São Paulo, domingo, 22 de março de 1998

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LANTERNA NA POPA
Criminalidade e sensatez

ROBERTO CAMPOS
Nesta terra onde problemas não faltam, talvez o que mais preocupe a grande maioria das pessoas seja a insegurança coletiva diante da criminalidade sem controle. Os números são terríveis: em década e meia, os homicídios subiram quase 198%, de 2.826 em 1980, para 8.408 em 94. Estes dias, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, na sua reunião anual, que se fez em Cartagena, na Colômbia, estimou que os custos da violência apresentam US$ 168 bilhões por ano na América Latina, equivalentes a 14,2% do PIB: no caso do Brasil, US$ 84 bilhões, isto é, 10,5% do PIB.
O aumento da criminalidade é um fenômeno mundial, embora muito desigualmente distribuído. Há duas ou três décadas, a criminalidade era relativamente discreta, tanto em países industrializados ordeiros e ricos, como a Alemanha e o Japão, quanto em partes da paupérrima África. Para alguns observadores, o processo de "americanização" tem coincidido com a aceleração desse fenômeno, porque traz consigo um culto um tanto desenfreado do individualismo e da falta de limites, e um progressivo desenraizamento, com a perda da significação pessoal do trabalho. Em suma, o que se poderia resumir por "alienação", que, no caso das sociedades menos desenvolvidas, é exponenciada pela urbanização explosiva e descontrolada, combinada com o começo da industrialização.
É evidente que a erosão dos valores e das estruturas, que acompanha a transição das sociedades tradicionais para os tempos atuais, não pode deixar de ser desestabilizante e, por conseguinte, afrouxar as malhas das normas e costumes que definem a ordem pública. Mas a opinião dos analistas mais sólidos não concorda com o facilitário de explicações que culpam as abstrações "sociedade" ou "injustiça social" pelas aberrações do comportamento esperado dos indivíduos. É muito difícil falar-se em "uma causa" específica, em se tratando de sistemas complexos em que numerosos fatores, nem sempre suficientemente reconhecidos, ou nem sequer identificados, interagem no espaço e no tempo.
Além disso, é preciso distinguir (como fazem dois estudiosos dos problemas urbanos, P. Gizewski e T. Homer-Dixon) entre, pelo menos, três formas distintas de "violência": (1) a violência política, dirigida contra o Estado, ou empregada por este contra os que o desafiam; (2) a violência comunal e étnica, e (3) a violência tipicamente criminosa ou anônima. A primeira existe em algumas partes da América Latina, mas não no Brasil. A segunda, insignificante no nosso continente, aflige regiões da Europa, da Ásia e da África. A terceira, que nos atinge de perto, é um fenômeno que vem aumentando em escala mundial. Nos Estados Unidos, a taxa de crimes violentos que, em 1958, era de 122,1 por 100 mil habitantes, subira para 757,5 em 1992. De 1980 a 1990, as prisões por homicídio de menores entre 10 e 17 anos aumentaram 65%. Na Alemanha, protótipo de sociedade organizada e com excelentes serviços sociais, nos últimos dez anos, a delinquência relacionada com drogas cresceu 250%, e a criminalidade geral, 70%. No Canadá, país de ótima qualidade de vida, os crimes violentos tinham subido 340% em 1988, em relação a 1965.
Certas atitudes intelectuais contribuíram, nestas últimas décadas, para enfraquecer as defesas da sociedade. Um especialista inglês, Norman Dennis, referiu-se ao aberrante modismo da "Nova Criminologia" e "Sociologia Crítica", nos anos 70 e 80, de ver o mundo do criminoso como superior ao do cidadão comum cumpridor da lei, atitude que acabou sendo mandada para escanteio pela reação horrorizada do público quando, em 1993, dois meninos de dez anos sequestraram e mataram um garotinho de dois. Isso levou o governo trabalhista de Tony Blair a revogar a inimputabilidade de criminosos a partir de dez anos, que passarão a ser julgados por tribunais. Nos Estados Unidos, o prefeito de Nova York, o promotor Giuliani, implantou o sistema de "tolerância zero" para crimes e contravenções, logrando cortar pela metade os homicídios.
As regras de comportamento do homem não são, como a dos outros entes vivos, mapeadas rigidamente em um código genético. E mesmo entre as espécies animais, há certa margem de variação. Seria fácil se pudéssemos reduzir a questão à liberdade humana: possuindo a faculdade de escolher, o homem é livre de optar por comportamentos que contrariem os princípios que os demais (e até ele próprio) considerem certos. A condição humana é tão complicada, porém, a fisiologia tão incerta (que significarão, por exemplo, uma doença mental, ou uma "personalidade a-social"?), e a variedade das culturas tão imensa, que estamos hoje muito longe dos teólogos espanhóis que, em defesa dos interesses papais no Concílio de Trento, há mais de quatro séculos, desenvolveram a argumentação de haver um "direito natural" acessível à razão de todos os homens. Bem ou mal, nossos conceitos tiveram de ser "relativizados" ao longo do tempo.
Um estudo de Cambridge sobre o desenvolvimento do delinquente mostrou que o mais seguro fator de previsão de comportamento criminoso é a ficha do indivíduo no período anterior. Outros fatores, relativamente menos importantes, seriam as "privações econômicas" (baixa renda e moradia deficiente), a "história criminal da família" (parentes condenados, maus cuidados da família, inclusive supervisão e criação deficientes), e "fracasso escolar" (inclusive más notas e baixa inteligência). Outras pesquisas têm mostrado que os assim chamados "sociopatas", apesar de representarem apenas 3% a 4% da população masculina, e cerca de 1% da feminina, constituem uns 20% dos presos nas penitenciárias americanas, e de 33% a 80% dos delinquentes crônicos. A opinião pública tem ficado assustada com os exemplos de delinquência de estudantes brancos de alta classe média, que não são vítimas de privações ou de "injustiças sociais". Entre nós, Brasília é um exemplo de crescente criminalidade de jovens de "boas famílias".
Consta que 23% dos brasileiros são vítimas de roubos, assaltos ou agressões. E no Rio, há muito passou do intolerável: os homicídios triplicaram nos últimos 15 anos. Os custos do crime, só para essa nossa cidade, andariam em US$ 2 bilhões. Conforme observa Ib Teixeira em realista artigo da "Conjuntura Econômica" (janeiro de 1998), a atual taxa de homicídios no Rio de Janeiro (por 100 mil habitantes) é 4,8 vezes a de Nova York, 12,8 a de Buenos Aires e 33,7 vezes a de Santiago. Segundo ele, seria necessária uma revisão abrangente de nossa legislação criminal, começando pelo Código Penal e o ingênuo Estatuto da Criança e do Adolescente, mas alcançando também a Lei de Execuções Penais (que não exclui os amotinados da redução de penas) e o Código de Processo Penal (que torna lenta a punição de crimes, inclusive de homicídio).
Temos de ter normas objetivas e claras, e cumpri-las para valer. Feito as regras do trânsito. Não se indaga qual a idade ou o grau de culpa de quem furou o sinal vermelho, mas apenas o fato. Com a nossa capacidade de fazer maluquices em nome de boas intenções, criamos uma legislação de menores que é um tremendo estímulo à perversão e ao crime, ao fazê-los inimputáveis até os 18 anos. Recado para os saudosistas de esquerda: nos gloriosos tempos de Stálin, a pena de morte era aplicada a partir dos 12 anos de idade!...
Entre nós, o bandido tem até pastoral, enquanto as vítimas, às centenas de milhares, são abandonadas à própria sorte. Nos realmente democráticos Estados Unidos, existe desde 1983, no governo federal, uma agência para as vítimas do crime (OVC), que só se ocupa de ajudá-las sob todos os aspectos, inclusive financeiramente. E o número e a influência de instituições públicas estaduais e privadas nesse campo é grande. Lá, a vítima é importante. Entre nós...? Depois, estranham que o Ratinho faça sucesso na televisão...


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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