|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Nem one dollar, nem one solution
LENA LAVINAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A saia justa em que se meteu o
governo no quesito "política social" parece a cada dia mais incômoda e paralisante. Não bastassem as críticas reiteradas aos seus
programas de combate à pobreza,
veiculadas quase que diariamente
pela grande imprensa, deve agora
superar o fôlego curto que vem caracterizando suas respostas e posicionar-se acerca do relatório
Sachs, recém-lançado pela ONU.
Este teria finalmente identificado
os verdadeiros bolsões de miséria
do país, aqueles, portanto, que deveriam concentrar a ação compensatória do governo, tomando-se a metodologia tradicional do
Banco Mundial assentada no one
dollar a day. Como já foi apontado nas manchetes da semana, o relatório focaliza áreas e um público-alvo que diferem daqueles eleitos preferencialmente pelo governo.
Antes de prosseguir, cabe recordar aqui que a metodologia do
Bird para estimar a pobreza, embora não seja única (a Unctad
avançou significativamente na
gestão do embaixador Ricupero
na criação de metodologias afins
mais sofisticadas e precisas) encabeça o "mainstream" que domina
o debate internacional sobre desenvolvimento econômico e bem-estar, tendo sido igualmente adotada pelo sistema ONU. Ou seja,
observa-se uma convergência
preocupante e forçosamente danosa também na produção de dados sociais que acabam por reproduzir um enfoque típico de visões
unilaterais tão corretamente contestadas quando o assunto é o progresso, em bases justas, do comércio internacional. Não resta dúvida de que o unilateralismo tem
muitas faces, várias delas quase
imperceptíveis.
Não é de hoje que tal metodologia, cuja virtude maior é permitir
comparações internacionais e nutrir rankings, vem sendo questionada com grande rigor por inúmeros acadêmicos de sólida reputação tais como Robert Wade, para citar apenas um. Resumindo
um debate complexo e desafiante,
que suscita polêmica mesmo entre
colegas do Banco Mundial (o embate Milanovic versus Chen e Ravaillon), esse emérito professor da
London School of Economics, como muitos outros intelectuais
não-alinhados às teses do Bird,
identifica inúmeras inconsistências graves no que hoje tornou-se a
medida de referência legítima e
quase exclusiva para abordar
questões de pobreza e desigualdade, confinando o universo possível das alternativas de superação
da miséria.
Ora, se pelo lado dos números a
escolha de uma metodologia responde antes de mais nada aos objetivos que se pretende alcançar,
dando portanto lugar a variações
múltiplas em torno a um mesmo
tema, pelo lado das soluções já
aprendemos, há tempo, que o modelo "one fits all" caducou. Nos últimos dez, 15 anos, as histórias de
sucesso em matéria de desenvolvimento econômico local comprovaram que o leito para o crescimento sustentado passa por arranjos endógenos em que prevalecem relações horizontais e, portanto, mais igualitárias, a reproduzir níveis crescentes de bem-estar
e, por isso mesmo de cooperação
virtuosa. Onde houve sucesso
houve redistribuição em grande
escala de ativos, recursos, renda e
oportunidades.
Enquanto a União Européia reitera a cada nova gestão seu compromisso com a promoção da universalidade e de patamares de
igualdade assentados no princípio
da solidariedade, nós do mundo
em desenvolvimento nos vemos
condenados a saldar nosso gigantesco passivo social residualmente, com aquilo que uma renda per
capita mensal de uns R$ 90 deveria
assegurar enquanto for estritamente necessário para manter a
pobreza em patamares aceitáveis.
O Brasil tem agenda própria de
desenvolvimento social. Acaba de
aprovar uma Política Nacional de
Assistência Social que, se implementada e apoiada em recursos
permanentes e conseqüentes, ainda inexistentes pois não dispõe de
orçamento próprio, poderá contribuir decisivamente para vencer
a miséria em todo território nacional. Formular políticas de combate à pobreza dissociadas de uma
visão integrada do que deve ser o
sistema de proteção social de todos os brasileiros é apostar no fracasso. Não adianta mexer no estoque, sem alterar radicalmente a
forma de se produzir o fluxo. Propostas temos, inclusive metodológicas como o extraordinário trabalho do Mapa da Vulnerabilidade Social, implementado no combate à exclusão pela ex-secretária
de Assistência da Prefeitura de São
Paulo, professora Sposati. E têm-se mostrado inovadoras, muito
embora tributárias de uma conjuntura macroeconômica que alimenta nossa inanição e impede a
redução do hiato social.
Como amplamente sublinhado
por vários acadêmicos e intelectuais, as Metas do Milênio em
muitos pontos estão aquém das
nossas aspirações à promoção de
uma sociedade mais justa. Os esforços internacionais em busca de
um mundo mais igualitário, aos
quais o Brasil associou-se com
destaque, liderando propostas,
não implicam um alinhamento
que coloque em xeque escolhas
nacionais soberanas. Qualquer
sistema de proteção social é a expressão das relações entre membros de uma sociedade nacional,
mais ou menos redistributiva.
Quando Jeffrey Sachs aponta em
artigo de sua autoria publicado no
"Economist" (20/5/04) que a assistência aos países africanos é indispensável para reduzir os riscos do
terrorismo internacional, podendo ainda favorecer a América ao
suprir 25% do seu consumo interno de petróleo e gás dentro uma
década, somos-lhes gratos pela
franqueza. Fica mais evidente que
nem todos falam da mesma coisa
ao levantar a bandeira da nova solidariedade internacional. Aliás,
falando no "Economist", vale à pena conferir seu editorial desta semana, enfaticamente crítico ao
novo relatório da ONU.
A saia justa do governo segue
apertada. Mas que não seja em razão de um manequim importado.
Lena Lavinas, 51, economista, é professora do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Texto Anterior: Elio Gaspari: Se o PT morrer, viva o pt Próximo Texto: Semi-árido: Falta de reparo em barragens agrava seca Índice
|