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Furtado e a compreensão do subdesenvolvimento
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
COLUNISTA DA FOLHA
Tem razão Chico de Oliveira no
prefácio de seu livro sobre Celso
Furtado: devemos tudo a ele. O
plural majestático se aplica naturalmente às sucessivas gerações
de economistas e cientistas sociais
que teimam em descobrir e redescobrir o Brasil. Devemos a Furtado a compreensão da especificidade do subdesenvolvimento e o
entendimento de uma questão
central: os países da periferia do
capitalismo estão condenados a
"inventar" suas estratégias de desenvolvimento. Caso contrário,
entregarão seu destino aos processos de reiteração e reprodução
das condições que geram a dependência e o atraso.
Celso acreditava, sobretudo, na
capacidade da ação racional
transformadora. O positivismo
foi sua matriz intelectual. "Não
essa caricatura que circula hoje
em dia", disse ele numa entrevista
que me concedeu, publicada na
revista "Carta Capital", "mas a
idéia de que o homem tem meios
para transformar o mundo, construir um mundo melhor e que esses meios estão ordenados pela
ciência, decorrem do avanço formidável do conhecimento científico. Quando eu descobri a idéia
de planejamento social, fiquei
maravilhado e disse: é aqui que
está o caminho, temos que sair
por aqui. Para aplicar a inteligência para ordenar sua cidade, tem
que ter um plano; então me pus a
estudar planejamento".
Celso Furtado escreveu sua obra
mais importante no auge do "desenvolvimentismo". O desenvolvimentismo -é preciso que se diga com ênfase- não foi uma invenção idiossincrática de países
exóticos. Foi, sim, uma resposta
adequada aos desafios e oportunidades criadas pela Grande Depressão dos anos 30 e seu ambiente internacional catastrófico. Os
projetos nacionais de desenvolvimento e industrialização na periferia nasceram no mesmo berço
que produziu o keynesianismo
nos países centrais. Uma reação
contra as misérias e as desgraças
produzidas pelo capitalismo dos
anos 20.
A onda desenvolvimentista e a
experiência keynesiana tiveram o
seu apogeu nas três décadas que
sucederam o fim da Segunda
Guerra. O clima político e social
estava saturado da idéia de que
era possível adotar estratégias nacionais e intencionais de crescimento, industrialização e avanço
social. Celso, honrando a herança
de Prebisch, sabia que a pretensão
de controlar o próprio destino dependia crucialmente, na periferia,
da constituição das forças produtivas engendradas pelo capitalismo industrial, mas não ignorava
que não era possível reproduzir a
trajetória dos países desenvolvidos. Havia a percepção de que o
objetivo de aproximar o país das
formas de produção e de convivência não poderia ser alcançado
no âmbito da velha e destroçada
divisão internacional do trabalho
e nem mesmo mediante a simples
operação das forças "naturais" do
mercado.
Na posteridade da Segunda
Guerra Mundial, a expansão do
internacionalismo capitalista comandada pelos EUA e a polarização da Guerra Fria colocaram novos desafios ao avanço da agenda
desenvolvimentista. Quem se habituou a repetir, sem qualquer
senso crítico, que o Brasil perseguiu um "modelo" autárquico,
uma economia fechada, falsifica
fatos: a industrialização brasileira
foi acompanhada de uma profunda internacionalização da estrutura produtiva economia. Como
disse outro dia o professor Carlos
Lessa, estão aqui quase todas as
multinacionais importantes.
Os resultados, ainda que desiguais, não foram ruins. Comparada a qualquer outro período do
capitalismo, anterior ou posterior, a era desenvolvimentista e
keynesiana apresentou desempenho muito superior em termos de
taxas de crescimento do PIB, de
criação de empregos, de aumentos dos salários reais e, no caso de
países como o Brasil, ficou devendo a universalização dos direitos
sociais e econômicos.
Não se trata naturalmente de
reinventar nem de chorar o "desenvolvimentismo" perdido, de
resto uma experiência histórica
singular do capitalismo. Mas é
possível concluir, pelo menos,
que os "desenvolvimentistas" entendiam bastante de desenvolvimento.
Nos anos 90, o cosmopolitismo
liberal se lançou à aventura da
des-construção da idéia de nação.
Para tanto se embrenhou nos
misteres de ocultar e negar a existência de hierarquias e dominação nas relações internacionais,
de exaltar as virtudes regeneradoras da concorrência, de estigmatizar a coordenação do Estado. O
resultado todos estão vendo.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
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