos feito o que fizemos. Mas o sinal trocou mais adiante, é verdade, em 1998. Mas, não obstante, até hoje o fluxo de capital do Brasil é bastante elevado. Quando fui ministro da Fazenda, recebíamos de US$ 1 bilhão a US$ 2 bilhões por ano. Este ano são US$ 16 bilhões. Está havendo uma tempestade, mas o fluxo continua muito forte, de capital direto, de investimentos, de capital financeiro. Mas, mesmo em janeiro de 98, havia de novo muito dinheiro aqui.
Quando ganhei a eleição, em 1994, veio a crise do México e eu pensei: "Meu Deus, está começando o círculo recessivo, "mala suerte"". Bom, estava, não é? Mas um círculo recessivo no capitalismo moderno, que não é depressivo necessariamente. E vieram quantas crises: teve em 1995, teve em 1997, teve 1999, teve 2001 e teve 2002. No conjunto, isso criou o momento atual, que chamam de "aversão ao risco": a liquidez secou e a desconfiança aumentou. Mas, mesmo assim, o Brasil continua recebendo investimentos. A chamada "vulnerabilidade externa" é até engraçada, porque nesse momento é evanescente, não é?

Folha - Mas qual o balanço?
FHC -
Nós chegamos a ter US$ 33 bilhões de investimentos direto num ano. Só a China fez mais do que nós, não é? E continua havendo esse fluxo. Se não tivéssemos aproveitado esse fluxo, teríamos tido muito menos capacidade de fazer o que foi feito, o que, acho, é pouco salientado.
No primeiro mandato, por causa do tipo de câmbio, que era o real valorizado, isso barateou as importações. Bom, então o reequipamento da indústria brasileira veio daí, veio daí a modernização, mas no entanto havia a crítica do "sucateamento" da indústria.

Folha - Algumas cadeias produtivas importantes, mais avançadas, foram quebradas.
FHC -
Sei, mas em calçado, têxtil, móveis, tudo está refeito. O capitalismo é um sistema cruel, destrói e reconstrói. Uns perdem e outros ganham. Aqui no caso houve uma mudança qualitativa e positiva. Está todo mundo competindo, exportando, tem financiamento para a exportação, que o BNDES dá. Aumentou a produtividade incessantemente da indústria. Na agricultura houve uma revolução. Nos serviços também, por causa de todo o negócio de telecomunicações e informática. Esse é o saldo que fica do que aconteceu no primeiro mandato.

Folha - Mas o déficit externo, o real forte, reservas em dólares para mantê-lo deixaram os juros altos...
FHC -
Por causa do tipo de câmbio, exatamente.

Folha - Mas até quando e quanto era prudente manter a política?
FHC -
É muito fácil ser engenheiro de obra feita. Na época ninguém queria mudar. Quem era contra [a política econômica do primeiro mandato"? Os que sempre foram, os que têm uma visão de economia isolada. Esses eram contra sempre e mais ninguém. Todo mundo era a favor da valorização, do tipo de câmbio. Em todas as tentativas de mudar isso aí, que era conversado e tal, se dizia que não era o momento etc.

Folha - Mas em 97 já havia uma oposição razoável [à política do real forte", dizia-se que tal política levaria a um problema de insolvência, que o país teria de ir ao FMI, que parecia imprudência financeira sustentar aquele nível de reservas e real [forte".
FHC -
Acho que em 1998 chegamos a essa situação, isso é indiscutível. Você pode discutir hoje, se eu pudesse refazer a história, se eu teria mudado [a política cambial" no começo de 98, no comecinho, porque depois de março não daria mais...

Folha - Por quê?
FHC -
O ambiente estava tenso demais. Muito tenso. Se fosse mexer, estragava tudo. Esse negócio de câmbio é muito difícil. Não se esqueça de que nós tentamos acertar o câmbio desde sempre.
Por outro lado, houve anos de crescimento econômico razoável nesses oito anos, de mais de 4%, quando não houve crise financeira internacional.
E nós estamos analisando sempre como se políticas econômicas fossem capazes de alterar processos de acumulação [de capital", que têm outra dinâmica. Continuo dizendo que não sou neoliberal. Processos estruturais pesam.

Folha - A situação da dívida pública foi deteriorada por causa da acumulação de reservas [juros altos" e, ainda, devido à perspectiva de desvalorização do real, você começou a ter a perspectiva de indexação da dívida pública ao dólar...
FHC -
A dívida pública basicamente foi a explicitação de dívidas já existentes. Reconhecemos dívidas de Estados e municípios...

Folha - Mas essas dívidas inflaram também por causa dos juros.
FHC -
Quando você aumenta a dívida, aumentam os juros. Como é que faz o saneamento? Não tem jeito. Outra coisa são os esqueletos, que foram reconhecidos.

Folha - Mas existe uma controvérsia a respeito do tamanho desses esqueletos na dívida...
FHC -
Eu não tenho controvérsia, tenho os dados do Tesouro, que analisa. Não há controvérsia, não, existe vontade de catar milho. Aí você vai achar pêlo em ovo.

Folha - Mas juros altos para manter reservas e o real forte são pêlo em ovo? Parte dos juros era devida à manutenção de reservas.
FHC -
Uma parte, mas quando acaba isso [a política cambial do Real, no começo de 1999", os juros continuam altos. Por quê?

Folha - Mas há um diferencial, não é? Na época, 98, o juro real médio devia ser uns 26%, depois caiu para uns 14% ao ano.
FHC -
Tudo bem, agora é 14%.

Folha - Esse diferencial é relevante, ao longo dos anos.
FHC -
Tudo bem, não nego. Nunca nego evidências, quer dizer, isso é verdade. Agora, tudo isso você pode ver agora, ex post. No momento, eu estava segurando a inflação. "Ah, por que não mudou o câmbio?" E a memória inflacionária? E a indexação? Não havia isso de "populismo cambial". Ninguém estava preocupado com isso.

Folha - O senhor, em 1998, foi a favor da mudança cambial e da saída de Gustavo Franco. O ministro Pedro Malan era contra?
FHC -
Foi.

Folha - O ministro Malan queria continuar a política [cambial"?
FHC -
As coisas sempre são mais complicadas. Em 1998, quando veio a crise da Rússia, a partir de agosto, a coisa complicou muito. Em setembro, fiz um discurso no Itamaraty dizendo que iríamos apertar a política fiscal e ir ao FMI, antes da eleição. Foi o que ocorreu. O FMI deu um empréstimo importante.
Havia muita briga no FMI nessa ocasião. Um setor deles, que é o setor mais ortodoxo, achava que tínhamos de mudar, fazia várias propostas. Uma delas, de fazer como a Argentina [adotar o câmbio fixo e a livre conversibilidade entre moeda nacional e estrangeira". Não falavam em flutuação de câmbio, mas em acelerar a desvalorização. Outros achavam que dava para fazer [a flutuação cambial". Afinal, prevaleceu esse ponto de vista que dava para ir mantendo a mecânica.

Folha - Como foi a decisão?
FHC -
Quando o FMI deu a chancela e o empréstimo, o Congresso, em dezembro, votou uma medida que derrubou a contribuição dos inativos, por maioria simples. Isso foi lido lá fora como o seguinte: "Ah, esses brasileiros estão fazendo o que os outros [países" fizeram: pegaram os nossos bilhões de dólares, vão pegar os reais deles e mandar para fora em dólares com o câmbio baixo".
Fomos surpreendidos pelo Congresso. Os Congressos não funcionam de maneira domesticada, nunca. O Congresso, o tempo todo, dá sinal da sua presença autônoma. Então, ele vota a favor, a favor e, de repente... Foi uma cochilada e aquilo custou caríssimo. O efeito do empréstimo foi anulado e aí as reservas começaram a cair. Bom, mas, muito antes disso eu já estava disposto a mudar a política, já estava disposto a provocar uma mudança no câmbio.

Folha - O que aconteceu?
FHC -
O que dificultou muito foi a questão do grampo [do BNDES", em que a Folha teve papel decisivo, além do [senador Pedro" Simon [senador do PMDB, oposicionista". Nesse momento, as pessoas que estavam favoráveis a uma outra visão foram embora do governo. Era uma situação muito delicada, mas havia a capacidade de operação, que não era questão política, é questão de operação, como é que você move a máquina, com que nomes. Eu estava com poucas cartas para jogar e ainda assim eu insisti. Nesse momento, acho que o Malan preferia manter o Gustavo [Franco".
Como todo mundo sabe, tenho um enorme respeito pelo Gustavo, gosto do Gustavo. Pedi inúmeras vezes ao Gustavo que me apresentasse propostas de uma aceleração maior no ajuste do câmbio. Mas ele tinha uma visão diferente. Achava que era questão de persistir e que os fluxos de capital voltariam. Aí eu decidi mudar. Sozinho, praticamente, porque os que podiam me ajudar na mudança estavam longe.

Folha - O André Lara [Resende"?
FHC -
André Lara, Beto [José Roberto" Mendonça [de Barros".

Folha - Pedro Malan continuaria?
FHC -
Normalmente.

Folha - Como o senhor iria conciliar isso, presidente?
FHC -
Ah, na política você tem que conciliar o inconciliável. Sempre. O tempo todo é isso. Você não pode jogar fora pessoas de valor intelectual, político, profissional, quando o Brasil é escasso nisso. Gente da qualidade do Malan é rara. Ficar oito anos no Ministério da Fazenda, trabalhando sem parar, com competência, com compostura, é muito difícil encontrar gente assim. Gente do brilho do André [Lara Resende" também é muito difícil você encontrar, o peito do [Luiz Carlos" Mendonça [ex-ministro das Comunicações", enfim, cada um tem suas características.

Folha - Foi uma mudança radical. O ministro Malan não pensou em...
FHC -
O ministro Malan pediu demissão. Por escrito. Eu não concordei, porque é preciso não esquecer de um outro lado que nós não estamos ainda falando. Depois da desvalorização, houve uma corrida aos bancos em fevereiro. Como se resolve? Hoje, para poder fazer funcionar uma economia como a brasileira, que já é relativamente integrada aos circuitos internacionais, você tem que ter credibilidade. É uma coisa que custa a gente admitir, uma inversão de uma das frases do Auguste Comte [os homens são cada vez mais dirigidos pelo passado". Agora, é o contrário, somos dirigidos pelo futuro.

Folha - Pelas expectativas.
FHC -
Pelas expectativas. Tem que haver credibilidade. E o Malan tem muita credibilidade dentro e fora do Brasil. As pessoas me diziam, fora do Brasil, apesar de tudo o que aconteceu: "Esse homem é sério". Vocês imaginam o que vale isso no mundo de hoje?
Malan tinha credibilidade e a manteve. Não é fácil você ter gente aqui no Brasil que possa pegar o telefone e falar com o presidente do Banco Central de qualquer um dos países do G-20, com os organismos internacionais. E isso é necessário, tem que ter uma rede. Não adianta você dizer a coisa certa. É preciso que a pessoa que esteja dizendo seja ouvida.
Mas, voltando ao tema principal. Claro que eu podia ter mudado, em certos momentos você pode até mudar. Agora, isso se vê com clareza hoje. Na hora em que se queria a mudança, quem queria, efetivamente, não é? Quem podia fazê-la? Não basta querer. Que forças sociais e que expressões, até pessoais, para poder fazer a transformação?
Acho que a questão da política fiscal, por exemplo, até uma certa data -você tem razão-, ela foi mais frouxa. Até porque havia uma expectativa de fazer coisas. Quando a gente diz que o gasto social do Brasil aumentou incessantemente, é verdade.

Folha - Mas o crescimento foi pequeno.
FHC -
A capacidade que o governo tem de produzir o crescimento da economia é relativa. O crescimento depende de muitas coisas, depende do fluxo externo de capitais, depende da absorção de tecnologia, depende da competição, depende de circuitos de crédito, depende de muitas coisas, que não é uma política econômica que faz. No passado, se imaginava que poderia se decidir tudo com um "projeto nacional". Quando alguns intelectuais falam na "falta de um projeto nacional" estão pensando nos anos 60: um grupo de intelectuais definia o "projeto nacional" junto do Estado, o Estado então punha metas e facilitava os juros, e isso e aquilo.

Folha - Mas o senhor também tem um "projeto nacional" e seu grupo de intelectuais.
FHC -
Mas de outra natureza. Aposto muito mais na sociedade do que no Estado. Acho que o mundo moderno hoje funciona muito mais em função da capacidade que a sociedade tem de se organizar e de avançar do que do Estado. As pessoas com uma visão antiga pensam que é progressista acreditar mais no Estado.


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