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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ENTREVISTA EXCLUSIVA
Em entrevista inédita, feita em 2003, ministra reconhece os erros da opção pela luta armada e relata sua experiência como torturada
Dilma diz ter orgulho de ideais da guerrilha
LUIZ MAKLOUF CARVALHO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A nova ministra da Casa Civil,
Dilma Rousseff, avessa à gabolice,
não é de se estender quando o assunto é a sua longa militância nas
organizações de esquerda que
combatiam a ditadura militar.
Abriu uma exceção, no final de
2003, porque tratava-se, então, a
meu interesse, de ampliar sua
participação, já que ministra, no
livro "Mulheres que foram à luta
armada" (Editora Globo, 1998).
Aceitando o pedido, a ministra
recebeu-me na sede da Presidência em São Paulo. Alguns documentos que levei, referentes aos
processos que enfrentou, ajudaram-na com a memória. Ficou tocada ao rever as cópias das falsas
carteiras de identidade que estavam em sua bolsa quando foi presa, no centro de São Paulo, em 16
de janeiro de 1970: um título de
eleitor e uma carteira colegial em
nome de Marina Guimarães Garcia de Castro, e um RG em nome
de Maria Lúcia Santos. Nos três, a
mesma foto. Tinha então 22 anos.
A entrevista privilegia sua
amarga experiência na tortura. É
de registrar que a ministra negou
sua participação direta no assalto
ao cofre da amante de Adhemar
de Barros, a ação de maior envergadura da VAR-Palmares. No
"Mulheres...", coloquei-a na ação,
erro do qual penitencio-me.
Dilma Vana Rousseff Linhares é
mineira de Belo Horizonte, nascida a 14 de dezembro de 47, filha
do búlgaro naturalizado Pedro,
advogado, e da professora Dilma
Jane Silva, de Friburgo (RJ), mas
criada em Uberaba (MG). Sua militância política começou em
1967, na Polop, quando cursava a
Escola Federal de Economia. Foi
recrutada pelo noivo e depois marido Cláudio Galeno de Magalhães Linhares. Com as primeiras
prisões, foi com o marido para o
Rio, onde integrou o Colina.
Ensinou marxismo para uma
célula, escreveu artigos apara o
jornal "Piquete", ajudou na infra-estrutura de algumas ações armadas (três assaltos a banco) e subiu
para a direção do Colina. Estava
no congresso de Mongaguá (SP),
quando o Colina e a VPR criaram
a VAR-Palmares, e estava no de
Teresópolis, quando houve o "racha dos sete", Carlos Lamarca à
frente. Dilma ficou na VAR.
Separou-se do marido (que se
mudou para Cuba nas asas de um
seqüestro de avião, a 1º de janeiro
de 70) e tornou-se companheira
de Carlos Franklin Paixão de
Araújo, militante da VAR, advogado e ex-deputado estadual pelo
PDT gaúcho. Estão separados.
Têm uma filha, e são amigos.
Presa em 16 de janeiro de 1970,
mereceu, do procurador militar
que a denunciou, os epítetos de
"Joana D'Arc da subversão", "papisa da subversão", "criminosa
política" e "figura feminina de expressão tristemente notável". Só
saiu da cadeia no final de 1973.
Pergunta - Que lembranças a sra.
guardou dos tempos de cadeia?
Dilma Rousseff - A prisão é uma
coisa em que a gente se encontra
com os limites da gente. É isso que
às vezes é muito duro. Nos depoimentos, a gente mentia feito doido. Mentia muito, mas muito.
Pergunta - Em um dos seus depoimentos da fase judicial, a sra. denunciou que o capitão Maurício foi
ameaçá-la de tortura por estar indignado com as propositais contradições de seus depoimentos.
Dilma - Voltei várias vezes para a
Oban, a Operação Bandeirante.
Descobriam que uma história não
fechava com a outra, e aí voltava.
Mas aí eu já era preso velho. Preso
velho é um bicho muito difícil de
pegar na curva. Preso novo, você
não sabe o tamanho da dor.
Pergunta - Como era essa história
de mentir diante da tortura?
Dilma - A gente tinha que fazer
uma moldura e só se lembrar da
moldura, da história que se inventava, e não saía disso. Tinha que
ter uma história. Na relação do
torturador com o torturado a única coisa que não pode acontecer é
você falar "não falo". Se você falar
"não falo", dali a cinco minutos
você pode ser obrigado a falar,
porque eles sabem que você tem
algo a dizer. Se você falar "não falo", você diz pra eles o seguinte:
"Eu sei o que você quer saber e
não te direi". Aí você entrega a arma pra ele te torturar e te perguntar. Sua história não pode ser "não
falo". Tem que ser uma história e
dali para a frente você não sabe
mais nada, não pode saber.
Pergunta - É um jogo difícil.
Dilma - É uma arte. A dificuldade é convencê-lo de que você não
sabe mais do que aquela moldura.
Não é um jogo só de resistência física, é de resistência psíquica. Até
porque uma das coisas que você
descobre é que você está sozinho.
Pergunta - Quais são as cenas que
estão vindo na sua cabeça, agora?
Dilma - Eu lembro de chegar na
Operação Bandeirante, presa, no
início de 70. Era aquele negócio
meio terreno baldio, não tinha
nem muro, direito. Eu entrei no
pátio da Operação Bandeirante e
começaram a gritar "mata!", "tira
a roupa", "terrorista", "filha da
puta", "deve ter matado gente". E
lembro também perfeitamente
que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu
dei meu nome verdadeiro. Ela
disse: "Xi, você está ferrada". Foi o
meu primeiro contato com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era
pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque
vai formando crosta de sangue,
sujeira, você fica com um cheiro...
Pergunta - Por onde a tortura começou?
Dilma - Palmatória. Levei muita
palmatória.
Pergunta - Quem batia?
Dilma - O capitão Maurício sempre aparecia. Ele não era interrogador, era da equipe de busca.
Dos que dirigiam, o primeiro era
o Homero, o segundo era o Albernaz. O terceiro eu não me lembro
o nome. Era um baixinho. Quem
comandava era o major Waldir
[Coelho], que a gente chamava de
major Lingüinha, porque ele falava assim [com língua presa].
Pergunta - Quem torturava?
Dilma - O Albernaz e o substituto dele, que se chamava Tomás.
Eu não sei se é nome de guerra.
Quem mandava era o Albernaz,
quem interrogava era o Albernaz.
O Albernaz batia e dava soco. Ele
dava muito soco nas pessoas. Ele
começava a te interrogar. Se não
gostasse das respostas, ele te dava
soco. Depois da palmatória, eu fui
pro pau-de-arara.
Pergunta - Dá pra relembrar?
Dilma - Mandaram eu tirar a
roupa. Eu não tirei, porque a primeira reação é não tirar, pô. Eles
me arrancaram a parte de cima e
me botaram com o resto no pau-de-arara. Aí começou a prender a
circulação. Um outro xingou não
sei quem, aí me tiraram a roupa
toda. Daí depois me botaram outra vez.
Pergunta - Com choques nas partes genitais, como acontecia?
Dilma - Não. Isso não fizeram.
Mas fizeram choque, muito choque, mas muito choque. Eu lembro, nos primeiros dias, que eu tinha uma exaustão física, que eu
queria desmaiar, não agüentava
mais tanto choque. Eu comecei a
ter hemorragia.
Pergunta - Onde eram esses choques?
Dilma - Em tudo quanto é lugar.
Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, nas orelhas. Na cabeça, é um horror. No bico do
seio. Botavam uma coisa assim,
no bico do seio, era uma coisa que
prendia, segurava. Aí cansavam
de fazer isso, porque tinha que ter
um envoltório, pra enrolar, e largava. Aí você se urina, você se caga todo, você...
Pergunta - Quanto tempo durava
uma sessão dessas?
Dilma - Nos primeiros dias, muito tempo. A gente perde a noção.
Você não sabe quanto tempo,
nem que tempo que é. Sabe por
quê? Porque pára, e quando pára
não melhora, porque ele fala o seguinte: "Agora você pensa um
pouco". Parava, me retiravam e
me jogavam nesse lugar do ladrilho, que era um banheiro, no primeiro andar do DOI-Codi. Com
sangue, com tudo. Te largam. Depois, você treme muito, você tem
muito frio. Você está nu, né? É
muito frio. Aí voltava. Nesse dia
foi muito tempo. Teve uma hora
que eu estava em posição fetal.
Pergunta - Dá pra pensar em resistir, em não falar?
Dilma - A forma de resistir era
dizer comigo mesmo: "Daqui a
pouco eu vou contar tudo o que
eu sei". Falava pra mim mesmo.
Aí passava um pouquinho. E mais
um pouco. E aí você vai indo. Você não pode imaginar que vai durar uma hora, duas. Só pode pensar no daqui a pouco. Não pode
pensar na dor.
Pergunta - A sra. agüentou?
Dilma - Eu agüentei. Não disse
nem onde eu morava. Não disse
quem era o Max [codinome de
Carlos Franklin Paixão de Araújo,
então seu marido]. Não entreguei
o Breno [Carlos Alberto Bueno de
Freitas], porque tinha muita dó.
Vou dizer uma coisa que uma tupamara, presa com a gente, disse
pra mim. A tupamara ficou até
com lesão cerebral. Ela disse: "Sabe por que eu não disse, naquele
dia, quem era quem? Porque eu
era mulher do fulano de tal e queria provar que o uruguaio é tão
bom quanto o brasileiro".
Pergunta - Qual é o significado da
frase?
Dilma - Que as razões que levam
a gente a não falar são as mais variadas possíveis.
Pergunta - Quais foram as suas?
Dilma - Tinha um menino da
ALN que chamava "Mister X". Eu
o vi completamente destruído.
Não sei o que foi feito dele. Nunca
vou esquecer o quadro em que ele
estava. Primeiro, eu não queria
que meus companheiros estivessem numa situação daquelas. Segundo, eu tinha medo que algum
deles morresse. Terceiro, porque
teve um dia que eu tive uma hemorragia muito grande, foi o dia
em que eu estive pior. Hemorragia, mesmo, que nem menstruação. Eles tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército.
Encontrei uma menina da ALN.
Ela disse: "Pula um pouco no
quarto para a hemorragia não parar e você não ter que voltar".
Pergunta - Palmatória, pau-de-arara, choque. O que mais?
Dilma - Não comer. O frio. A
noite. Eles te botam na sala e falam: "Daqui a duas horas eu volto
pra te interrogar". Ficar esperando a tortura. Tem um nível de dor
em que você apaga, em que você
não agüenta mais. A dor tem que
ser infligida com o controle deles.
Ele tem que demonstrar que tem
o poder de controlar tua dor.
Pergunta - E o torturado?
Dilma - O jogo é jamais revelar
pra ele o que você acha. Ele não
pode saber o que você pensa e ele
nunca pode achar que você só fala
depois de apanhar. Jamais. É melhor você não deixar ele perceber
que te tira informação por tortura. Tem que ter uma história. O
ruim é quando a sua história rui,
por qualquer motivo. Ele acha
que você mentiu. Se ele achar que
você mentiu, você está roubada.
Ele descobriu qual é o jogo. Quando você volta, e é por isso que voltar é ruim, ele diz: "Você mentiu,
pô, o negócio é que você mente".
Pergunta - A sua história caiu?
Dilma - Uma vez caiu tudo, mas
aí era tarde demais. Caiu tudinho
da Silva. Porque eu dizia que o
meu marido tinha seqüestrado o
avião e que, se eu não tinha saído
com ele, é que eu era uma pessoa
que não sabia de nada, que, se
soubesse, teria ido junto. Aí eles
descobrem que eu era da direção
da VAR, e que portanto era impossível não saber do seqüestro.
Tava zebrado. Aí tem que falar:
"Não, eu era da direção, mas estava separada dele". Se a sua história cai, você está roubado.
Pergunta - O que é que ajuda,
nesses momentos?
Dilma - Se eu tivesse ficado sozinha na cadeia, teria muito mais
problemas. Devo grande parte de
ter superado, absorvido e em alguns momentos chegado até a
ironizar a tortura, para agüentar,
às minhas companheiras. Eu lembro do povo do [presídio] Tiradentes, que esteve comigo.
Pergunta - De algum momento
em particular?
Dilma - Quando alguma de nós
era chamada para o repique, que
era voltar à Oban, havia um processo de contágio, de medo, e de
uma identificação muito forte entre nós. Como forma de ter controle da situação, a gente dessolenizava. Então, tinha uma variante
de grito de guerra. Não mostra
que a gente foi heroína, coisíssima
nenhuma, e não é nesse sentido.
Mas foi a tentativa mais humana
de dominar o indizível, que era dizer: "Fulana, não liga não, se você
for torturada a gente denuncia". E
ria disso, pela ironia absoluta que
é. O que é que adianta denunciar?
Para torturado, o que é que adianta? Mas a gente gritava isso na hora que a pessoa estava saindo da
cela, como uma forma de manter
o nível de controle sob seu destino, que você não tinha. Você não
sabia para onde você ia ou para
onde a sua companheira ia.
Pergunta - Que balanço a sra. faz
da experiência desse período?
Dilma - Não daria certo. A gente
fez uma análise errada. Achamos
que a ditadura estava em crise, e
estava iniciando o "milagre" [econômico]. A gente não percebeu
em que condições a atuava. Se a
gente tivesse feito uma análise
correta da realidade, se tivesse visto o que estava acontecendo...
Mas a gente não percebeu, apesar
da retórica, qual era o nível de endurecimento político e de repressão que eles iam desenvolver.
Pergunta - O que dizia a retórica?
Dilma - A gente achava que o negócio era uma guerra revolucionária prolongada, ou era um processo de guerrilha urbana, no momento em que o sistema estava
em expansão ou ia começar uma
baita expansão e o endurecimento pesado. Não se esqueça que no
meio de 69 tem a Junta Militar, e
daí para a frente você tem talvez o
período mais pesado da ditadura,
que é o período Médici. É o prende, prende, mata, mata. Numa situação dessas, nós estávamos
muito isolados, talvez umas 240
pessoas. O que é que eles fizeram?
Eles nos cercaram, desmantelaram, e uma parte mataram. Foi isso que eles fizeram conosco. Eles
isolaram a gente e mataram.
Pergunta - E por que se avaliou
tão mal?
Dilma - De uma certa forma, a
gente tinha um modelo na cabeça.
De todo forma, eu acho que a minha geração tem um grande mérito, que é o negócio da Var-Palmares: "Ousar Lutar, Ousar Vencer".
Esse lado de uma certa ousadia. A
gente tinha uma imensa generosidade e acreditávamos que era
possível fazer um Brasil mais
igual. Eu tenho orgulho da minha
geração, de a gente ter lutado e de
ter participado de todo um sonho
de construir um Brasil melhor.
Acho que aprendemos muito. Fizemos muita bobagem, mas não é
isso que nos caracteriza. O que
nós caracteriza é ter ousado querer um país melhor.
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