São Paulo, terça, 21 de julho de 1998

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OS CANDIDATOS
Na sua terceira tentativa de conquistar a Presidência, cardiologista defende Estado forte e intervencionista
Campeão da rejeição, Enéas prega moralidade

LUIZ ANTONIO RYFF
da Sucursal do Rio

O cardiologista Enéas Carneiro, 59, cultiva a mística do primeiro lugar. Gosta de repetir que foi o melhor aluno em todas as séries do primário ao ginásio ou que passou em primeiro na Faculdade Fluminense de Medicina.
Mas, em política, o único primeiro lugar que o presidente do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona) conquistou até agora é o de rejeição.
Segundo a última pesquisa Datafolha, realizada em 8 e 9 de julho, 37% dos eleitores não votariam nele de jeito nenhum para a Presidência. Para cada eleitor seu, há nove que não votariam nele em hipótese alguma.
A rejeição a seu nome aumentou quase 30% em relação à última eleição, em 1994, em sua segunda tentativa de chegar à Presidência.
Na primeira, em 89, ainda desconhecido, amargou o sétimo lugar, mas tornou famoso o bordão "Meu nome é Enéas", que encerrava seus 15 segundos no programa eleitoral. Na segunda, deixou para trás pesos-pesados da política, como Leonel Brizola (PDT) e Orestes Quércia (PMDB), chegando em terceiro lugar.
Hoje, consegue arrebanhar apenas 4% das intenções de voto. Não que isso o incomode. Para ele, as pesquisas são manipuladas.
Levantamento do Datafolha revela que Enéas é visto como alguém inteligente e brilhante.
"Não é um atributo pelo qual eu tenha mérito nenhum. Foi Deus quem me deu. É como beleza física. Ninguém tem mérito por ser bonito", afirma ele, que tem na leitura seu maior prazer.
Contabiliza "milhares" de livros lidos e "dezenas de milhares" de trabalhos científicos em áreas que vão de estruturalismo, geopolítica e macroeconomia à lógica, epistemologia e cibernética, passando por filosofia, paleantropologia e astrofísica. E medicina, claro.
Os eleitores o classificam como um político folclórico e cômico. "Acho perfeitamente normal e compreensível", diz ele, afirmando que isso acontece toda vez que surge alguém contrário a um sistema estabelecido.
Para Mauro Francisco Paulino, gerente de pesquisa de opinião do Datafolha, "quem vota no Enéas não faz uma opção de voto, mas uma opção de protesto".
Seus eleitores estão concentrados na faixa definida pela pesquisa como "deslocados": de escolaridade alta, mas que não entraram bem no mercado de trabalho -têm renda baixa e são mais críticos em relação ao governo. Para alguns deles, Enéas seguiria um estilo à la Jânio Quadros -aparenta autoridade, preocupações morais e usa palavras brilhantes.
E qual a razão de sua taxa de rejeição ter crescido tanto? Entre os motivos apontados pelos eleitores está a idéia defendida por Enéas de fabricar a bomba atômica.
"Por que vamos continuar nos comportando como meninos no cenário internacional?", pergunta Enéas, que vê a bomba como símbolo da maturidade da nação. "A bomba não é para jogar em ninguém", ressalva. Para ele, com a arma o país seria mais respeitado.
O respeito à ordem é um dos alicerces de seu pensamento. Enéas passou oito anos no Exército e admite a sintonia de pensamento com o espírito da corporação. É uma chave para a compreensão de sua figura. "Encontrei no Exército aquilo de que gosto: ordem, respeito, hierarquia e disciplina."
Ele não gosta de ser rotulado de fascista. Como o líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen -com quem costuma ser comparado à revelia-, Enéas prefere se definir como nacionalista.
Ele admira políticos centralizadores e com excesso de autoridade. Na última vez em que votou para a Presidência, antes de se candidatar, ajudou a eleger Jânio Quadros em 1960 -e se arrependeu. E cita Getúlio Vargas como "um símbolo da defesa do direito nacional".
Outra história é demonstrativa de seu espírito. Quando foi convidado a apitar uma simples pelada, há algumas décadas, fez questão de estudar as regras de futebol "para não fazer feio".
Para o eleitor, os dois escândalos em que Enéas -ou seu partido- se envolveu nos últimos quatro anos contam menos do que a idéia da bomba atômica.
Às vésperas da eleição de 1994, foi descoberto que ele pagava a um médico para fazer seus plantões no Hospital da Lagoa, no Rio. Assim, ele contava tempo para se aposentar. Ele reconhece que não havia "respaldo na lei", mas diz que a prática "é rotina em tudo quanto é lugar". "Os diretores (dos hospitais) sabem disso. É apenas uma coisa que não está prevista", afirma.
Mesmo assim, Enéas pediu demissão dos hospitais em que trabalhava. Hoje, ele sobrevive com aulas particulares sobre eletrocardiograma em São Paulo (às sextas) e Rio (terças) e com os proventos de sua editora. Ele tem cerca de 250 alunos em cada cidade em seus dois cursos semestrais.
Sua editora é parte do outro escândalo. No ano passado, a Folha noticiou que os candidatos a deputado estadual pelo Prona deviam pagar uma taxa de R$ 7.000.
Eles eram obrigados a comprar 700 exemplares da cartilha do Prona publicada pela editora Enéas Ferreira Carneiro Ltda. Segundo Enéas, o dinheiro serve para financiar o partido e seus deslocamentos pelo país. Ele lamenta apenas que o então presidente do Prona em São Paulo, Milton Melfi, tenha intermediado um ágio na compra da vaga de candidato.
O caso não teria tanta relevância se não se tratasse do partido de Enéas. O Prona em si não tem qualquer expressividade. Em seus nove anos de existência ainda não conseguiu ter mais de um deputado federal durante uma legislatura. Não tem governador, prefeito ou senador. Deputado estadual? Tem apenas um, o ex-pipoqueiro Blandino Amaral, no Rio.
Hoje, o deputado federal do Prona é o pastor Paulo De Velasco, secretário mundial da Igreja Universal do Reino de Deus. Católico "por formação", Enéas jura não ter nenhum vínculo com a Igreja Universal e que seu relacionamento com o bispo Edir Macedo se resume a dois contatos telefônicos.
Enéas continua defendendo um Estado forte e intervencionista. Lembra que, em 89, escreveu que defenderia o Brasil da "ventania neoliberal". Hoje, reconhece que a ventania virou furacão. Globalização, para ele, é quase um palavrão. "É um eufemismo para disfarçar uma coisa chamada pirataria, um processo de rapinagem."
Ele prega o "rompimento" com o sistema financeiro internacional. "Vamos pular fora do barco." Isso pode significar, diz, o calote da dívida. Desde que seja verificada "uma tentativa de fazer com que sejamos eternos devedores". Enéas pretende desvalorizar o real e trocar a moeda de nome. E privatização? "É uma doação", afirma Enéas, que promete anular todas.
Ele também prega uma cruzada moral. É contra o aborto ("arrepia-nos") e diz que vai tirar todas as crianças das ruas em, no máximo, seis meses. "Se não conseguirmos cumprir o compromisso, nós renunciaremos todos."
Homossexualismo? "Há colegas que defendem. Poucos, mas há. Bem poucos, graças a Deus", diz o cardiologista, casado e pai de três filhas. "É um desvio da normalidade. O tubo retal é um depósito de fezes. Não é um órgão sexual."
Antes da entrevista, Enéas coloca o relógio em cima da mesa para não perder a hora. Lamenta não ter mais tempo para nada -isso inclui música e cinema.
No primeiro caso, diz que, "quando novo, ouvia os clássicos" e que admira "esse senhor" Chico Buarque de "A Banda" -coincidentemente a mesma música citada pelo ex-presidente João Baptista Figueiredo. E revela já ter ouvido, ou visto, o É o Tchan de Carla Perez. "É um ritmo tão bonito."
No cinema, reconhece que ainda não viu "Titanic". "Sendo obrigado a saber o que está acontecendo na Malásia...", se desculpa.
Se a política não lhe tomasse o tempo, talvez tentasse realizar um sonho: ter um programa educativo de TV. "Seria uma beleza." Provavelmente, assim, poderia falar bem mais do que um minuto.



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