São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CAMPO MINADO Relatórios anuais têm assentamentos que não saíram do papel, terrenos vazios e sem nenhuma infra-estrutura Governo infla balanço da reforma agrária
RUBENS VALENTE DO PAINEL EDUARDO SCOLESE DA AGÊNCIA FOLHA O governo federal está inflando os balanços anuais da reforma agrária com assentamentos que não saíram do papel, terrenos vazios e áreas onde não há casas nem sequer infra-estrutura básica para os trabalhadores rurais, como água tratada, energia elétrica e rede de esgoto. Balanços "inflados" são usados como propaganda pelo governo para alardear o suposto sucesso da política de reforma agrária. A Folha coletou documentos ao longo de quatro meses e percorreu no Maranhão e em Santa Catarina alegados "assentamentos" que integram o balanço de 2001, divulgado em 1º de fevereiro pelo então ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, e localizou apenas áreas baldias e ociosas, com lavradores impedidos de entrar em locais de assentamento ou morando em barracos de lona, sem que seus lotes tenham sido demarcados. A situação dessas áreas, sem a mínima infra-estrutura, contraria regulamentos do próprio Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e desautoriza o uso da expressão "assentamento" para defini-las. Pelo "Manual dos Assentados e das Assentadas da Reforma Agrária", à disposição na página do Incra na internet, todo assentamento deve ter duas fases obrigatórias: implantação e consolidação. A primeira etapa necessariamente implica um conjunto de oito itens, entre os quais: execução da infra-estrutura básica, medição e demarcação dos lotes, acesso a todos os créditos para construção de casas e gastos com alimentação e planejamento de acesso à linha de crédito bancária (no valor médio de R$ 12 mil). A previsão não é simples capricho conceitual do ministério. Ela vai nortear as relações entre assentados e Incra, porque no item que trata dos deveres do assentado está prevista a necessidade de a família beneficiada "residir no assentamento". Sem estrutura, a família tende a abandonar a área. Outra publicação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o "Relatório de Atividades do Incra 1995-1999", afirma que um projeto de assentamento envolve "três estágios": a distribuição das famílias nos lotes, as obras de infra-estrutura socioeconômica e o fornecimento dos serviços de assistência técnica e capacitação das famílias. "Grande parte das famílias contabilizadas como metas muitas vezes não tem nenhum tipo de benefício. Elas aparecem apenas como um dado estatístico. Acho que a família assentada é muito mais do que só o fato de estar na área. É o crédito, a escola, a habitação, a infra-estrutura, a moradia. Assim os dados vão ter muito mais aceitação dos movimentos sociais e da sociedade", disse Francisco Nascimento, que até o início deste ano chefiou a superintendência do Incra em Mato Grosso e na semana passada assumiu o comando do órgão em Rondônia. Questionado pela Folha se o governo federal já considera assentadas as famílias recém-chegadas ao terreno, o ministro do Desenvolvimento Agrário, José Abrão, declarou: "para efeito estatístico, numérico, quantitativo, sim, mas para efeito do Programa de Reforma Agrária sustentável que nós queremos fazer, nós só vamos considerar que essas famílias estejam efetiva e completamente em condições de produzir quando elas receberem esse mínimo de estrutura, que elas não precisem morar na cidade para ir lá produzir no campo". A afirmação de Abrão coloca em xeque todos os balanços de seu antecessor, Raul Jungmann, no período 1996-2001, que usaram a expressão "assentadas" para famílias sem estrutura na área. Válvulas de escape Para inflar seus balanços -que possibilitam ao presidente Fernando Henrique Cardoso afirmar que assentou cerca de "600 mil famílias" em sete anos de governo-, o ministério tem recorrido a outros expedientes. A pasta está contabilizando a mera capacidade total do assentamento como o número final de "assentados" em determinada área, sem que se saiba se os lotes serão efetivamente ocupados. Relatório interno da Divisão Técnica da Superintendência Regional do Pará (SR-01), com sede em Belém, indica que, até 7 de dezembro do ano passado, apenas 382 famílias, de um total de 2.415, poderiam ser consideradas efetivamente assentadas naquele ano dentro da área de atuação da SR-01. As outras 2.033 estavam em áreas que dependiam, para sua ocupação, de decisões jurídicas e atos burocráticos. No entanto, no balanço do ministério divulgado em fevereiro, aparecem na região da SR-01 nada menos que 3.355 famílias "assentadas em 2001", o equivalente a 3,2% das 102.449 que o ex-ministro Jungmann diz ter "assentado" no ano passado. Para não comprometer os levantamentos de anos anteriores, o ministério não subtrai de seus relatórios os trabalhadores rurais que abandonaram lotes por problemas de crédito e infra-estrutura. Também surgem incongruências entre informações passadas pelas superintendências regionais do Incra e pelo ministério. Levantamento feito nas 29 seções do Incra do país, das quais apenas 20 forneceram dados, indicou uma diferença média de 14% entre os números dos Estados e os divulgados pelo ministério. "Essa diferença é injustificável", disse o ministro José Abrão. Para o superintendente do Incra em Alagoas, José Quixabeira Neto, o conceito de assentamento diverge do que vem sendo praticado pelo ministério e divulgado nos seus balanços anuais. "Realmente o conceito difere da prática, quanto a isso não há a menor dúvida. A técnica é uma e a política é outra. Eu sou agente do governo e tenho de seguir a política adotada por eles", declarou. Texto Anterior: Campo minado: Planalto sabia de risco de invasão em Buritis Próximo Texto: Terreno "com assentados" é matagal Índice |
|