São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ninguém resolve problemas hoje sem o Brasil, diz Sarkozy

Presidente da França, que chega amanhã ao país, defende "refundação do capitalismo"

Para francês, crise não é do capitalismo, mas de um sistema que vem dando primazia ao especulador sobre o empreendedor


Eric Feferberg - 17.dez.08/Reuters
O presidente da França, Nicolas Sarkozy, que chega amanhã


CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O presidente Nicolas Sarkozy chega amanhã precedido de juras de amor ao Brasil, em entrevista à Folha, a ponto de dizer que "a reforma da governança mundial não é uma opção. Trata-se de uma necessidade, uma urgência".
Claro que tal reforma tem que incluir o Brasil: "Quem pode imaginar hoje poder resolver os problemas do mundo sem países como a China, a Índia e, é claro, o Brasil?"
O presidente da França aproveitou a entrevista -feita por e-mail- para explicar melhor o conceito de "refundação do capitalismo", expressão que utilizou no auge da crise e provocou não poucos receios em Washington. Sarkozy diz que a crise não é do capitalismo, mas de "um sistema que foi progressivamente dando primazia ao especulador sobre o empreendedor (...). O capitalismo não é a lei da selva, não é a irresponsabilidade generalizada, não é a primazia da especulação".

 

FOLHA - O que o sr. quer dizer com "refundação do capitalismo"?
NICOLAS SARKOZY
- Tenho a convicção de que a crise financeira que estamos atravessando não é uma crise do capitalismo: é a crise de um sistema que se distanciou dos valores mais fundamentais do capitalismo. É a crise de um sistema que foi progressivamente dando primazia ao especulador sobre o empreendedor. É a crise de um sistema que levou os agentes econômicos a assumirem cada vez mais riscos, e riscos cada vez mais inconseqüentes. É a crise de um sistema que deixou os bancos especularem nos mercados em vez de fazerem seu papel, que é financiar o investimento e o desenvolvimento. O capitalismo não é a lei da selva, não é a irresponsabilidade generalizada, não é a primazia da especulação. Quando falo de reconstrução do capitalismo quero dizer que devemos voltar aos verdadeiros valores da economia de mercado, os que colocam o empreendedor e o desenvolvimento no centro da economia. Devemos reconstruir um capitalismo regulado, um capitalismo onde os bancos cumpram com o seu papel, um capitalismo onde o risco seja avaliado, assumido, onde as agências de avaliação tenham um comportamento irrepreensível e sejam controladas, um capitalismo fundado na transparência e não na opacidade. Foi isso que propus e que começamos a construir, todos juntos, em 15 de novembro passado, na reunião do G20 em Washington.
Em Washington, as maiores economias do mundo entenderam-se sobre a necessidade de uma reativação econômica em âmbito mundial, de uma nova regulação dos mercados financeiros, de uma nova governança econômica mundial, mais aberta aos países emergentes, e da recusa ao protecionismo. A cúpula possibilitou avanços extremamente concretos em matéria de vigilância das agências de avaliação, de melhora da regulação, sobretudo em matéria contábil e de regra prudencial, ou no que se refere à política de remuneração nos bancos. Também decidimos abrir o Fórum de Estabilidade Financeira aos países emergentes.
A cúpula de Washington foi o marco de uma virada. O que estamos descobrindo desde então sobre as práticas de determinados financistas e as lacunas na regulação conforme é praticada hoje reforça em nós a idéia de que precisamos mudar rapidamente as coisas para devolver a confiança aos poupadores, aos investidores, a todo mundo. Não tenho dúvida de que o próximo G20 nos permitirá ir ainda mais longe.

FOLHA - Até agora todos os programas de socorro aos bancos produziram magros resultados em matéria de liberação de créditos. O que falta para que retorne a confiança?
SARKOZY
- Os programas a que se refere já nos permitiram evitar que o sistema financeiro mundial desmoronasse totalmente. Não é o que eu chamaria de um magro resultado. Não se esqueça de que passamos a dois dedos da catástrofe, quando, com a falência do Lehman Brothers, passamos de uma grave crise financeira ao que os economistas chamam de crise "sistêmica", uma crise de confiança generalizada no sistema financeiro e um risco de falências em série das instituições financeiras. Foi o que fizemos na Europa, ao adotar um plano de salvação que compreendia garantias importantes sobre os empréstimos interbancários, que são o pulmão do sistema financeiro, e ao intervir pontualmente para ajudar certo número de bancos em dificuldade.
A situação do crédito teria com isso voltado ao normal? É evidente que não, essas coisas levam tempo. Na França, estive por várias vezes com os representantes dos bancos e fui bem claro sobre o seguinte ponto: aqueles a quem estamos ajudando por meio dos bancos são as empresas e as famílias, e não os acionistas das instituições financeiras. Criamos um tal "Sr. Crédito", cuja missão é garantir que as pequenas e médias empresas tenham efetivamente acesso aos financiamentos. Foram feitos 50 mil contatos por meio de dirigentes de empresas ou de famílias para obtermos informações. Isso nos permitiu aprofundar as decisões dos bancos em 500 casos e evitar falências. Não nos contentamos com princípios ou injeções de bilhões. Examinamos caso a caso para encontrar uma forma de resolver as dificuldades.
A prioridade agora é devolvermos a confiança aos agentes econômicos por meio de medidas adequadas para a reativação. Nossa responsabilidade é enviar sinais políticos significativos, e o primeiro deles é continuar coordenando de maneira estreita nossos esforços.

FOLHA - Há muitas críticas à União Européia, que dizem que ela foi incapaz de atuar em conjunto. Lembra a famosa frase de Henry Kissinger: "Se eu quiser falar com a Europa, que número de telefone disco?" Falta à UE capacidade de ação conjunta?
SARKOZY
- O que vimos nas últimas semanas foi exatamente o inverso do que acaba de me descrever. Vimos uma Europa unida, uma Europa determinada, uma Europa que agiu. Não só a Europa reagiu à crise de maneira coordenada como esteve na vanguarda das iniciativas tomadas em nível mundial. Foi o plano adotado pelos europeus em 12 de outubro, na cúpula da Zona do Euro, e depois, nos dias 15 e 16 de outubro, no Conselho Europeu, que inspirou o plano americano "Paulson 2". Também foi a Europa que propôs e obteve a reunião do G20, em Washington, que resultou na adoção de medidas extremamente concretas, e que se reunirá novamente no dia 2 de abril em Londres. E foi ainda a Europa que, durante o Conselho Europeu da semana passada, esteve entre os primeiros a implementar orientações decididas em Washington. Nesta crise, não só a Europa possuía um número de telefone, mas tinha sobretudo uma vontade e uma solidariedade inabaláveis. Essa Europa unida e na vanguarda também é a que pôs fim à crise entre a Rússia e a Geórgia, e é a que possibilitou avanços históricos, seja na luta contra o aquecimento climático, mas também na área de defesa e imigração. A Europa tem hoje consciência de que nunca é tão forte como quando está unida.


Texto Anterior: Painel
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.