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ENTREVISTA DA 2ª/HANS KÜNG - TEÓLOGO
Em visita ao Brasil, suíço defende métodos anticoncepcionais e fim do celibato
"A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil"
A IGREJA deve tornar a vida das pessoas mais
fácil, e não mais difícil. Essa frase condensa
as divergências entre dois dos maiores teólogos católicos do mundo, o suíço Hans
Küng, 79, e o alemão Joseph Ratzinger, 80, o papa
Bento 16 -para quem a Igreja deve ser uma comunidade, se preciso for, de poucos, mas de bons e fiéis.
Nesta entrevista, ele diz que proibir métodos anticoncepcionais é ser co-responsável por um eventual
aborto e que o celibato de padres é algo medieval.
Küng ainda critica a visita do papa ao Brasil, por impor
sua força em estabelecer padrões de moral sexual.
LEANDRO BEGUOCI
ENVIADO ESPECIAL A SÃO LEOPOLDO (RS)
O teólogo chegou ao Brasil no
sábado, quando concedeu esta
entrevista exclusiva cujos principais trechos estão abaixo.
Durante a semana, falará sobre seu tema predileto - a relação entre religiões e ética mundial- em sete conferências em
seis cidades: São Leopoldo
(RS), hoje, Porto Alegre e Curitiba, amanhã, Brasília na quarta e na quinta, quando irá à Câmara dos Deputados e deve se
encontrar com o presidente
Lula; ainda na quinta vai ao Rio
e a Juiz de Fora (MG), na sexta.
Apesar do encontro cordial
que teve com o papa em 2005, a
relação entre Küng e a Igreja
Católica ainda não é estável.
Ele não falará em nenhuma
PUC (Pontifícia Universidade
Católica). Sua vinda é patrocinada, principalmente, pela
Universidade Federal do Paraná e pelo Instituto Humanitas
da Unisinos, ligado aos jesuítas.
FOLHA - Uma das frases mais conhecidas do sr. diz que só haverá paz
no mundo quando houver paz entre
as religiões. A humanidade precisa
de religião para ter paz?
HANS KÜNG - Há muitos argumentos contra a religião. Um
deles é que ela legitima e provoca guerras, preconceitos, violência. Por outro lado, as religiões também têm uma função
positiva. João Paulo 2º foi contra a guerra no Iraque. Onde as
religiões estiveram favoráveis à
paz, propiciaram a paz. As religiões podem ser instrumentalizadas, assim como a música.
FOLHA - No início de seu pontificado, Bento 16 sugeriu que o islamismo é uma religião violenta.
KÜNG - Acho que ele sabe que
cometeu um erro. Afinal, ele
sempre se ocupou muito pouco
do Islã, dedicou todo o seu tempo para estudar os teólogos católicos. Da mesma maneira que
existe muita violência na história do Islã também existe na
história do cristianismo. O papa aprendeu com o erro. Na visita à Turquia, visitou a mesquita Azul [a mais importante de Istambul], onde prestou seu
respeito à religião islâmica.
FOLHA - Por que quem não tem religião deve se preocupar com isso?
KÜNG - Hoje, constatou-se que
a religião é um fator político e
que ignorá-la é um erro. Ela
mobiliza milhões de pessoas.
Condeno posições extremas.
Uma delas é a religiosidade
agressiva. Ela condena a separação entre Estado e religião,
como os islâmicos que procuram transformar todo o povo
muçulmano em extremista e
como os imperialistas da Igreja
Católica Romana que querem
fazer da Europa, no sentido de
João Paulo 2º, um continente
católico, como se todos os países devessem ser a Polônia.
Outra posição extrema é a
excessivamente laicizante. Alguns franceses laicistas ainda
não conseguiram digerir a Revolução Francesa. Essa é uma
das posições tomadas no Parlamento Europeu por pessoas
que se manifestaram contra a
menção ao cristianismo como
uma das raízes da Europa.
A posição correta seria a que
reconhece a importância da religião, mas não faz dela um fator de dominação.
FOLHA - O sr. defende a idéia de
uma ética mundial, válida para crentes das mais diversas religiões, além
dos ateus. Essa tese tem receptividade no Vaticano?
KÜNG - O papa também quer o
diálogo entre as religiões.
Quando estivemos juntos, discutimos esse ponto. Algo concreto que se pode fazer, e isso o
papa também deseja, é uma nova forma de associação das lideranças religiosas mundiais que
poderiam, juntas, afirmar princípios éticos comuns.
Essa é a idéia do projeto de
ética mundial que defendo. O
princípio básico de que você
não deve fazer ao outro aquilo
que não quer que ele lhe faça é
comum a várias religiões e a
muitas pessoas não-crentes.
Ainda há quatro princípios
importantes. O primeiro é não
matar, e isso não vale só para
quando se discutem questões
como a do aborto, mas também
para as guerras, para as favelas
do Rio e para a periferia de Berlim. O segundo é não mentir, o
terceiro, não roubar, e o quarto,
não abusar da sexualidade.
Não se vai resolver o problema da violência apenas com recursos policiais. Devemos mostrar esses princípios nas escolas, dizendo que eles não vêm
de cima para oprimir os jovens,
mas vêm para libertá-los.
FOLHA - Quando o papa esteve no
Brasil em maio deste ano, ele não se
reuniu com líderes das igrejas evangélicas pentecostais. Como construir esse consenso com religiões
que se comportam como rivais?
KÜNG - Seria muito bom que o
papa tivesse encontrado os líderes dessas religiões. Ele teria
ouvido, muito provavelmente,
quais são os pontos fracos da
Igreja Católica, por que perdeu
tantos fiéis. Como é que se pode
pensar que não vão surgir várias comunidades menores
quando, em São Paulo, há um
padre para 200 mil pessoas?
Um fator que dificulta o surgimento de novos padres é exatamente essa lei medieval do
celibato. A Igreja precisa repensar essas coisas. Quando se
toma uma posição de que a missa precisa ser celebrada segundo os preceitos romanos, acaba
sendo muito chato. Por outro
lado, você tem cultos dos pentecostais que são muito mais
animados na sua liturgia, com
gestos, canções. Quando a gente simplesmente imita essa liturgia, não é bom. Mas aproveitar elementos é bom.
FOLHA - Muitos atribuem a perda
de fiéis no Brasil à teologia da libertação, que teria se preocupado mais
com a pobreza do que com a alma.
KÜNG - A teologia da libertação
foi uma das primeiras que falou
de uma participação popular na
liturgia. Se houvesse tido mais
espaço para ela na América Latina, provavelmente teríamos
muito menos pentecostais.
Mas, desde o início, fui crítico
em relação à predominância de
elementos marxistas na teologia da libertação, em relação às
ilusões de que se poderia ter
uma grande revolução.
FOLHA - Quais são os maiores desafios da Igreja e deste papa?
KÜNG - O grande desafio da
Igreja é não retroceder. O desafio do pontificado seria trazer
novos impulsos para isso. Mas,
até o momento, não aconteceu.
Não se pode ignorar que nós, da
Igreja Católica, , estamos em
meio a uma grande crise.
Manifestações do papa, como foram feitas no Brasil, mostram simplesmente a fachada
de uma Igreja que nas suas estruturas mais profundas está
em uma situação muito difícil.
FOLHA - O que o sr. tem em comum
com Bento 16?
KÜNG - Nós dois sempre servimos à mesma comunidade de
fé cristã e sempre buscamos
um cristianismo autêntico.
A diferença se refere principalmente ao método. O papa
defende o modelo romano como o único para todas as igrejas, seja na China ou na América Latina, o que, para mim, não é católico, no sentido de católico como algo universal. Minha
opção é por um modelo pautado no Evangelho, no Novo Testamento, e isso possibilita muito mais o diálogo com as igrejas pentecostais e protestantes.
FOLHA - Há muitas católicas que
fazem aborto. Que tipo de resposta
a Igreja deveria dar a elas?
KÜNG - A solução não está nem
em permitir tudo nem em reprovar tudo. Se o objetivo é evitar o aborto, o que é muito desejável, então seria preciso favorecer os métodos anticoncepcionais. Quem proíbe esses
métodos é co-responsável pela
existência de tantos abortos.
É tarefa da Igreja encontrar
uma posição intermediária entre o tudo é permitido e o tudo é
proibido, para trazer as pessoas
para uma posição intermediária nas suas vidas. Esse caminho do meio seria, no caso de
uma mulher que se vê diante da
questão do aborto, tomar ela
mesma a decisão. Depois, que
ela não ficasse sofrendo problemas de consciência e de culpa,
mas se visse satisfeita pela decisão. Mesmo segundo a teologia
moral tradicional, uma consciência que comete um erro está justificada. A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil, e não mais difícil.
FOLHA - E aos homossexuais?
KÜNG - Também há posições
extremas, ambas erradas. Por
um lado, seria um erro ignorar
que existem propensões homossexuais. No que diz respeito à vida individual, não cabe à
autoridade clerical decidir.
Outra posição extrema é a
que transforma a homossexualidade em um motivo de propaganda ou de exibicionismo e,
por isso, muitas manifestações
homossexuais não contribuíram em nada para a visão mais
correta desse tema justamente
porque se mostram de uma maneira desavergonhada, que repercute mal na opinião pública.
FOLHA - Há espaço para o debate
sobre esses temas dentro da Igreja?
KÜNG - A verdade última pertence apenas a Deus. É impossível para qualquer ser humano, desde o fiel mais simples até o papa, dispor integralmente da verdade. É claro que existem algumas verdades realmente válidas, como esses princípios éticos que valem como consenso
para toda e qualquer pessoa. Agora, há várias maneiras para se aplicar uma verdade. É natural que haja controvérsias sobre isso na Igreja. No que diz respeito às verdades complexas, não poderia ser simplesmente resolvido por uma ditadura, mas no debate. Se o papa
se pronuncia contra a ditadura
do relativismo, também precisaria ter claro que muitas pessoas têm muito mais medo é de
a ditadura do absolutismo, que
muitas vezes vem de Roma.
FOLHA - Que tipo de relação o sr.
tem com o papa?
KÜNG - Durante o pontificado
de João Paulo 2º [1978-2005],
tivemos uma relação muito
tensa, ou nenhuma. Eu esperava muito que Ratzinger reagisse positivamente à carta que
lhe enviei logo depois da sua
eleição, pedindo uma conversa
aberta, que João Paulo 2º jamais me concedeu. As nossas
relações, hoje, estão muito
mais distensionadas. Ele sabe
que não abro mão de fazer críticas, mas posso fazê-las de maneira muito mais solidária. A
posição dele é muito diferente
da de seu antecessor. Mandei o
segundo volume das minhas
memórias para Roma e recebi
uma resposta muito amigável.
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