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ENTREVISTA DA 2ª/MARIA TEREZA SADEK
Pesquisadora se surpreende com a quantidade de parentes de juízes empregados e vê fortalecimento do CNJ
Dimensão do nepotismo na Justiça assusta, diz analista
FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Uma das maiores autoridades
sobre o Judiciário brasileiro, a
pesquisadora Maria Tereza Sadek
ficou impressionada com o tamanho do nepotismo na magistratura. A dimensão dessa distorção só
veio à tona com a resistência de
tribunais estaduais à resolução do
CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que determinou que tribunais
demitissem parentes de juízes
contratados sem concurso.
Professora de pós-graduação do
Departamento de Ciência Política
da USP, organizadora de várias
pesquisas sobre o Judiciário, Sadek admite que a abertura dessa
"caixa preta" -ela não gosta da
expressão usada por Lula- deverá render dividendos políticos
num ano eleitoral e reconhece
que é um ganho do governo o fato
de a reforma do Judiciário ter saído do papel.
Ela atribui ao próprio Judiciário
o maior mérito da decisão do
CNJ, respaldada pela votação do
Supremo Tribunal Federal na
quinta-feira, que terminou com o
placar de 9 a 1. "É muito simbólico
que a AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros], que era
contrária ao CNJ, não tenha sido
corporativa e hoje esteja liderando o combate ao nepotismo".
Para comentar o que deve mudar no Judiciário, Sadek concedeu
entrevista à Folha, em São Paulo,
na última sexta-feira.
Folha - A sra. discorda da expressão "caixa preta", usada por Lula
no início do governo. No entanto,
nunca o Judiciário teve as entranhas tão expostas. Ele tinha razão?
Maria Tereza Sadek - Eu não gosto da expressão. A "caixa preta"
guarda o segredo de uma máquina que funciona. No Judiciário,
não há informações.
Folha - Será que ele quis dizer
que o Judiciário esconde suas distorções, inclusive o nepotismo?
Sadek - Se for no sentido de que
o Judiciário não é transparente, eu
concordo com o presidente Lula.
Folha - O apelo popular da moralização dos tribunais pode ajudar o
discurso de Lula num ano eleitoral?
Sadek - Sem dúvida. A questão
do nepotismo é gravíssima.
Folha - O ministro da Justiça,
Márcio Thomaz Bastos, tem explorado a ação da Polícia Federal,
apontada por ele como fato positivo para o governo Lula. O ataque
ao nepotismo no Judiciário pode
vir a ser um trunfo eleitoral?
Sadek - Eu acho que tudo pode
ser um trunfo político, de um lado
ou de outro. A verdade é que a reforma do Judiciário saiu do papel
depois de mais de uma década de
discussão. Isso, de fato, é um ganho do governo Lula.
Folha - Mudou o debate?
Sadek - É um ganho para o debate ter vindo a público a questão do
Judiciário. Criou-se uma Secretaria da Reforma do Judiciário,
muito criticada de início, que está
prestando um serviço relevante,
reconhecido por todos os operadores do Direito. O tema veio para a ordem do dia sem a idéia do
revanchismo, como sucedeu
quando a reforma foi discutida
pelo senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA).
Folha - Quem está tendo um papel mais relevante, agora?
Sadek - A magistratura se mobilizou, hoje é diferente em relação
ao que era no passado. A pesquisa
que fizemos para a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) mostra a magistratura como
um retrato em movimento.
Folha - O que mudou?
Sadek - Foi muito simbólico que
a Ação Declaratória de Constitucionalidade [sobre a resolução
antinepotismo] tenha sido proposta pela AMB. Isso, para mim,
foi o fato mais relevante. No começo, a AMB foi contra o CNJ.
Hoje está à frente. Foi um ato de
coragem muito simbólico. Talvez
marque um ponto de inflexão.
Folha - Como isso ocorreu?
Sadek - Acusava-se a AMB de se
orientar por questões muito corporativas. No caso do nepotismo,
a entidade não foi corporativa.
Vários órgãos, agentes políticos,
poderiam ter proposto a ação no
STF. Mas quem resolveu propor
foi a AMB.
Folha - Ninguém foi mais criticado no Judiciário do que o ministro
Nelson Jobim, por suas ambições
políticas. Em que medida essas mudanças no Judiciário se devem à
atuação do presidente do STF?
Sadek - A atuação política de Jobim e do Supremo se deve ao modelo constitucional adotado para
o Poder Judiciário. Esse modelo
combina duas coisas vistas como
antagônicas: a questão técnica, ou
mais propriamente jurídica, com
a questão política. O fato concreto
é que o Supremo e o Judiciário como um todo têm papel político,
segundo os preceitos da Constituição de 88. Quando os políticos
apelavam para o Supremo, apelavam menos na condição de um
órgão político do que de um órgão de cúpula do Judiciário, que
tem que garantir os direitos individuais. Apelavam nessa direção.
Folha - Nos episódios do "mensalão", isso mudou...
Sadek - Outra coisa é o Supremo
adentrar nas questões especificamente legislativas. Ele poderia ter
recuado. Foi uma estratégia, uma
opção dos integrantes do Supremo que concederam liminares
para as pessoas não serem obrigadas a falar a verdade nas CPIs.
Folha - E a imagem de Jobim?
Sadek - A atitude mais político-partidária, ele dizer que vai ser ou
não candidato, ou mesmo deixando a questão no ar, isso é muito prejudicial para a magistratura.
Esse aspecto é muito criticável.
Mas Jobim desempenhou um papel marcante, ao assumir claramente que queria fazer uma reforma do Judiciário. Ele liderou a
criação de estatísticas do Judiciário, liderou discussões sobre a reforma. No CNJ, ele enfrentou o
problema.
Folha - A AMB pretende combater
o nepotismo no Executivo e no Legislativo. O que distingue o nepotismo no Judiciário do nepotismo
nos outros Poderes?
Sadek - No Judiciário, ele é mais
longo no tempo. Os políticos têm
mandatos. Se não são reeleitos,
vão embora os parentes. No Judiciário, é mais permanente, passa
de pai para filho. Não há mais como sustentar a desigualdade intrínseca no nepotismo. Serviço
público tem que ser profissional,
impessoal, com ingresso por mérito, com carreira e valorização
pela qualidade individual. O nepotismo é o avesso de tudo isso e é
execrado por todos. No STF, o
único voto contrário [do ministro
Marco Aurélio] não foi a favor do
nepotismo. O ministro Marco
Aurélio entendeu que não é atribuição do CNJ legislar.
Folha - A sra. faz pesquisas sobre
o Judiciário e conhece a realidade
do setor. Mesmo assim, a dimensão
do nepotismo a assustou?
Sadek - Os números assustam.
Ninguém tinha a mais remota
idéia de qual era o tamanho do
nepotismo no Judiciário. Segundo um levantamento, que não se
sabe se é completo, chegaria a
2.000 o número de casos apontados. Chama a atenção o fato de
que um Estado onde essa prática
já era proibida pela Constituição,
caso de São Paulo, não tem nenhum caso de nepotismo. O nepotismo não é um tema para o Judiciário de São Paulo.
Folha - Como a sra. viu as reações
nos Estados?
Sadek - As reações vieram de Estados muito diferentes entre si.
Tanto de Estados normalmente
vistos como progressistas como
de Estados tidos como incentivadores de práticas patriarcais.
Folha - O que foi mais decisivo
nos Estados: a reação dos que querem manter o nepotismo ou a idéia
de que o CNJ não pode legislar?
Sadek - Acho que isso foi usado
como argumento de origem legal
para a concessão das liminares.
Obviamente, isso significava a
continuidade da prática nepotista. Quanto ao problema da legislação, advogado pode fazer qualquer defesa. Sempre vai achar
apoio em alguma coisa para continuar a defender uma prática
condenável.
Folha - O que talvez explicaria o
resultado de nove a um no STF: a
moralidade pública prevaleceu no
confronto com a legalidade...
Sadek - Claro. Acho que esse é o
melhor exemplo.
Folha - O combate ao nepotismo
terá efeitos no Judiciário, em termos de mais eficiência?
Sadek - Acho que não vai mudar, em termos de ser mais eficiente, de ser mais rápido. Mas
tem um efeito simbólico de primeira grandeza.
Folha - O nepotismo pode esconder outras irregularidades? O nepotismo cruzado envolve trocas de
favores. Isso pode ser estendido a
outras práticas, não?
Sadek - Concordo inteiramente.
Afeta a imparcialidade. Mas chama a atenção o fato de que a rejeição ao nepotismo é muito alta no
Judiciário.
Folha - E é maior entre os juízes
mais jovens, de primeira instância.
Sadek - Claro, não são esses os
que nomeiam... A oposição à contratação de parentes é de 67,9%
no total. Entre as mulheres, chega
a 70%. Entre juízes de primeiro
grau, é de 71%. É de 58% entre juízes de segundo grau. O percentual
contra o nepotismo diminui à
medida que aumenta o número
de anos na magistratura. A prática era vista como natural pelos
juízes mais antigos.
Folha - Qual é a importância da
decisão do STF?
Sadek - Reforçou o CNJ, uma
instituição jovem, num processo
de construção de identidade. Foi
uma injeção de fortalecimento...
Folha - Quando o conselho estava
sendo mais atacado...
Sadek - Em segundo lugar, marcou uma inflexão importante na
mais importante associação representativa dos magistrados,
que é a AMB. A entidade cumpriu
um papel importante, uma resolução republicana, numa atitude
avessa ao corporativismo. Em terceiro lugar, há o efeito simbólico
de uma medida como essa, que, a
rigor, nem sequer seria necessária, porque a Constituição tem vários artigos estabelecendo que
tem que profissionalizar o serviço
público, que todos são iguais perante a lei, que não pode ter nomeações com privilégios.
Folha - Com a decisão do STF, o
Judiciário terá mais legitimidade
para exigir que o Legislativo e o
Executivo cortem na carne?
Sadek - Sim, exigindo um serviço público mais enxuto, mais profissional e eficiente para aqueles
que os sustentam, que é o povo.
Folha - O cumprimento da resolução antinepotismo será fiscalizado
pelo Tribunal de Contas da União.
Juízes criticavam a idéia de um órgão externo, quando, a rigor, já cabia ao TCU ser um órgão fiscalizador das contas do Judiciário...
Sadek - O TCU é ligado ao Legislativo. Eu acho que sofreu essa falta de fortalecimento, não desempenhou esse papel com eficiência.
Folha - Qual deverá ser, agora, a
reação dos tribunais?
Sadek - O Jobim deu o caminho
das pedras, ao dizer que cabe ao
Ministério Público fiscalizar, que
se façam denúncias...
Folha - Não é só questão de lei...
Sadek - "Decisão judicial não se
discute, cumpre-se", é uma frase
muito conhecida. Cabe agora aos
tribunais fazerem isso.
Folha - Quais são outras distorções que o CNJ precisa atacar?
Sadek - Tem que atacar com
muita firmeza a questão da prestação de contas do Judiciário, a
produção de informações. Sem isso, você não sabe nem por onde
atacar. A Justiça, muito mais do
que "caixa preta", é uma instituição desconhecida, inclusive para
os magistrados.
Folha - Há três anos, a sra. dizia
que a reforma do Judiciário dependia de forças políticas favoráveis às
mudanças. Esse cenário mudou em
pouco tempo, não?
Sadek - Mudou muito. Quando
você imaginaria um percentual
tão alto da magistratura fazendo
críticas ao seu próprio desempenho? Os magistrados têm clareza
de que a Justiça, como está, é
ruim. Os juízes trabalham muito,
mas não trabalham para distribuir Justiça.
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