São Paulo, segunda-feira, 22 de novembro de 2004

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Furtado e a compreensão do subdesenvolvimento

LUIZ GONZAGA BELLUZZO
COLUNISTA DA FOLHA

Tem razão Chico de Oliveira no prefácio de seu livro sobre Celso Furtado: devemos tudo a ele. O plural majestático se aplica naturalmente às sucessivas gerações de economistas e cientistas sociais que teimam em descobrir e redescobrir o Brasil. Devemos a Furtado a compreensão da especificidade do subdesenvolvimento e o entendimento de uma questão central: os países da periferia do capitalismo estão condenados a "inventar" suas estratégias de desenvolvimento. Caso contrário, entregarão seu destino aos processos de reiteração e reprodução das condições que geram a dependência e o atraso.
Celso acreditava, sobretudo, na capacidade da ação racional transformadora. O positivismo foi sua matriz intelectual. "Não essa caricatura que circula hoje em dia", disse ele numa entrevista que me concedeu, publicada na revista "Carta Capital", "mas a idéia de que o homem tem meios para transformar o mundo, construir um mundo melhor e que esses meios estão ordenados pela ciência, decorrem do avanço formidável do conhecimento científico. Quando eu descobri a idéia de planejamento social, fiquei maravilhado e disse: é aqui que está o caminho, temos que sair por aqui. Para aplicar a inteligência para ordenar sua cidade, tem que ter um plano; então me pus a estudar planejamento".
Celso Furtado escreveu sua obra mais importante no auge do "desenvolvimentismo". O desenvolvimentismo -é preciso que se diga com ênfase- não foi uma invenção idiossincrática de países exóticos. Foi, sim, uma resposta adequada aos desafios e oportunidades criadas pela Grande Depressão dos anos 30 e seu ambiente internacional catastrófico. Os projetos nacionais de desenvolvimento e industrialização na periferia nasceram no mesmo berço que produziu o keynesianismo nos países centrais. Uma reação contra as misérias e as desgraças produzidas pelo capitalismo dos anos 20.
A onda desenvolvimentista e a experiência keynesiana tiveram o seu apogeu nas três décadas que sucederam o fim da Segunda Guerra. O clima político e social estava saturado da idéia de que era possível adotar estratégias nacionais e intencionais de crescimento, industrialização e avanço social. Celso, honrando a herança de Prebisch, sabia que a pretensão de controlar o próprio destino dependia crucialmente, na periferia, da constituição das forças produtivas engendradas pelo capitalismo industrial, mas não ignorava que não era possível reproduzir a trajetória dos países desenvolvidos. Havia a percepção de que o objetivo de aproximar o país das formas de produção e de convivência não poderia ser alcançado no âmbito da velha e destroçada divisão internacional do trabalho e nem mesmo mediante a simples operação das forças "naturais" do mercado.
Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, a expansão do internacionalismo capitalista comandada pelos EUA e a polarização da Guerra Fria colocaram novos desafios ao avanço da agenda desenvolvimentista. Quem se habituou a repetir, sem qualquer senso crítico, que o Brasil perseguiu um "modelo" autárquico, uma economia fechada, falsifica fatos: a industrialização brasileira foi acompanhada de uma profunda internacionalização da estrutura produtiva economia. Como disse outro dia o professor Carlos Lessa, estão aqui quase todas as multinacionais importantes.
Os resultados, ainda que desiguais, não foram ruins. Comparada a qualquer outro período do capitalismo, anterior ou posterior, a era desenvolvimentista e keynesiana apresentou desempenho muito superior em termos de taxas de crescimento do PIB, de criação de empregos, de aumentos dos salários reais e, no caso de países como o Brasil, ficou devendo a universalização dos direitos sociais e econômicos.
Não se trata naturalmente de reinventar nem de chorar o "desenvolvimentismo" perdido, de resto uma experiência histórica singular do capitalismo. Mas é possível concluir, pelo menos, que os "desenvolvimentistas" entendiam bastante de desenvolvimento.
Nos anos 90, o cosmopolitismo liberal se lançou à aventura da des-construção da idéia de nação. Para tanto se embrenhou nos misteres de ocultar e negar a existência de hierarquias e dominação nas relações internacionais, de exaltar as virtudes regeneradoras da concorrência, de estigmatizar a coordenação do Estado. O resultado todos estão vendo.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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