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ENTREVISTA DA 2ª SAULO RAMOS
Para o consultor-geral da República e ex-ministro da Justiça, sentimento ético
do brasileiro tem sido agredido; em seu livro, narra detalhes da vida política do país
Corrupção impune é o que mais frustra a sociedade
O livro de memórias "Código da Vida", de Saulo Ramos, 76, consultor-geral da República e ministro da Justiça no governo Sarney (1985-90), está nas listas dos mais
vendidos há 11 semanas, com 30 mil cópias comercializadas. Ele narra episódios da vida política brasileira dos quais foi personagem ou testemunha nos últimos
40 anos, como a renúncia de Jânio Quadros, em 1961
(de quem foi oficial de gabinete), "um erro jurídico espetacular". Ele falou à Folha sobre algumas dessas histórias por e-mail.
(FREDERICO VASCONCELOS)
FOLHA - Em seu livro, o sr. entremeou a narrativa com a defesa bem-sucedida de um pai injustamente acusado, pela ex-mulher, de abusar
sexualmente dos filhos. Foi opção
para manter o interesse do leitor ou
um de seus casos mais relevantes?
SAULO RAMOS - Embora não
tendo pretensão de fazer literatura, tentei fazer algo diferente
em matéria de autobiografia.
Para muitos, é chata a narrativa
que começa dizendo o dia em
que nasceu, o que fez e o que
pretendia fazer. Se há um fato
que pode ser narrado em forma
de romance e de suspense, por
que não fazê-lo?
Na minha vida, como acontece com todos os advogados,
houve muitos casos complexos,
dignos de novelas policiais. Escolhi um deles, dentre os que
me permitem guardar o anonimato dos personagens. Afinal,
se o caso é verdadeiro e aconteceu comigo, faz parte da minha
biografia. Logo, posso contá-lo
da forma que entender ser a
mais fiel, além de atraente para
os leitores. Isso talvez explique,
entre outras razões, a acolhida
que o livro está obtendo.
FOLHA - O que o levou a revelar,
com boa dose de indiscrição e maledicência, episódios que viveu?
RAMOS - O ilustre jornalista
afirma que teve o prazer de ler
meu livro. Como pode haver
prazer em ler aquilo que considerou erradamente maledicências? Demonstrar, por exemplo, com fatos, ignorados por muitos, mas conhecidos de especialistas em estudos da América Latina, que Che Guevara
foi vítima de traição para ser assassinado na Bolívia e contar
detalhes de uma trama misteriosa é maledicência? Apontar
minúcias de corrupção política
tal como no caso do mensalão,
com todos os criminosos ainda
impunes, é maledicência?
FOLHA - É surpreendente o telefonema em que o sr. diz ao ministro do
STF José Celso de Mello Filho: "Você
é um juiz de merda". Essa revelação,
no livro, trouxe-lhe algum problema? O ministro se manifestou?
RAMOS - Nem uma coisa, nem
outra.
FOLHA - O sr. narra algumas situações nada ortodoxas, algumas obtidas com a "macia conversa de advogado". Jânio Quadros estava errado,
ao indagar se não seria falsidade
ideológica assinar um decreto quando não era mais presidente?
RAMOS - Claro que estava. Se o
decreto havia sido publicado no
"Diário Oficial" quando ele era
presidente, tornando público o
ato de vontade do chefe do Executivo que o mandara lavrar, a
assinatura no documento lavrado aperfeiçoou o ato formal.
Falsidade ideológica é omitir,
em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou nele inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita a fim de prejudicar direito. Assinar um decreto já publicado é inserir o que nele devia constar, corrigindo-se a omissão material.
Aliás, Jânio, apesar de advogado, conhecia pouco de direito. A renúncia foi um erro jurídico espetacular.
FOLHA - O autor de "Código da Vida" contrariou códigos de ética ao
sugerir a um juiz rasgar a página de
um despacho, colocando outra no
lugar, numerada e rubricada?
RAMOS - A Justiça Federal queria apagar de sua história aquele terrível despacho de um de
seus juízes designando audiência para ouvir a autoridade coatora em mandado de segurança. Pecado mortal, absurdo teratológico. Eu devia ter sugerido, e teria sido mais correto,
rasgar-se o ato de nomeação
daquele juiz.
Por que o espanto? No livro
narro fato mais grave: furtei um
processo inteiro da Justiça criminal para livrar um prefeito
de Santos e seu chefe-de-gabinete das garras dos militares na
ditadura. Há momentos em
que o valor ético não está na
dança de minuetos ou na observação de etiquetas, mas na salvação de vidas, de honras e das
liberdades individuais.
FOLHA - Para deixar sua marca em
habeas corpus que redigiu, mas que
Oscar Pedroso Horta assinou, o sr.
colocou na peça uma inexistente
obra de Direito Penal de sua autoria.
"Foi meu jeito de assinar", disse, no
livro. Quando defendeu o senador
Humberto Lucena, da Paraíba, que
usou a gráfica do Senado para imprimir calendários com sua fotografia,
o sr. não assinou o recurso, para
"não se expor". Seriam contraditórios esses dois comportamentos?
RAMOS - São situações diferentes. Quem ler o livro entenderá
as razões de ambos os comportamentos. Em uma, pretendia
registrar a autoria de uma peça
jurídica escrita por mim. Na
outra, não aparecendo como
advogado, tinha maior liberdade para criticar o erro do Superior Tribunal Eleitoral e lutar
pelos votos que serviram de
fundamento para a lei de anistia, que salvou o senador.
FOLHA - O sr. revelou, na época,
que recusou oferta de US$ 10 milhões para ser ministro da Justiça no
governo Collor? Por que guardou essa informação tão relevante?
RAMOS - Deve o advogado sair
por aí trombeteando as ofertas
que recebeu de candidatos a
clientes? Claro que não. Resolvi
contar o caso por sua significação histórica. Desde o Império
e em toda a República não se
tem notícia de que alguém tenha recebido proposta de honorários para ser ministro.
FOLHA - O sr. foi generoso com
amigos e não poupou quem não
aprecia. Lula é "o pai dos pobres e a
mãe dos bancos". Sarney, um "eterno teimoso e conciliador". O sr. parece condescendente com o ex-governador paraibano Ronaldo Cunha
Lima, que atirou em adversário do filho, num restaurante. Sua versão,
no livro, aparenta duplo sentido:
"Claro que errou. Era bom poeta,
mas analfabeto em armas". O sr.
tem sido "cobrado" por isso?
RAMOS - Não. A liberdade de
expressão e a critica são valores
que não devem espantar jornalistas. E dizer que Sarney é um
eterno conciliador é verdade,
sempre foi verdade. Como é
também verdade o fato, registrado no livro, que Octavio
Frias foi um grande democrata,
partidário ferrenho do pluralismo em matéria de idéias e opiniões, e deixou filhos competentes para continuar sua saga em defesa das liberdades a da
principal delas, a liberdade de
expressão. Isso não é generosidade. É verdade pura.
FOLHA - Entre os episódios narrados no livro, qual foi a sua atuação
mais relevante em defesa da liberdade de imprensa?
RAMOS - Enfrentar o chefe do
SNI [Serviço Nacional de Informações], que queria enquadrar
o jornalista Josias de Souza na
Lei de Segurança Nacional. Na
inauguração de um governo democrático, aplicar aquela lei
odiosa seria negar por inteiro a
liberdade de imprensa. Claro
que aconselhei ao presidente
Sarney permitir o acesso, no
Palácio do Planalto e demais
repartições federais, de jornalistas a todas as fontes de informação de interesse público.
O debate, a notícia sem cerceamento, a transparência, a
informação livre, são fundamentais para o Estado de Direito. Pela liberdade de imprensa
lutei muito em minha vida, tanto escrevendo artigos como
participando de congressos internacionais. Uma das minhas
teses foi vitoriosa em vários
países que a adotaram: o assassinato de jornalista é crime imprescritível. Com isso impede-se, ao menos em teoria, a impunidade de criminosos de ditadura que ficam muito tempo no
poder. Mas fracassei na tentativa de revogar a atual lei de imprensa, a 5.250/67, baixada pelos militares, entulho autoritário que vigora até hoje.
Colaborei na redação de vários anteprojetos, inclusive no
da ANJ [Associação Nacional
de Jornais]. Todos morreram
no Congresso. Estou certo de
algo oculto no sentimento dos
políticos: eles bajulam, mas
odeiam jornalistas. A liberdade
de imprensa não está assegurada na lei especial, mas na Constituição e na opinião pública.
FOLHA - Em que medida o espírito
conciliador de Sarney foi fundamental para conter as pressões da esquerda e da direita em seu governo?
RAMOS - É preciso analisar o
momento em que o Brasil vivia.
Depois de 21 anos, a ditadura na
verdade não queria deixar o poder. Preparava uma grande farsa permitindo a eleição de um
civil pelo colégio eleitoral em
eleição indireta, mas um civil
comandado pelos militares. E
tinham eles certeza de ganhar a
eleição no Congresso porque
meses antes a célebre base do
governo derrotara a proposta
da eleição direta para presidente. Os militares tinham, portanto, certeza de eleger um títere,
na época Paulo Maluf.
Quando Tancredo [Neves] e
Sarney venceram a eleição no
Congresso, eles não se conformavam e procuravam qualquer
pretexto para invalidar a eleição dos oposicionistas. A esquerda, eufórica, ajudava a
conspiração continuísta porque queria mandar generais para o paredão, o que justificava a
reação contrária e com a mesma irracionalidade.
Nesse ambiente, explosivo
nos extremos, Sarney com muita paciência foi conversando
com os dois lados, acalmando
os ânimos, invocando a ordem
para a implantação da democracia e, sobretudo, prometendo, cumprindo, a convocação
da Assembléia Constituinte para o Brasil fundar seu Estado de
Direito, que era o objetivo máximo dos democratas.
No livro esses fatos são interpretados sob esse enfoque, sobretudo as tensões que se seguiram nos trabalhos de elaboração da Constituição por políticos de grandes ambições de
poder e pouca escolaridade.
FOLHA - Nota-se que o sr. orgulha-se de ter criado a Advocacia Geral da
União, idealizado a súmula vinculante, a medida provisória para os
suspeitos de prática de crimes hediondos e o projeto de direitos aos
deficientes físicos, além de ter sido
autor do rascunho da sentença que
responsabilizou a União pela morte
do jornalista Vladimir Herzog no
DOI-Codi. Qual desses feitos o sr.
considera mais importante?
RAMOS - Todos são igualmente
importantes. Mas não fui autor
do rascunho da sentença que
responsabilizou a União pela
morte de Herzog. A sentença
em cuja redação colaborei não
foi prolatada pelo juiz João Gomes Martins, que me pediu a
colaboração. O então Tribunal
Federal de Recursos a impediu
de ser publicada para agradar
os militares, em manobra que
denuncio no livro. A responsabilidade da União foi decretada
por outro juiz de muita coragem e muita competência, o dr.
Márcio José de Moraes.
Já que a frase é orgulhar-se,
orgulho-me também de haver
criado a impenhorabilidade do
bem de família e acabado com a
discriminação legal contra os
filhos, aquela velha história de
filho ilegítimo, filho adulterino,
filho incestuoso.
FOLHA - Como o sr. vê as manifestações de frustração da sociedade?
RAMOS - A sociedade brasileira
está dividida em grandes fatias:
uma de consciência patriótica e
cultural, que trabalha, raciocina e produz, outras de pobreza
enorme, população sem instrução e sem recursos, que se contenta com Bolsa Família ou
qualquer tipo de ajuda pessoal,
sem reivindicar seus verdadeiros direitos sociais, como o emprego pelo desenvolvimento e
não pelo favor e pelo voto eleitoral. Sobre tudo isso pairam os
políticos de espantosa mediocridade, excluídas as exceções
cada vez em menor número. A
frustração maior da sociedade
consciente é com a impunidade
da corrupção nas atividades
públicas, que se tornou, nos últimos tempos, uma acintosa
agressão aos sentimentos éticos do brasileiro. Desta imoralidade alastrada e deste exemplo derivam as violências das ruas, as negociatas nas empresas, as especulações aventureiras nos mercados, a degradação
dos comportamentos, desde a derrubada da floresta amazônica até o tráfico de drogas.
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