São Paulo, segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

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ENTREVISTA DA 2ª/MARIA TEREZA SADEK

Pesquisadora se surpreende com a quantidade de parentes de juízes empregados e vê fortalecimento do CNJ

Dimensão do nepotismo na Justiça assusta, diz analista

FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma das maiores autoridades sobre o Judiciário brasileiro, a pesquisadora Maria Tereza Sadek ficou impressionada com o tamanho do nepotismo na magistratura. A dimensão dessa distorção só veio à tona com a resistência de tribunais estaduais à resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que determinou que tribunais demitissem parentes de juízes contratados sem concurso.
Professora de pós-graduação do Departamento de Ciência Política da USP, organizadora de várias pesquisas sobre o Judiciário, Sadek admite que a abertura dessa "caixa preta" -ela não gosta da expressão usada por Lula- deverá render dividendos políticos num ano eleitoral e reconhece que é um ganho do governo o fato de a reforma do Judiciário ter saído do papel.
Ela atribui ao próprio Judiciário o maior mérito da decisão do CNJ, respaldada pela votação do Supremo Tribunal Federal na quinta-feira, que terminou com o placar de 9 a 1. "É muito simbólico que a AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros], que era contrária ao CNJ, não tenha sido corporativa e hoje esteja liderando o combate ao nepotismo".
Para comentar o que deve mudar no Judiciário, Sadek concedeu entrevista à Folha, em São Paulo, na última sexta-feira.

Folha - A sra. discorda da expressão "caixa preta", usada por Lula no início do governo. No entanto, nunca o Judiciário teve as entranhas tão expostas. Ele tinha razão?
Maria Tereza Sadek -
Eu não gosto da expressão. A "caixa preta" guarda o segredo de uma máquina que funciona. No Judiciário, não há informações.

Folha - Será que ele quis dizer que o Judiciário esconde suas distorções, inclusive o nepotismo?
Sadek -
Se for no sentido de que o Judiciário não é transparente, eu concordo com o presidente Lula.

Folha - O apelo popular da moralização dos tribunais pode ajudar o discurso de Lula num ano eleitoral?
Sadek -
Sem dúvida. A questão do nepotismo é gravíssima.

Folha - O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, tem explorado a ação da Polícia Federal, apontada por ele como fato positivo para o governo Lula. O ataque ao nepotismo no Judiciário pode vir a ser um trunfo eleitoral?
Sadek -
Eu acho que tudo pode ser um trunfo político, de um lado ou de outro. A verdade é que a reforma do Judiciário saiu do papel depois de mais de uma década de discussão. Isso, de fato, é um ganho do governo Lula.

Folha - Mudou o debate?
Sadek -
É um ganho para o debate ter vindo a público a questão do Judiciário. Criou-se uma Secretaria da Reforma do Judiciário, muito criticada de início, que está prestando um serviço relevante, reconhecido por todos os operadores do Direito. O tema veio para a ordem do dia sem a idéia do revanchismo, como sucedeu quando a reforma foi discutida pelo senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA).

Folha - Quem está tendo um papel mais relevante, agora?
Sadek -
A magistratura se mobilizou, hoje é diferente em relação ao que era no passado. A pesquisa que fizemos para a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) mostra a magistratura como um retrato em movimento.

Folha - O que mudou?
Sadek -
Foi muito simbólico que a Ação Declaratória de Constitucionalidade [sobre a resolução antinepotismo] tenha sido proposta pela AMB. Isso, para mim, foi o fato mais relevante. No começo, a AMB foi contra o CNJ. Hoje está à frente. Foi um ato de coragem muito simbólico. Talvez marque um ponto de inflexão.

Folha - Como isso ocorreu?
Sadek -
Acusava-se a AMB de se orientar por questões muito corporativas. No caso do nepotismo, a entidade não foi corporativa. Vários órgãos, agentes políticos, poderiam ter proposto a ação no STF. Mas quem resolveu propor foi a AMB.

Folha - Ninguém foi mais criticado no Judiciário do que o ministro Nelson Jobim, por suas ambições políticas. Em que medida essas mudanças no Judiciário se devem à atuação do presidente do STF?
Sadek -
A atuação política de Jobim e do Supremo se deve ao modelo constitucional adotado para o Poder Judiciário. Esse modelo combina duas coisas vistas como antagônicas: a questão técnica, ou mais propriamente jurídica, com a questão política. O fato concreto é que o Supremo e o Judiciário como um todo têm papel político, segundo os preceitos da Constituição de 88. Quando os políticos apelavam para o Supremo, apelavam menos na condição de um órgão político do que de um órgão de cúpula do Judiciário, que tem que garantir os direitos individuais. Apelavam nessa direção.

Folha - Nos episódios do "mensalão", isso mudou...
Sadek -
Outra coisa é o Supremo adentrar nas questões especificamente legislativas. Ele poderia ter recuado. Foi uma estratégia, uma opção dos integrantes do Supremo que concederam liminares para as pessoas não serem obrigadas a falar a verdade nas CPIs.

Folha - E a imagem de Jobim?
Sadek -
A atitude mais político-partidária, ele dizer que vai ser ou não candidato, ou mesmo deixando a questão no ar, isso é muito prejudicial para a magistratura. Esse aspecto é muito criticável. Mas Jobim desempenhou um papel marcante, ao assumir claramente que queria fazer uma reforma do Judiciário. Ele liderou a criação de estatísticas do Judiciário, liderou discussões sobre a reforma. No CNJ, ele enfrentou o problema.

Folha - A AMB pretende combater o nepotismo no Executivo e no Legislativo. O que distingue o nepotismo no Judiciário do nepotismo nos outros Poderes?
Sadek -
No Judiciário, ele é mais longo no tempo. Os políticos têm mandatos. Se não são reeleitos, vão embora os parentes. No Judiciário, é mais permanente, passa de pai para filho. Não há mais como sustentar a desigualdade intrínseca no nepotismo. Serviço público tem que ser profissional, impessoal, com ingresso por mérito, com carreira e valorização pela qualidade individual. O nepotismo é o avesso de tudo isso e é execrado por todos. No STF, o único voto contrário [do ministro Marco Aurélio] não foi a favor do nepotismo. O ministro Marco Aurélio entendeu que não é atribuição do CNJ legislar.

Folha - A sra. faz pesquisas sobre o Judiciário e conhece a realidade do setor. Mesmo assim, a dimensão do nepotismo a assustou?
Sadek -
Os números assustam. Ninguém tinha a mais remota idéia de qual era o tamanho do nepotismo no Judiciário. Segundo um levantamento, que não se sabe se é completo, chegaria a 2.000 o número de casos apontados. Chama a atenção o fato de que um Estado onde essa prática já era proibida pela Constituição, caso de São Paulo, não tem nenhum caso de nepotismo. O nepotismo não é um tema para o Judiciário de São Paulo.

Folha - Como a sra. viu as reações nos Estados?
Sadek -
As reações vieram de Estados muito diferentes entre si. Tanto de Estados normalmente vistos como progressistas como de Estados tidos como incentivadores de práticas patriarcais.

Folha - O que foi mais decisivo nos Estados: a reação dos que querem manter o nepotismo ou a idéia de que o CNJ não pode legislar?
Sadek -
Acho que isso foi usado como argumento de origem legal para a concessão das liminares. Obviamente, isso significava a continuidade da prática nepotista. Quanto ao problema da legislação, advogado pode fazer qualquer defesa. Sempre vai achar apoio em alguma coisa para continuar a defender uma prática condenável.

Folha - O que talvez explicaria o resultado de nove a um no STF: a moralidade pública prevaleceu no confronto com a legalidade...
Sadek -
Claro. Acho que esse é o melhor exemplo.

Folha - O combate ao nepotismo terá efeitos no Judiciário, em termos de mais eficiência?
Sadek -
Acho que não vai mudar, em termos de ser mais eficiente, de ser mais rápido. Mas tem um efeito simbólico de primeira grandeza.

Folha - O nepotismo pode esconder outras irregularidades? O nepotismo cruzado envolve trocas de favores. Isso pode ser estendido a outras práticas, não?
Sadek -
Concordo inteiramente. Afeta a imparcialidade. Mas chama a atenção o fato de que a rejeição ao nepotismo é muito alta no Judiciário.

Folha - E é maior entre os juízes mais jovens, de primeira instância.
Sadek -
Claro, não são esses os que nomeiam... A oposição à contratação de parentes é de 67,9% no total. Entre as mulheres, chega a 70%. Entre juízes de primeiro grau, é de 71%. É de 58% entre juízes de segundo grau. O percentual contra o nepotismo diminui à medida que aumenta o número de anos na magistratura. A prática era vista como natural pelos juízes mais antigos.

Folha - Qual é a importância da decisão do STF?
Sadek -
Reforçou o CNJ, uma instituição jovem, num processo de construção de identidade. Foi uma injeção de fortalecimento...

Folha - Quando o conselho estava sendo mais atacado...
Sadek -
Em segundo lugar, marcou uma inflexão importante na mais importante associação representativa dos magistrados, que é a AMB. A entidade cumpriu um papel importante, uma resolução republicana, numa atitude avessa ao corporativismo. Em terceiro lugar, há o efeito simbólico de uma medida como essa, que, a rigor, nem sequer seria necessária, porque a Constituição tem vários artigos estabelecendo que tem que profissionalizar o serviço público, que todos são iguais perante a lei, que não pode ter nomeações com privilégios.

Folha - Com a decisão do STF, o Judiciário terá mais legitimidade para exigir que o Legislativo e o Executivo cortem na carne?
Sadek -
Sim, exigindo um serviço público mais enxuto, mais profissional e eficiente para aqueles que os sustentam, que é o povo.

Folha - O cumprimento da resolução antinepotismo será fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União. Juízes criticavam a idéia de um órgão externo, quando, a rigor, já cabia ao TCU ser um órgão fiscalizador das contas do Judiciário...
Sadek -
O TCU é ligado ao Legislativo. Eu acho que sofreu essa falta de fortalecimento, não desempenhou esse papel com eficiência.

Folha - Qual deverá ser, agora, a reação dos tribunais?
Sadek -
O Jobim deu o caminho das pedras, ao dizer que cabe ao Ministério Público fiscalizar, que se façam denúncias...

Folha - Não é só questão de lei...
Sadek -
"Decisão judicial não se discute, cumpre-se", é uma frase muito conhecida. Cabe agora aos tribunais fazerem isso.

Folha - Quais são outras distorções que o CNJ precisa atacar?
Sadek -
Tem que atacar com muita firmeza a questão da prestação de contas do Judiciário, a produção de informações. Sem isso, você não sabe nem por onde atacar. A Justiça, muito mais do que "caixa preta", é uma instituição desconhecida, inclusive para os magistrados.

Folha - Há três anos, a sra. dizia que a reforma do Judiciário dependia de forças políticas favoráveis às mudanças. Esse cenário mudou em pouco tempo, não?
Sadek -
Mudou muito. Quando você imaginaria um percentual tão alto da magistratura fazendo críticas ao seu próprio desempenho? Os magistrados têm clareza de que a Justiça, como está, é ruim. Os juízes trabalham muito, mas não trabalham para distribuir Justiça.


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