São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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ELIO GASPARI

Em Santiago, Lula ficará mal na foto

Dia 11 de fevereiro "nosso guia" estará em Santiago para a posse de Michelle Bachelet. Terá Evo Morales, presidente da Bolívia, no mesmo palanque. Nesse trio, Lula simbolizará a apropriação, pelo andar de cima de Pindorama, dos recursos que o Estado morde no de baixo. Personificará a compulsão do usufruto. Para seu constrangimento pessoal, terá ao lado dois governantes que dão exemplos na direção oposta.
Pelo seguinte: o companheiro recebe mensalmente um salário de R$ 8,5 mil. Até aí, tudo bem, quem trabalha de graça é relógio. Lula acumula esse dinheiro com R$ 3,9 mil mensais de pensão como vítima da ditadura. (Em 1980, o governo cassou seu mandato sindical e manteve-o preso por 31 dias.)
A nova presidente do Chile é filha de um general morto na prisão em março de 1974. Ela e a mãe estiveram nos cárceres de Pi nochet por cerca de um mês, foram torturadas e gramaram seis anos de exílio na Austrália e na Alemanha. Michelle Bachelet renunciou à indenização oferecida pelo Estado chileno.
Até bem pouco tempo, Evo Morales morava num quarto alugado. Anunciou que devolverá ao erário cerca da metade do salário presidencial de 30 mil bolivianos (R$ 8.600). Determinou aos ministros que façam o mesmo.
Lula arrecada quase quatro vezes a média de R$ 1.000 dos 13 milhões de trabalhadores aposentados pelo INSS. Em valores reais, "nosso pensionista" já recebeu mais de R$ 700 mil.
As viúvas dos três auditores fiscais do Ministério do Trabalho assassinados em Unaí, em 2004, receberão indenizações de R$ 200 mil cada uma. Além disso, ganharam uma pensão mensal de R$ 400. Se cada uma delas viver mais cem anos, ainda assim não chegará ao valor que Lula já recebeu. Seus maridos morreram a serviço da República reprimindo o trabalho escravo,
Se o companheiro tivesse sido vítima da ditadura chilena (4.000 mortos e desaparecidos, 45 mil torturados) teria direito ao benefício de uma lei genérica: um único cheque de três milhões de pesos (R$ 13,5 mil), uma pensão mensal equivalente a R$ 517 e estamos conversados. São necessários mais de cinco pensões chilenas para remunerar o bem-aventurado sindicalista brasileiro.
No Brasil do PT-Federal, o exemplo pedido por Evo Morales a seus ministros não prosperaria. Os doutores não mexeram na tradição tucana. Quando podem, os "altos companheiros" turbinam seus salários em conselhos de empresas estatais onde têm assento.
Em novembro passado, o repórter Fábio Zanini mostrou que essas boquinhas haviam rendido pelo menos R$ 743 mil para seis afortunados. O melhor pedaço do pernil foi para o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, que recebeu R$ 182,3 mil como conselheiro de dois cenáculos do velho e bom BNDES. O doutor é um poderoso empresário, grande acionista do frigorífico Sadia.
Lula não inovou. Apenas preservou iniqüidades que lhe convinham. A sorte lhe faltou quando viu-se no mesmo pedaço de mundo onde estão os exemplos de Michelle Bachelet e Evo Morales.

O mundo encantado da enganação tucana

Dois grão-tucanos deram, na quinta-feira da semana passada, uma preciosa contribuição à campanha eleitoral deste ano: expuseram publicamente a opção pelo embuste. Nos dois casos, tratou-se de enganar a patuléia maquiando ruínas da rede de saúde, fazendo de conta que aparelho travado funciona e que o inexistente existe. (Em 1998, o tucanato manteve-se no Palácio do Planalto fingindo que a crise cambial era coisa de pessimistas do PT. FFHH reelegeu-se em outubro, e o Brasil quebrou em janeiro.)
José Serra, prefeito de São Paulo e candidato a presidente da República, resolveu medir sua pressão arterial durante uma visita ao posto de saúde de Cidade Tiradentes, localidade habitada por 150 mil cidadãos de baixa renda. Acompanhado por jornalistas e fotógrafos, sentou-se diante de um daqueles aparelhos com bolinha de mercúrio. Veio o primeiro e, pffff. Trouxeram outro, dessa vez pilotado pela secretária de Saúde, Maria Cristina Cury.
"Finge que funciona", disse-lhe o prefeito.
Pfff.
"12 por oito", anunciou a secretária.
O prefeito e a doutora estavam num posto de saúde destinado a atender famílias de trabalhadores, dois aparelhos de medir pressão não funcionaram e, em vez de o céu desabar, privilegiou-se uma sessão de fotografias, simulando-se um tudo-bem. Não ocorreu ao prefeito dizer que só sairia dali quando alguém conseguisse trazer um medidor de pressão capaz de medir pressão. (Os aparelhos não funcionavam porque eram novos e continuavam lacrados. Continuavam lacrados porque não eram coisa do mundo da saúde pública de Cidade Tiradentes.)
No Rio de Janeiro, o tucanão Ronaldo Cezar Coelho, secretário municipal de Saúde, acompanhou o ministro Saraiva Felipe numa visita ao Hospital Souza Aguiar, o maior pronto-socorro da cidade. Tudo uma beleza.
O ministro esteve num bonito auditório, perfeitamente refrigerado, no agradável padrão dos 20C. Tudo mentira. O ar dos doutores era falso, soprado por dez máquinas alugadas por quatro horas. Dezenas de metros adiante, na sala de espera do setor de emergência, a refrigeração deficiente levava algumas pessoas a refrescarem-se com panos úmidos.
O secretário Ronaldo Cezar Coelho informou que o aluguel da frescura foi decisão sua. Disse assim: "Não faz sentido receber o ministro da Saúde aqui e não ter ar condicionado. (...) Isso é implicância de quinta categoria e não tem nada a ver com saúde. É uma bobagem. (...) Não sei quanto custou e não vou discutir preço de aluguel de ar-condicionado".
Se o secretário achava que não fazia sentido receber o ministro sem ar refrigerado, deveria recebê-lo em casa ou no seu gabinete. O que não faz sentido é associar a temperatura de um prédio público à presença de maganos. (Idéia: ministros e secretários com aparelhos portáteis, como os dos astronautas.) A cobrança não deriva de implicância nem de bobagem. Deriva da falsificação deliberada da realidade. A resposta de Ronaldo Cezar Coelho reflete a arrogância do andar de cima, onde as pessoas habituam-se a achar que existe um Brasil onde não faz calor. Se faz, como fazia na emergência do Souza Aguiar, o problema é do brasileiro, que sempre vai para o país errado.
Felizmente, no dia 1º de outubro, as turmas de Cidade Tiradentes e da emergência do Souza Aguiar vão batucar as maquininhas das seções eleitorais.


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