São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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NO PLANALTO

Sob FHC, Brasília tornou-se o céu da filantropia católica

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A PUC-MG conheceu, na semana passada, o seu reino dos céus. Fica em Brasília, no edifício anexo do Ministério da Previdência, sala de reuniões do CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social).
A universidade fora conduzida ao purgatório por auditores do INSS. Acusaram-na de pecado filantrópico capital: desapreço pela clientela pobre.
Na terça-feira, os conselheiros do CNAS se reuniram. Na pauta, o juízo final da PUC-MG. Perdendo o certificado filantrópico, desceria às profundezas. Mantendo-o, continuaria frequentando o maravilhoso mundo da isenção tributária.
O caso fora instruído por João Donadon, homem da Previdência no CNAS. Gilson de Assis Dayrell, representante do Ministério do Trabalho, pediu vista do processo. Apresentaria o seu voto.
Súbito, Dayrell investiu contra Donadon. Em vez de postar-se do lado do erário que lhe paga os proventos, converteu-se em advogado da PUC-MG. Deu-se o impensável: o governo abriu fogo contra o governo.
Como que pressentindo o inusitado da cena, Donadon ausentou-se da reunião. Renunciara dias antes à cadeira no CNAS. O posicionamento de Dayrell era previsível. É notória a sua benevolência com instituições geridas pela batina. Na origem da encrenca está uma decisão dele.
Reza a legislação que, para fazer jus à isenção de impostos, as filantrópicas têm de aplicar no mínimo 20% de suas receitas em assistência social. Conforme noticiado aqui, os balanços da PUC-MG (anos de 94, 95 e 96) traziam entre 4,5% e 7,6% de inversões em benemerência. Por isso a escola foi ao cadafalso.
Em 99, porém, época em que presidia o CNAS, Dayrell deu à universidade a chance de refazer as contas. Não adiantou. Novos números enviados a Brasília espelhavam percentuais filantrópicos de 14% a 17%, ainda abaixo do piso de 20%.
Em vez de julgar, o CNAS enviou novo ofício à PUC-MG. Assinou-o a freira Maria Tereza Diniz, que representava no conselho a sacrossanta CNBB. A correspondência continha uma curiosa ordem: "Refaçam os balanços".
Republicaram-se os balanços. E os investimentos filantrópicos passaram a oscilar, como que por milagre, entre 20,12% e 26,5%. Donadon achou que os novos números não mereciam crédito. Dayrell deu-se por satisfeito. Eximiu a escola de apresentar documentos comprobatórios. Aceitou de bom grado a alegação de que seria impossível copiar e transportar "36 caixas de arquivo, com 720 kg ao todo".
Para Dayrell, é incabível duvidar das atividades benemerentes da escola. "O CNAS não pode imaginar que esses trabalhos não tenham sido realizados ou, partindo de uma entidade como essa, presidida por um cardeal da Igreja Católica, que tenham sido inventados para comprovar gratuidades."
O diabo é que a fogueira da suspeição arde sob os pés do próprio cardeal endeusado pelo crédulo Dayrell. A universidade aplicou verbas filantrópicas na compra de um apartamento cedido a dom Serafim Fernandes de Araújo, arcebispo de Belo Horizonte e presidente da PUC-MG.
Fica no número 1.032 da rua Antônio de Albuquerque. Tem 333,5 m2. Custou, conforme a escritura, R$ 250 mil. Nele morava Maria Josefina de Araújo Macedo, irmã de dom Serafim. Serviria de morada ao próprio arcebispo, quando se aposentasse.
Verbas da escola financiam, de resto, despesas da Mitra Diocesana de Belo Horizonte, de uma emissora da igreja, a Rádio City Ltda., e de outras entidades católicas.
A PUC-MG argumenta que, ao republicar balanços, não lhes alterou o resultado final. Só explicitou as aplicações filantrópicas. Quanto ao apartamento, já teria sido vendido. O favorecimento à Mitra e à rádio estariam dentro dos objetivos estatutários da universidade.
Confrontado com o caso, um contribuinte, digamos, umbandista, em dia com o fisco, decerto há de dizer: "Amém".
Levado a voto, o parecer de Dayrell foi aprovado. O trabalho dos fiscais foi ao lixo. O INSS deve recorrer ao ministro da Previdência, único com poderes para reverter a decisão.
Empossado em abril, o ministro José Cechin arregaçou as mangas. Incomodado com informações veiculadas aqui, nomeou um grupo de correição. Vasculharam-se arquivos do CNAS.
Descobriu-se, por exemplo, que outra PUC, a de São Paulo, aplicou em filantropia, entre 94 e 96, entre 4,24% e 4,7% de seu faturamento. Um acinte. A escola receberá notificação do CNAS nos próximos dias. Ou se explica, ou pode perder o certificado filantrópico.
Ouvida pelo repórter, a PUC-SP diz que provará a correção de suas contas. Há de contar com a sempre diligente ajuda de Gilson Dayrell.
A decisão tomada no caso da PUC-MG deixou claro que, entre as regras que regem o funcionamento do CNAS, uma se sobressai: não há regras. O céu filantrópico é bem diferente do mundo real, em que padres são investigados até por abuso sexual.
No CNAS de Dayrell, a Igreja Católica é uma potência moral que só deve contas à sua própria e indiscutível noção de superioridade divina. Resta ao contribuinte desassistido um único caminho: que se queixe ao bispo.


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