São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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PECADO CAPITAL

Uso sem transparência do cartão de crédito é contestado pelo TCU

Presidência eleva gastos com saques em dinheiro no cartão

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

C.P.F. é funcionário da Presidência da República. Como outros 47 servidores conhecidos como ecônomos do Planalto, ele é titular de um cartão de crédito corporativo, destinado à compra de passagens aéreas, a gastos com deslocamento de autoridades e ao pagamento de materiais e serviços mais urgentes na Presidência, como lanches ou cartuchos de tinta para impressoras.
Em um único mês do ano passado, C. sacou em dinheiro vivo mais de R$ 78 mil, o suficiente para quatro passagens de São Paulo a Paris em primeira classe, ida e volta. A fatura do mês de janeiro do mesmo cartão, descontados os saques, já havia alcançado R$ 287,7 mil. O suficiente para comprar 15 carros populares, do modelo mais barato.
O que deveria ser uma situação excepcional -saques em dinheiro com cartões para despesas imediatas-, virou rotina, indica levantamento feito no Siafi (sistema informatizado de acompanhamento de gastos públicos) pela assessoria técnica do PSDB.
Uma rotina cara. Nos dois primeiros anos da administração de Luiz Inácio Lula da Silva, os gastos com cartões de crédito corporativos da Presidência da República somaram R$ 16,7 milhões. Os saques em dinheiro beiraram os R$ 6 milhões.
Esses saques são autorizados pela legislação para cobrir despesas em estabelecimentos que não aceitam cartão de crédito.
De acordo com os dados do Siafi, o volume de saques em dinheiro cresceu 10% no ano passado, quando o uso supostamente indevido de cartões de crédito já era alvo de inspeção do TCU (Tribunal de Contas da União).
Idealizado para controlar como é gasto o dinheiro do contribuinte, o Siafi só chega até a metade do caminho com as movimentações feitas com cartão de crédito.
Em vez de ordens bancárias que permitem identificar fornecedores de bens e serviços, constam apenas registros de pagamentos ao Banco do Brasil, instituição que administra os cartões de crédito da Presidência.
"As dificuldades surgem quando se deseja o detalhamento dessa despesa, ou seja, saber exatamente qual tipo de material ou equipamento foi adquirido", aponta o relatório do Tribunal de Contas da União. O documento confirmou que o uso de cartões crescia em proporção inversa à transparência do gasto público.
Entre as recomendações feitas em novembro à Secretaria de Administração da Presidência da República, apêndice da Casa Civil, o TCU sugeriu: 1) que observassem os princípios da prudência administrativa; 2) que atentassem para o "caráter excepcional" da realização de saques.
No mês seguinte, os saques em dinheiro do mesmo C. passaram de R$ 50 mil.
"Vamos esperar o comportamento nos primeiros meses deste ano, ver se atendem às recomendações do TCU", disse o deputado federal Alberto Goldman (PSDB-SP), um dos autores do pedido de inspeção. "Não há justificativa para tamanha falta de transparência", observou.

"Mordomo"
O uso dos cartões de crédito corporativos foi autorizado na administração pública ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Em 2002, ano de estréia da nova forma de pagamento de despesas imediatas, faturas e saques com cartões da Presidência da República somaram R$ 1,3 milhão. No ano seguinte, primeiro de governo Lula, os gastos foram multiplicados por sete.
Ainda de acordo com o Siafi, C. já atuava desde 2002 como ecônomo, palavra que o dicionário ""Aurélio" oferece como sinônimo de "indivíduo encarregado da administração de uma casa grande, ou de uma instituição particular ou pública; mordomo". No governo federal, o termo designa os titulares de cartões de crédito corporativos do governo, nos quais nunca aparecem diretamente os nomes das autoridades.

Recordista
Embora o sistema registre no nome de C. saques em valores elevados -em 2003, foram sacados R$ 12 mil num único dia-, o funcionário não é o recordista no uso dos cartões para realizar saques em dinheiro vivo.
O posto é de de outro ecônomo -J.R.A.P. No ano passado, ele sacou quase R$ 330 mil entre os meses de janeiro e dezembro.
É seguido por C. (R$ 321 mil) e A.F.A. (R$ 294 mil). Por razões de segurança, a Folha decidiu identificá-los apenas pelas iniciais.
Dos 48 ecônomos do Planalto, oito sacaram acima de R$ 250 mil durante o ano, registra o Siafi.
Do grupo, faz parte (em quarto lugar) A.P.F., que é o atual chefe dos ecônomos da Presidência.
Na quinta-feira, ele disse que não estava autorizado a falar com a Folha. No mesmo dia, C. encontrava-se em viagem à Bahia, de onde seguiria para o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, disse um colega de ramal telefônico.
A reportagem buscou saber ainda quais áreas do Planalto estavam efetuando os gastos, mas a Presidência não informou a qual dos diversos órgãos (Casa Civil, Secom etc.) cada ecônomo é subordinado.

Sem transparência
A ausência de transparência nos gastos da Presidência da República foi constatada pelo Tribunal de Contas da União.
"A equipe de auditoria registra a existência de dificuldades para a obtenção de detalhes relativos às transações efetuadas com cartão de crédito", diz o texto do relatório do ministro Marcos Vilaça.
A falta de transparência é mais grave nos saques em dinheiro. Sem registros dos fornecedores de bens e serviços nas faturas dos cartões de crédito, os auditores tiveram de se contentar com notas fiscais, cujo preenchimento consideraram incompleto.
"A realização de saques tem viabilizado procedimentos impróprios, como a manutenção de recursos do Tesouro em poder do portador até a data da efetiva realização da despesa", anotou o relatório do Tribunal de Contas.


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