São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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FHC reconta a política do Real no país do "atraso"

Memórias vão da sociologia política às "crônicas do reino"

Lula Marques - 01.jan.2002
Lula e FHC confundem-se na troca da faixa presidencial


A INSTITUIÇÃO mais citada nas memórias de Fernando Henrique Cardoso é o Banco Central. Depois de Itamar Franco, Pedro Malan é o personagem mais assíduo de "A Arte da Política - A História que Vivi", a primeira autobiografia de um presidente brasileiro.
Não seriam mais interessantes os ditos escândalos, a compra de votos, privatizações, Sivam, Proer? A aliança com o PFL, a fisiologia no Congresso? O apagão? Sim, tudo está no livro, e nada é muito novo. Mas a arte da política fernandina, "criar condições para que se possa realizar um objetivo para o qual as condições não estão dadas de antemão", foi, em essência, a escultura de um novo modelo econômico.


VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO


O drama mais vívido das memórias de FHC desenrola-se em torno de assuntos tão aborrecidos como o câmbio e o valor do real, além de economistas, Fazenda, Banco Central e finanças globais. A releitura fernandina de uma anedota de campanha revela esse "leitmotiv" da obra, a economia e a sociologia políticas do Real, e como o ex-presidente reinterpretou o debate mais sério de seu governo, dando em parte razão a seus críticos -sem o dizer.
O caso famoso é o daquele dia em que FHC viu o sinal da vitória em 1994. Não foi na estrada de Damasco, mas no sertão da Bahia. O povo agitava notas de R$ 1 diante do candidato a presidente. FHC relembra assim esse 11 de julho: "Alguns gritavam, entusiasmados, sem prever as conseqüências disso, que o real valia mais que o dólar, moeda na qual nunca haviam tocado". "Se o problema havia sido percebido desde o início [1994], por que, então, tanto tempo para resolvê-lo?", pergunta, 132 páginas adiante.
Quatro anos depois, vésperas da reeleição, FHC anunciava duro corte de gastos e o recurso ao FMI. O país corria o risco de quebrar. Esgotavam-se as reservas em moeda forte, como o dólar, drenadas pelo temor de iminente desvalorização do real. No diário falado, gravado, que manteve durante a presidência, FHC registrava do seguinte modo a reação positiva da mídia às medidas fiscais.
"Certamente existe um déficit fiscal a ser combatido, mas a questão que nunca foi enfrentada é a cambial. A relação juros elevados/câmbio sobrevalorizado, esta é a questão central. Tentei várias vezes mexer nesse tema. Na hora H, os economistas têm medo da flutuação, têm medo, pior ainda, claro, do câmbio centralizado, têm medo do câmbio fixo único. Discutimos lá atrás, em fevereiro de 1997, e de novo este ano. Não deram nem um passo, mantiveram a posição ortodoxa".
Durante todo o primeiro mandato, o governo dividiu-se em polêmicas sobre a política de câmbio, juros altos e déficit comercial, que era objeto de vívidas críticas na opinião pública, em geral menosprezadas pela opinião oficial.
O impasse no governo explica em parte, avalia FHC, o quase imobilismo diante do problema. O desempate claro do conflito poderia causar defecções graves na equipe econômica, temia o presidente. Com a desvalorização do real, de resto, haveria riscos reais de perda de controle, de crise cambial, de volta da inflação.

Técnica e política
O presidente era norteado ou tolhido por condições e objetivos políticos, os quais acabaram por moldar as decisões econômicas, para o bem ou para o mal. O Real foi antecipado, sim, devido à iminente derrota para o PT em 1994, diz FHC, contra o conselho técnico e contra a opinião dominante de que era preciso um forte ajuste fiscal para conter a inflação.
Mas ajuste de tal monta, escreve FHC, seria socialmente intolerável e, sem vitória nas urnas, não haveria mais Plano em 1995. Todos os ajustes seriam feitos gradualmente e, como escreveria o ex-presidente em outra ocasião (não citada no livro), o objetivo era um plano com "custos sociais mínimos".
A última vez que se considerou uma desvalorização controlada do real foi em 1998. Os ditos "monetaristas", Malan e Gustavo Franco, que então presidia o BC, eram pelo real forte e pelo gradualismo. Os "desenvolvimentistas" (José Serra, entre outros) defendiam a desvalorização com corte de gastos e PIB menor, a fim de conter a inflação. A recessão era inviável em ano eleitoral, escreve FHC.
Mas por que FHC pendeu mais para a linha Malan-Franco? A experiência internacional do ex-negociador da dívida Malan e a competência operacional de Franco no BC eram essenciais, avalia o ex-presidente. Mas era também o que mais convinha à sobrevivência política do Plano e de FHC.
Como foi possível que enfim se contivesse a inflação em 1994 e que se levasse a cabo o projeto de limitar a ação do Estado na economia e abri-la ao exterior? Devido à fragmentação de interesses de classe e grupos decorrente da modernização do país, julga FHC.
Mais especificamente, a desarticulação das forças políticas tradicionais, agravada pela hiperinflação, pelo impeachment de Fernando Collor e pela CPI dos Anões do Orçamento, facilitou a ação de seu "exército Brancaleone" de técnicos e de uns poucos "políticos de visão".
Mas essa mesma fragmentação impediria que as "reformas" fossem levadas a cabo.

Lições de "reformas"
"A Arte da Política" é também uma explicação do sistema de governo fernandino. Lição um: "insular" e "proteger dos políticos" um grupo técnico capaz de implementar as reformas de mercado. Sim, isso sabe a receitas de economistas políticos americanos do começo dos 90, estereotipadas ainda mais, a seguir, por instituições como o Banco Mundial.
Lição dois: preservar alguns ministérios da ambição política de "pessoas e partidos que não necessariamente comungam de visão e valores comuns" ao governo. Tais setores do Executivo implementariam o programa de FHC. Tratava-se, por exemplo, do caso dos ministério da Educação e da Saúde, que seriam o núcleo da ação do novo Estado, além daqueles responsáveis pela privatização.
O mais estaria sujeito à negociação com o "atraso", com o sistema partidário fragmentado, tudo sob o risco de "vender a alma ao diabo sem chance de recompra". "O drama é que são tênues os limites entre a grandeza e a perdição".
Tal é a condição de um presidente, diz FHC, que enfrenta o paradoxo de partidos fracos e Congresso forte. Fracos, os partidos no entanto contêm alguns representantes de interesses sociais. Mas tais correntes se agregam de maneira transpartidária, por meio de "bancadas" (ruralista, dos bancos, de servidores, da educação etc).
De passagem, FHC cutuca, sem o dizer, politólogos brasileiros, que "confundem partidos com "siglas", que separam rigidamente governistas de oposicionistas e calculam assim seu grau de fidelidade partidária e programática.

Herança maldita
Interesses fragmentados do "atraso", mas entrincheirados, defendiam sangrias do Estado. De resto, nem o Congresso e nem mesmo o presidente dito "neoliberal" aderiam ao corte radical da despesa pública e à modernização econômica em graus compatíveis com a estabilização à moda do Real.
Tais impasses e o gradualismo da política do Real deixaram o país muito endividado e com infra-estrutura de menos, com reduzido potencial de crescimento. Quais as causas desses "danos colaterais"?
Um, a necessidade de sobrevivência política do tucanismo, em ambiente de fragmentação partidária e baixo consenso social. Dois, a prevalência de técnicos orientados pela idéia de liberalização e abertura econômico-financeira, mas sem condições de realizar de todo seu projeto. Três, apenas implícito no livro, as dificuldades de implementar políticas econômicas em países pobres e muito desiguais. Como o Brasil.


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