São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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ARTIGO

Nem one dollar, nem one solution

LENA LAVINAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A saia justa em que se meteu o governo no quesito "política social" parece a cada dia mais incômoda e paralisante. Não bastassem as críticas reiteradas aos seus programas de combate à pobreza, veiculadas quase que diariamente pela grande imprensa, deve agora superar o fôlego curto que vem caracterizando suas respostas e posicionar-se acerca do relatório Sachs, recém-lançado pela ONU. Este teria finalmente identificado os verdadeiros bolsões de miséria do país, aqueles, portanto, que deveriam concentrar a ação compensatória do governo, tomando-se a metodologia tradicional do Banco Mundial assentada no one dollar a day. Como já foi apontado nas manchetes da semana, o relatório focaliza áreas e um público-alvo que diferem daqueles eleitos preferencialmente pelo governo.
Antes de prosseguir, cabe recordar aqui que a metodologia do Bird para estimar a pobreza, embora não seja única (a Unctad avançou significativamente na gestão do embaixador Ricupero na criação de metodologias afins mais sofisticadas e precisas) encabeça o "mainstream" que domina o debate internacional sobre desenvolvimento econômico e bem-estar, tendo sido igualmente adotada pelo sistema ONU. Ou seja, observa-se uma convergência preocupante e forçosamente danosa também na produção de dados sociais que acabam por reproduzir um enfoque típico de visões unilaterais tão corretamente contestadas quando o assunto é o progresso, em bases justas, do comércio internacional. Não resta dúvida de que o unilateralismo tem muitas faces, várias delas quase imperceptíveis.
Não é de hoje que tal metodologia, cuja virtude maior é permitir comparações internacionais e nutrir rankings, vem sendo questionada com grande rigor por inúmeros acadêmicos de sólida reputação tais como Robert Wade, para citar apenas um. Resumindo um debate complexo e desafiante, que suscita polêmica mesmo entre colegas do Banco Mundial (o embate Milanovic versus Chen e Ravaillon), esse emérito professor da London School of Economics, como muitos outros intelectuais não-alinhados às teses do Bird, identifica inúmeras inconsistências graves no que hoje tornou-se a medida de referência legítima e quase exclusiva para abordar questões de pobreza e desigualdade, confinando o universo possível das alternativas de superação da miséria.
Ora, se pelo lado dos números a escolha de uma metodologia responde antes de mais nada aos objetivos que se pretende alcançar, dando portanto lugar a variações múltiplas em torno a um mesmo tema, pelo lado das soluções já aprendemos, há tempo, que o modelo "one fits all" caducou. Nos últimos dez, 15 anos, as histórias de sucesso em matéria de desenvolvimento econômico local comprovaram que o leito para o crescimento sustentado passa por arranjos endógenos em que prevalecem relações horizontais e, portanto, mais igualitárias, a reproduzir níveis crescentes de bem-estar e, por isso mesmo de cooperação virtuosa. Onde houve sucesso houve redistribuição em grande escala de ativos, recursos, renda e oportunidades.
Enquanto a União Européia reitera a cada nova gestão seu compromisso com a promoção da universalidade e de patamares de igualdade assentados no princípio da solidariedade, nós do mundo em desenvolvimento nos vemos condenados a saldar nosso gigantesco passivo social residualmente, com aquilo que uma renda per capita mensal de uns R$ 90 deveria assegurar enquanto for estritamente necessário para manter a pobreza em patamares aceitáveis.
O Brasil tem agenda própria de desenvolvimento social. Acaba de aprovar uma Política Nacional de Assistência Social que, se implementada e apoiada em recursos permanentes e conseqüentes, ainda inexistentes pois não dispõe de orçamento próprio, poderá contribuir decisivamente para vencer a miséria em todo território nacional. Formular políticas de combate à pobreza dissociadas de uma visão integrada do que deve ser o sistema de proteção social de todos os brasileiros é apostar no fracasso. Não adianta mexer no estoque, sem alterar radicalmente a forma de se produzir o fluxo. Propostas temos, inclusive metodológicas como o extraordinário trabalho do Mapa da Vulnerabilidade Social, implementado no combate à exclusão pela ex-secretária de Assistência da Prefeitura de São Paulo, professora Sposati. E têm-se mostrado inovadoras, muito embora tributárias de uma conjuntura macroeconômica que alimenta nossa inanição e impede a redução do hiato social.
Como amplamente sublinhado por vários acadêmicos e intelectuais, as Metas do Milênio em muitos pontos estão aquém das nossas aspirações à promoção de uma sociedade mais justa. Os esforços internacionais em busca de um mundo mais igualitário, aos quais o Brasil associou-se com destaque, liderando propostas, não implicam um alinhamento que coloque em xeque escolhas nacionais soberanas. Qualquer sistema de proteção social é a expressão das relações entre membros de uma sociedade nacional, mais ou menos redistributiva.
Quando Jeffrey Sachs aponta em artigo de sua autoria publicado no "Economist" (20/5/04) que a assistência aos países africanos é indispensável para reduzir os riscos do terrorismo internacional, podendo ainda favorecer a América ao suprir 25% do seu consumo interno de petróleo e gás dentro uma década, somos-lhes gratos pela franqueza. Fica mais evidente que nem todos falam da mesma coisa ao levantar a bandeira da nova solidariedade internacional. Aliás, falando no "Economist", vale à pena conferir seu editorial desta semana, enfaticamente crítico ao novo relatório da ONU.
A saia justa do governo segue apertada. Mas que não seja em razão de um manequim importado.


Lena Lavinas, 51, economista, é professora do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).


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