São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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NO PLANALTO

As travessuras de uma legenda chamada Zé Dirceu

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

São Paulo , 1968. Tempo de Beatles, de Tropicália, de amor livre, de culto a Che Guevara, de ebulição universitária, de repressão militar...
A USP, parcialmente tomada por estudantes, fervilhava. Uma das salas, antes voltada ao ensino de grego, passou a chamar-se "antro do Zé Dirceu".
Era ali que o líder da estudantada, cabeludo boa-pinta, tenros 22 anos, extravasava as pulsões sexuais. Heloísa, 19, bela morena com quem saía havia dias, deixara-se conduzir ao "antro".
No instante em que se despiam, Zé Dirceu, cujo nome já vinha precedido de fulgurante legenda, acomodou sobre uma mesinha o 22 que trazia na cintura.
Súbito, Heloísa apossou-se do revólver. Soltou a trava e abriu a arma. Tal foi a sua destreza que Zé Dirceu farejou algo suspeito. Olhos grudados no dorso de Heloísa, pensou: "Que pena, essas costas tão lindas..."
Pediu que esperasse. Foi ter com os companheiros que zelavam por sua segurança. "Podem ir lá, acho que a menina é da polícia."
Detiveram-na. Numa incursão pelo apartamento dela, deram com relatórios recheados de nomes e um organograma do movimento estudantil.
Estamos percorrendo as páginas do livro ""Abaixo a Ditadura" (Editora Garamond, 1998). Foi escrito por Vladimir Palmeira e por José Dirceu, o presidente PT.
O Zé Dirceu do livro transcende o quadro social e familiar em que foi criado. Nasceu em 16 de março de 46, nas pegadas da bomba atômica, jogada sobre Hiroshima e Nagasaki sete meses antes. Vem de lar católico de Santa Rita do Passa Quatro (MG).
Integrava "uma pequena gangue de garotos". Identificavam-se por um assobio. "Que acabou se tornando o terror da cidade." Amarravam barbante em rabo de cachorro, roubavam frutas nos quintais... "Eu era o pior."
Dono de uma tipografia chamada Ordem e Progresso, seu Castorino, o pai de Zé Dirceu, era udenista. O sócio dele, João Mota, do PTB getulista. Travavam fervorosas polêmicas, seguidas pelo pequeno Zé Dirceu.
Em 61, aos 15 anos, mudou-se para São Paulo. Espremia-se com sete rapazes numa quitinete. Decorridos oito meses, foi expulso. "Eu aprontava muito."
Empregou-se como "office-boy" numa imobiliária. O dono, Nicola Avalone, era deputado estadual pelo PDC.
A convivência com Avalone lhe rendeu um "curso prático de política". Ia diariamente à Assembléia Legislativa de São Paulo. "Presenciei acordos e articulações, vi o Ademar de Barros governar, soube do famoso dr. Rui -apelido que ele dava à amante, de cuja casa a guerrilha levaria um cofre de dólares."
Embora menor, frequentava cabarés. "Eu podia ter virado um trombadinha". Estudava à noite no Colégio Paulistano. Sob Jango, reunia-se com colegas para ler Marx e Lenin.
Em 64, ano do golpe, levou bomba na USP. Passou na PUC, curso de direito. Adorava história e geografia. Detestava matemática, física e química.
Integrou-se à "Turma da Canalha", que se insurgia contra hábitos impostos pela direção da PUC. Exigiram que homens e mulheres, antes separados, passassem a se misturar em sala de aula.
Sentava-se à mesa do professor, acomodava os pés sobre as carteiras... Virou sensação. Em 65, filiou-se ao PCB. Em 66, a primeira prisão tonificou-lhe a fama.
Morava só. Namorava a "deslumbrante" Iara Iavelberg, que mais tarde viveria com Carlos Lamarca e, como ele, seria assassinada na Bahia. Simultaneamente, dividia colchões com Ivone, uma bailarina espanhola.
Certa noite, policiais invadiram o apartamento. Levaram-no preso. Franco Montoro, professor na PUC, depôs a seu favor. Solto, descobriu a razão da cana.
Afeiçoara-se a dois vizinhos italianos, também detidos. Eram militantes de uma célula clandestina e militarizada da ALN. "Entrei de gaiato na história. Convenci a polícia de que só queria sair com as meninas, curtir a vida."
Virou presidente de centro acadêmico. Em 67, já dirigia a União Estadual dos Estudantes. Vinculou-se à Dissidência, corrente que se descolou do PCB, "aburguesado". Opunha-se, porém, à luta armada.
Tentou virar articulista de jornal. Entregou um texto a Cláudio Abramo. Queria vê-lo publicado na Folha. Abramo leu, amassou e jogou no lixo.
"Você gosta de ler? Então continua lendo. Depois, escreve de novo e traz outro artigo". Manteve o relacionamento com Abramo. Mas não ousou um segundo texto. "Entendi o recado."
A descoberta do cavalo de tróia de saias que a polícia infiltrara na sala de grego havia indicado que a repressão preparava o bote. Deu-se em outubro de 68, num sítio de Ibiúna (SP), durante o célebre congresso estudantil.
Reuniram-se 800 estudantes. Elegeriam o presidente da UNE. Zé Dirceu concorreria. Surpreendidos pela polícia, foram à garra. Ficharam-se todos. Liberou-se a maioria.
Oito líderes foram levados ao Forte Itaipu, em Santos. Beneficiados por habeas corpus, quatro saíram. O resto ficou no xilindró. Entre eles, Zé Dirceu. Coisa moderada, sem tortura.
Foram libertados em 7 de setembro de 69, junto com um grupo de políticos, trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick. Zé Dirceu rumou para Cuba. Recebeu-o Fidel Castro. Abrigou-se na "casa dos 28", ninho de treinamento de guerrilha.
Entrou no Brasil em 71, como integrante do Molipo (Movimento de Libertação Popular). Um equívoco que poderia ter-lhe custado o pescoço. Voltou a Cuba no mesmo ano, fez plástica no rosto com médicos chineses e, em 75, retornou ao Brasil.
Vivendo clandestinamente em Cruzeiro do Oeste (PR), sob falsa identidade, na pele de dono de alfaiataria, virou mito. Casou-se com uma dona de butique, teve um filho e só emergiu depois da anistia, com o rosto reconstituído por nova plástica cubana. Elegeu-se deputado estadual e federal. Apossou-se da máquina do PT.
Hoje, 56, cabelos ralos, levemente nevados, escreve a mais nova travessura de sua biografia. Sob um iminente governo Lula, erigido em cima de fundações moderadas que ajudou a concretar, será o segundo homem da República.
Vencendo Lula, o político Zé Dirceu pode, finalmente, ajudar a desenhar o Brasil de sonho que o estudante Zé Dirceu pleiteava. Ou não haverá clandestinidade capaz de livrá-lo de um epílogo acerbo.


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