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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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PROGRAMA EM XEQUE

Verba de programas sociais não basta para um mês de sustento

Já falta comida às famílias do Fome Zero em Guaribas

Lalo de Almeida/Folha Imagem
Mulheres carregam baldes e roupas no caminho que fazem diariamente para levar água a Guaribas, onde não há abastecimento


RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL A GUARIBAS

Guaribas contava cerca de 900 famílias quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o programa Fome Zero como prioridade de governo. Dessas, 460 recebiam um ou outro dos benefícios criados pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Somando-se as 500 famílias atendidas pelo novo programa do PT, sobra cartão para quase todas, sobrepõem-se benefícios para muitas delas, mas continua faltando comida.
Muitos dos beneficiados do Fome Zero, que completa um mês na próxima semana, já não se alimentam adequadamente. A primeira distribuição dos R$ 50 para as famílias foi feita pelo governo no final do mês passado. Já gastaram o dinheiro recebido, consumiram o óleo, o arroz e o leite comprados, e voltaram à dieta de feijão com farinha, feijão com milho ralado ou simplesmente feijão, só, cozido sem óleo.
A situação é similar entre aqueles que recebem benefícios do Bolsa-Escola. Embora o objetivo do programa não esteja vinculado à segurança alimentar, atendidos em Guaribas pelo programa afirmaram usar o dinheiro na compra de alimentos, que também acabam antes do fim do mês.
Prato vazio não há, mas como diz dona Léssia Matias da Silva, 33, apenas feijão é comida que "não dá alento".
Para seu marido, o agricultor Aresimar Correia da Silva, 36, "fome não passamos, [mas] a gente passa mal". Ambos têm quatro filhos, dois deles dão direito a R$ 30 do Bolsa-Escola (R$ 15 por cada filho que vai à aula). Recebem ainda R$ 25 pelo Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e R$ 15 a cada dois meses por outro programa, o Auxílio-Gás.
Os R$ 70 totais são gastos em macarrão, arroz e óleo. "É uma ajuda muito boa", dizem, que no caso deles dura cerca de 15 dias.
Adegilson Dias Rocha, 31, tem mulher e duas filhas, Claudete e Vanessa. Recebeu os primeiros R$ 50 do Fome Zero no último dia 24. "A comida [comprada com o benefício recebido] já acabou", afirma, "durou quinze dias".
Rocha diz que desde então sua família tem comido feijão. "Dia que pode como com farinha", diz. "Eu ainda passei mais dias, [mas" tem gente que tem oito filhos em casa, não passa nem dez dias."
Dez dias foi o tempo que durou a comida que comprou com o dinheiro do Fome Zero, disse Evandia Alves, 33, que tem marido e três filhos. "A cestinha [de alimentos, distribuída havia uma semana pela coordenação do Fome Zero no Piauí] tem um pouco ainda", disse.
Para Evaneide de Souza Brito, funcionária da Emater [Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural] em Guaribas, "comer só feijão", a principal cultura da cidade, ao lado do cultivo de milho, "é passar fome".
"O governador Wellington Dias [PT] disse que muita gente rica pensa que pobre só precisa encher o bucho, mas precisa mesmo é ter uma alimentação saudável", disse Deosiana Alves Dias, 18, que estuda na 8ª série da escola municipal.

Mais que cartões
Tanto para a funcionária da Emater quanto para o enfermeiro Lauro César de Morais, integrante do comitê gestor local do Fome Zero, além da miríade de cartões recebidos pelas famílias, Guaribas precisa de emprego, água e estrada que a tire do isolamento, barateie o preço dos alimentos e facilite a venda do feijão -e do milho, prejudicado esse ano pelas poucas chuvas de janeiro e fevereiro.
A cidade mais próxima da localidade piloto do Fome Zero é Caracol, distante 50 km. Quando transitáveis, são percorridos em duas horas por veículos com tração nas quatro rodas. Caracol é ligada por uma estrada de terra em condições um pouco melhores até São Raimundo Nonato, onde começa o asfalto. São 90 km passíveis de serem percorridos em três horas por carros de passeio.
"Nem eu nem você passamos o mês todo comendo com R$ 50. As famílias aqui às vezes são muito grandes. Nesse mês de safra, está bom. Imagina no segundo semestre, quando a seca é pior", diz Morais, explicando que, por causa do isolamento da cidade, o pacote de leite em pó, por exemplo, custa 50% a mais lá que em São Raimundo Nonato.
A promessa do governo do Estado, segundo ele, é que a água encanada chegue até o fim do ano.
Ele acrescenta entretanto que apenas os benefícios, se não resolvem, ajudam. "Se com eles é difícil, imagina sem." Mas a dependência da cidade em relação aos programas federais, segundo o enfermeiro, "incomoda".
São tantas as famílias atendidas por um ou outro benefício, que 190 delas, segundo Morais, recebem tanto o Fome Zero quanto o Bolsa-Escola, contrariando um dos critérios para cadastramento do programa de Lula, que previa que os atendidos não participassem de mais nenhum outro programa federal.
O motivo, afirma o membro do comitê gestor, é que, descontadas as famílias com melhor situação econômica da cidade, era impossível não fazer a sobreposição. Das cerca de 900 existentes no momento da concepção do cadastro, 770 terminaram recebendo ou o programa de Lula, ou um dos herdados de FHC (311 só no Bolsa-Escola) ou mais de um ao mesmo tempo.
Seja o procedimento de sobreposição correto ou não, o fato é que para esses últimos o objetivo de ao menos saciar a fome fica mais próximo de ser atingido.
Marlene Matias Maia recebe R$ 80 do governo, somadas as quantias dos principais programas de Lula e FHC (ela recebe por dois filhos do Bolsa-Escola). Diz que é raro, mas "às vezes acontece de acabar a comida antes do fim do mês". Mariza Ferreira Alves tem quatro filhos e marido. Recebe ao todo R$ 95 do governo federal. Diz que os alimentos comprados com os benefícios duram cerca de três semanas.


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