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FHC reconta a política do Real no país do "atraso"
Memórias vão da sociologia política às "crônicas do reino"
Lula Marques - 01.jan.2002
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Lula e FHC confundem-se na troca da faixa presidencial |
A INSTITUIÇÃO mais citada nas memórias
de Fernando Henrique Cardoso é o Banco
Central. Depois de Itamar Franco, Pedro
Malan é o personagem mais assíduo de "A
Arte da Política - A História que Vivi", a primeira autobiografia de um presidente brasileiro.
Não seriam mais interessantes os ditos escândalos,
a compra de votos, privatizações, Sivam, Proer? A
aliança com o PFL, a fisiologia no Congresso? O apagão? Sim, tudo está no livro, e nada é muito novo. Mas
a arte da política fernandina, "criar condições para
que se possa realizar um objetivo para o qual as condições não estão dadas de antemão", foi, em essência, a
escultura de um novo modelo econômico.
VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
O drama mais vívido das memórias de FHC desenrola-se
em torno de assuntos tão aborrecidos como o câmbio e o valor
do real, além de economistas,
Fazenda, Banco Central e finanças globais. A releitura fernandina de uma anedota de
campanha revela esse "leitmotiv" da obra, a economia e a sociologia políticas do Real, e como o ex-presidente reinterpretou o debate mais sério de seu
governo, dando em parte razão
a seus críticos -sem o dizer.
O caso famoso é o daquele dia
em que FHC viu o sinal da vitória em 1994. Não foi na estrada
de Damasco, mas no sertão da
Bahia. O povo agitava notas de
R$ 1 diante do candidato a presidente. FHC relembra assim
esse 11 de julho: "Alguns gritavam, entusiasmados, sem prever as conseqüências disso, que
o real valia mais que o dólar,
moeda na qual nunca haviam
tocado". "Se o problema havia
sido percebido desde o início
[1994], por que, então, tanto
tempo para resolvê-lo?", pergunta, 132 páginas adiante.
Quatro anos depois, vésperas
da reeleição, FHC anunciava
duro corte de gastos e o recurso
ao FMI. O país corria o risco de
quebrar. Esgotavam-se as reservas em moeda forte, como o
dólar, drenadas pelo temor de
iminente desvalorização do
real. No diário falado, gravado,
que manteve durante a presidência, FHC registrava do seguinte modo a reação positiva
da mídia às medidas fiscais.
"Certamente existe um déficit fiscal a ser combatido, mas a
questão que nunca foi enfrentada é a cambial. A relação juros
elevados/câmbio sobrevalorizado, esta é a questão central.
Tentei várias vezes mexer nesse tema. Na hora H, os economistas têm medo da flutuação,
têm medo, pior ainda, claro, do
câmbio centralizado, têm medo
do câmbio fixo único. Discutimos lá atrás, em fevereiro de
1997, e de novo este ano. Não
deram nem um passo, mantiveram a posição ortodoxa".
Durante todo o primeiro
mandato, o governo dividiu-se
em polêmicas sobre a política
de câmbio, juros altos e déficit
comercial, que era objeto de vívidas críticas na opinião pública, em geral menosprezadas
pela opinião oficial.
O impasse no governo explica em parte, avalia FHC, o quase imobilismo diante do problema. O desempate claro do
conflito poderia causar defecções graves na equipe econômica, temia o presidente. Com a
desvalorização do real, de resto,
haveria riscos reais de perda de
controle, de crise cambial, de
volta da inflação.
Técnica e política
O presidente era norteado ou
tolhido por condições e objetivos políticos, os quais acabaram por moldar as decisões
econômicas, para o bem ou para o mal. O Real foi antecipado,
sim, devido à iminente derrota
para o PT em 1994, diz FHC,
contra o conselho técnico e
contra a opinião dominante de
que era preciso um forte ajuste
fiscal para conter a inflação.
Mas ajuste de tal monta, escreve FHC, seria socialmente
intolerável e, sem vitória nas
urnas, não haveria mais Plano
em 1995. Todos os ajustes seriam feitos gradualmente e, como escreveria o ex-presidente
em outra ocasião (não citada no
livro), o objetivo era um plano
com "custos sociais mínimos".
A última vez que se considerou uma desvalorização controlada do real foi em 1998. Os
ditos "monetaristas", Malan e
Gustavo Franco, que então presidia o BC, eram pelo real forte
e pelo gradualismo. Os "desenvolvimentistas" (José Serra,
entre outros) defendiam a desvalorização com corte de gastos
e PIB menor, a fim de conter a
inflação. A recessão era inviável
em ano eleitoral, escreve FHC.
Mas por que FHC pendeu
mais para a linha Malan-Franco? A experiência internacional do ex-negociador da dívida
Malan e a competência operacional de Franco no BC eram
essenciais, avalia o ex-presidente. Mas era também o que
mais convinha à sobrevivência
política do Plano e de FHC.
Como foi possível que enfim
se contivesse a inflação em
1994 e que se levasse a cabo o
projeto de limitar a ação do Estado na economia e abri-la ao
exterior? Devido à fragmentação de interesses de classe e
grupos decorrente da modernização do país, julga FHC.
Mais especificamente, a desarticulação das forças políticas tradicionais, agravada pela
hiperinflação, pelo impeachment de Fernando Collor e pela
CPI dos Anões do Orçamento,
facilitou a ação de seu "exército
Brancaleone" de técnicos e de
uns poucos "políticos de visão".
Mas essa mesma fragmentação impediria que as "reformas" fossem levadas a cabo.
Lições de "reformas"
"A Arte da Política" é também uma explicação do sistema
de governo fernandino. Lição
um: "insular" e "proteger dos
políticos" um grupo técnico capaz de implementar as reformas de mercado. Sim, isso sabe
a receitas de economistas políticos americanos do começo
dos 90, estereotipadas ainda
mais, a seguir, por instituições
como o Banco Mundial.
Lição dois: preservar alguns
ministérios da ambição política
de "pessoas e partidos que não
necessariamente comungam
de visão e valores comuns" ao
governo. Tais setores do Executivo implementariam o programa de FHC. Tratava-se, por
exemplo, do caso dos ministério da Educação e da Saúde, que
seriam o núcleo da ação do novo Estado, além daqueles responsáveis pela privatização.
O mais estaria sujeito à negociação com o "atraso", com o
sistema partidário fragmentado, tudo sob o risco de "vender
a alma ao diabo sem chance de
recompra". "O drama é que são
tênues os limites entre a grandeza e a perdição".
Tal é a condição de um presidente, diz FHC, que enfrenta o
paradoxo de partidos fracos e
Congresso forte. Fracos, os partidos no entanto contêm alguns
representantes de interesses
sociais. Mas tais correntes se
agregam de maneira transpartidária, por meio de "bancadas"
(ruralista, dos bancos, de servidores, da educação etc).
De passagem, FHC cutuca,
sem o dizer, politólogos brasileiros, que "confundem partidos com "siglas", que separam
rigidamente governistas de
oposicionistas e calculam assim seu grau de fidelidade partidária e programática.
Herança maldita
Interesses fragmentados do
"atraso", mas entrincheirados,
defendiam sangrias do Estado.
De resto, nem o Congresso e
nem mesmo o presidente dito
"neoliberal" aderiam ao corte
radical da despesa pública e à
modernização econômica em
graus compatíveis com a estabilização à moda do Real.
Tais impasses e o gradualismo da política do Real deixaram o país muito endividado e
com infra-estrutura de menos,
com reduzido potencial de
crescimento. Quais as causas
desses "danos colaterais"?
Um, a necessidade de sobrevivência política do tucanismo,
em ambiente de fragmentação
partidária e baixo consenso social. Dois, a prevalência de técnicos orientados pela idéia de
liberalização e abertura econômico-financeira, mas sem condições de realizar de todo seu
projeto. Três, apenas implícito
no livro, as dificuldades de implementar políticas econômicas em países pobres e muito
desiguais. Como o Brasil.
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