São Paulo, segunda-feira, 20 de agosto de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª SAULO RAMOS

Para o consultor-geral da República e ex-ministro da Justiça, sentimento ético do brasileiro tem sido agredido; em seu livro, narra detalhes da vida política do país

Corrupção impune é o que mais frustra a sociedade

O livro de memórias "Código da Vida", de Saulo Ramos, 76, consultor-geral da República e ministro da Justiça no governo Sarney (1985-90), está nas listas dos mais vendidos há 11 semanas, com 30 mil cópias comercializadas. Ele narra episódios da vida política brasileira dos quais foi personagem ou testemunha nos últimos 40 anos, como a renúncia de Jânio Quadros, em 1961 (de quem foi oficial de gabinete), "um erro jurídico espetacular". Ele falou à Folha sobre algumas dessas histórias por e-mail. (FREDERICO VASCONCELOS)

FOLHA - Em seu livro, o sr. entremeou a narrativa com a defesa bem-sucedida de um pai injustamente acusado, pela ex-mulher, de abusar sexualmente dos filhos. Foi opção para manter o interesse do leitor ou um de seus casos mais relevantes?
SAULO RAMOS
- Embora não tendo pretensão de fazer literatura, tentei fazer algo diferente em matéria de autobiografia.
Para muitos, é chata a narrativa que começa dizendo o dia em que nasceu, o que fez e o que pretendia fazer. Se há um fato que pode ser narrado em forma de romance e de suspense, por que não fazê-lo?
Na minha vida, como acontece com todos os advogados, houve muitos casos complexos, dignos de novelas policiais. Escolhi um deles, dentre os que me permitem guardar o anonimato dos personagens. Afinal, se o caso é verdadeiro e aconteceu comigo, faz parte da minha biografia. Logo, posso contá-lo da forma que entender ser a mais fiel, além de atraente para os leitores. Isso talvez explique, entre outras razões, a acolhida que o livro está obtendo.

FOLHA - O que o levou a revelar, com boa dose de indiscrição e maledicência, episódios que viveu?
RAMOS
- O ilustre jornalista afirma que teve o prazer de ler meu livro. Como pode haver prazer em ler aquilo que considerou erradamente maledicências? Demonstrar, por exemplo, com fatos, ignorados por muitos, mas conhecidos de especialistas em estudos da América Latina, que Che Guevara foi vítima de traição para ser assassinado na Bolívia e contar detalhes de uma trama misteriosa é maledicência? Apontar minúcias de corrupção política tal como no caso do mensalão, com todos os criminosos ainda impunes, é maledicência?

FOLHA - É surpreendente o telefonema em que o sr. diz ao ministro do STF José Celso de Mello Filho: "Você é um juiz de merda". Essa revelação, no livro, trouxe-lhe algum problema? O ministro se manifestou?
RAMOS
- Nem uma coisa, nem outra.

FOLHA - O sr. narra algumas situações nada ortodoxas, algumas obtidas com a "macia conversa de advogado". Jânio Quadros estava errado, ao indagar se não seria falsidade ideológica assinar um decreto quando não era mais presidente?
RAMOS
- Claro que estava. Se o decreto havia sido publicado no "Diário Oficial" quando ele era presidente, tornando público o ato de vontade do chefe do Executivo que o mandara lavrar, a assinatura no documento lavrado aperfeiçoou o ato formal.
Falsidade ideológica é omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou nele inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita a fim de prejudicar direito. Assinar um decreto já publicado é inserir o que nele devia constar, corrigindo-se a omissão material. Aliás, Jânio, apesar de advogado, conhecia pouco de direito. A renúncia foi um erro jurídico espetacular.

FOLHA - O autor de "Código da Vida" contrariou códigos de ética ao sugerir a um juiz rasgar a página de um despacho, colocando outra no lugar, numerada e rubricada?
RAMOS
- A Justiça Federal queria apagar de sua história aquele terrível despacho de um de seus juízes designando audiência para ouvir a autoridade coatora em mandado de segurança. Pecado mortal, absurdo teratológico. Eu devia ter sugerido, e teria sido mais correto, rasgar-se o ato de nomeação daquele juiz.
Por que o espanto? No livro narro fato mais grave: furtei um processo inteiro da Justiça criminal para livrar um prefeito de Santos e seu chefe-de-gabinete das garras dos militares na ditadura. Há momentos em que o valor ético não está na dança de minuetos ou na observação de etiquetas, mas na salvação de vidas, de honras e das liberdades individuais.

FOLHA - Para deixar sua marca em habeas corpus que redigiu, mas que Oscar Pedroso Horta assinou, o sr. colocou na peça uma inexistente obra de Direito Penal de sua autoria.
"Foi meu jeito de assinar", disse, no livro. Quando defendeu o senador Humberto Lucena, da Paraíba, que usou a gráfica do Senado para imprimir calendários com sua fotografia, o sr. não assinou o recurso, para "não se expor". Seriam contraditórios esses dois comportamentos?
RAMOS
- São situações diferentes. Quem ler o livro entenderá as razões de ambos os comportamentos. Em uma, pretendia registrar a autoria de uma peça jurídica escrita por mim. Na outra, não aparecendo como advogado, tinha maior liberdade para criticar o erro do Superior Tribunal Eleitoral e lutar pelos votos que serviram de fundamento para a lei de anistia, que salvou o senador.

FOLHA - O sr. revelou, na época, que recusou oferta de US$ 10 milhões para ser ministro da Justiça no governo Collor? Por que guardou essa informação tão relevante?
RAMOS
- Deve o advogado sair por aí trombeteando as ofertas que recebeu de candidatos a clientes? Claro que não. Resolvi contar o caso por sua significação histórica. Desde o Império e em toda a República não se tem notícia de que alguém tenha recebido proposta de honorários para ser ministro.

FOLHA - O sr. foi generoso com amigos e não poupou quem não aprecia. Lula é "o pai dos pobres e a mãe dos bancos". Sarney, um "eterno teimoso e conciliador". O sr. parece condescendente com o ex-governador paraibano Ronaldo Cunha Lima, que atirou em adversário do filho, num restaurante. Sua versão, no livro, aparenta duplo sentido: "Claro que errou. Era bom poeta, mas analfabeto em armas". O sr. tem sido "cobrado" por isso?
RAMOS
- Não. A liberdade de expressão e a critica são valores que não devem espantar jornalistas. E dizer que Sarney é um eterno conciliador é verdade, sempre foi verdade. Como é também verdade o fato, registrado no livro, que Octavio Frias foi um grande democrata, partidário ferrenho do pluralismo em matéria de idéias e opiniões, e deixou filhos competentes para continuar sua saga em defesa das liberdades a da principal delas, a liberdade de expressão. Isso não é generosidade. É verdade pura.

FOLHA - Entre os episódios narrados no livro, qual foi a sua atuação mais relevante em defesa da liberdade de imprensa?
RAMOS
- Enfrentar o chefe do SNI [Serviço Nacional de Informações], que queria enquadrar o jornalista Josias de Souza na Lei de Segurança Nacional. Na inauguração de um governo democrático, aplicar aquela lei odiosa seria negar por inteiro a liberdade de imprensa. Claro que aconselhei ao presidente Sarney permitir o acesso, no Palácio do Planalto e demais repartições federais, de jornalistas a todas as fontes de informação de interesse público.
O debate, a notícia sem cerceamento, a transparência, a informação livre, são fundamentais para o Estado de Direito. Pela liberdade de imprensa lutei muito em minha vida, tanto escrevendo artigos como participando de congressos internacionais. Uma das minhas teses foi vitoriosa em vários países que a adotaram: o assassinato de jornalista é crime imprescritível. Com isso impede-se, ao menos em teoria, a impunidade de criminosos de ditadura que ficam muito tempo no poder. Mas fracassei na tentativa de revogar a atual lei de imprensa, a 5.250/67, baixada pelos militares, entulho autoritário que vigora até hoje.
Colaborei na redação de vários anteprojetos, inclusive no da ANJ [Associação Nacional de Jornais]. Todos morreram no Congresso. Estou certo de algo oculto no sentimento dos políticos: eles bajulam, mas odeiam jornalistas. A liberdade de imprensa não está assegurada na lei especial, mas na Constituição e na opinião pública.

FOLHA - Em que medida o espírito conciliador de Sarney foi fundamental para conter as pressões da esquerda e da direita em seu governo?
RAMOS
- É preciso analisar o momento em que o Brasil vivia. Depois de 21 anos, a ditadura na verdade não queria deixar o poder. Preparava uma grande farsa permitindo a eleição de um civil pelo colégio eleitoral em eleição indireta, mas um civil comandado pelos militares. E tinham eles certeza de ganhar a eleição no Congresso porque meses antes a célebre base do governo derrotara a proposta da eleição direta para presidente. Os militares tinham, portanto, certeza de eleger um títere, na época Paulo Maluf.
Quando Tancredo [Neves] e Sarney venceram a eleição no Congresso, eles não se conformavam e procuravam qualquer pretexto para invalidar a eleição dos oposicionistas. A esquerda, eufórica, ajudava a conspiração continuísta porque queria mandar generais para o paredão, o que justificava a reação contrária e com a mesma irracionalidade.
Nesse ambiente, explosivo nos extremos, Sarney com muita paciência foi conversando com os dois lados, acalmando os ânimos, invocando a ordem para a implantação da democracia e, sobretudo, prometendo, cumprindo, a convocação da Assembléia Constituinte para o Brasil fundar seu Estado de Direito, que era o objetivo máximo dos democratas.
No livro esses fatos são interpretados sob esse enfoque, sobretudo as tensões que se seguiram nos trabalhos de elaboração da Constituição por políticos de grandes ambições de poder e pouca escolaridade.

FOLHA - Nota-se que o sr. orgulha-se de ter criado a Advocacia Geral da União, idealizado a súmula vinculante, a medida provisória para os suspeitos de prática de crimes hediondos e o projeto de direitos aos deficientes físicos, além de ter sido autor do rascunho da sentença que responsabilizou a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog no DOI-Codi. Qual desses feitos o sr. considera mais importante?
RAMOS
- Todos são igualmente importantes. Mas não fui autor do rascunho da sentença que responsabilizou a União pela morte de Herzog. A sentença em cuja redação colaborei não foi prolatada pelo juiz João Gomes Martins, que me pediu a colaboração. O então Tribunal Federal de Recursos a impediu de ser publicada para agradar os militares, em manobra que denuncio no livro. A responsabilidade da União foi decretada por outro juiz de muita coragem e muita competência, o dr. Márcio José de Moraes.
Já que a frase é orgulhar-se, orgulho-me também de haver criado a impenhorabilidade do bem de família e acabado com a discriminação legal contra os filhos, aquela velha história de filho ilegítimo, filho adulterino, filho incestuoso.

FOLHA - Como o sr. vê as manifestações de frustração da sociedade?
RAMOS
- A sociedade brasileira está dividida em grandes fatias: uma de consciência patriótica e cultural, que trabalha, raciocina e produz, outras de pobreza enorme, população sem instrução e sem recursos, que se contenta com Bolsa Família ou qualquer tipo de ajuda pessoal, sem reivindicar seus verdadeiros direitos sociais, como o emprego pelo desenvolvimento e não pelo favor e pelo voto eleitoral. Sobre tudo isso pairam os políticos de espantosa mediocridade, excluídas as exceções cada vez em menor número. A frustração maior da sociedade consciente é com a impunidade da corrupção nas atividades públicas, que se tornou, nos últimos tempos, uma acintosa agressão aos sentimentos éticos do brasileiro. Desta imoralidade alastrada e deste exemplo derivam as violências das ruas, as negociatas nas empresas, as especulações aventureiras nos mercados, a degradação dos comportamentos, desde a derrubada da floresta amazônica até o tráfico de drogas.


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