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ARTIGO
Leonel Brizola e o futuro do Brasil
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Perdoem-me os leitores dar a
este artigo cunho pessoal.
Quando eu era criança, ouvi muitas vezes de meu avô Otávio Mangabeira uma história a respeito de
Rui Barbosa. Otávio e seu irmão
mais velho, João, que viria a fundar o Partido Socialista Brasileiro,
eram discípulos diletos de Rui, a
quem tratavam como encarnação
da República. Contou-me meu
avô que certo dia, pouco antes da
morte de Rui, entrando na biblioteca dele no Rio de Janeiro, encontrou-o desolado com o Brasil e
com os frutos, aparentemente escassos, de sua vida de luta. "Minha tristeza é mortal", disse ele a
meu avô. Quando, ainda em minha infância e adolescência, comecei, por mãos de meu avô, a
conviver com os velhos chefes liberais -sou talvez o único brasileiro de minha geração a haver
privado com eles- encontrei um
grupo de homens que parecia haver resolvido um dos maiores
enigmas da existência humana.
Como participar intensamente
dos combates de seu tempo sem
perder a nobreza? Arrebatamento
despojado, magnanimidade incapaz de ser corrompida pela vitória
ou abatida pela derrota e força interior inquebrantável diante das
pressões e das desilusões do mundo.
Já adulto, conheci aquele que viria a considerar o maior dos brasileiros vivos. Era em quase tudo diferente de Rui e dos apóstolos republicanos que em Rui se inspiraram. Diferente, na origem social,
nascido de pobres lavradores, não
da alta burguesia profissional. Diferente na cultura, feita de intuições e manifesta em histórias
exemplares, não em doutrinas
eruditas. Diferente na orientação
programática e social, voltada para a afirmação da independência e
da originalidade do Brasil e para o
destino dos trabalhadores brasileiros, não para o esforço de compatibilizar o Brasil com o formulário liberal. Igual a Rui, porém,
no culto ao regime republicano e
no ardor da identificação com o
Brasil. E, no final da vida, como
Rui, enojado e indignado com o
que via à sua volta e querendo
mais - mais força, mais vida,
mais tempo- para lutar. Para
um homem público, talvez para
qualquer pessoa, ter isso é ter tudo.
Formada nas teorias sociais dos
últimos dois séculos, nossa intelectualidade sempre teve dificuldade em compreender haver algo
ainda mais importante do que
classes e ideologias: a natureza
moral do indivíduo. O indivíduo
que, ao tornar-se adulto, recebe
da sociedade um roteiro ditando-lhe como pensar, atuar e sentir,
mas que, surpreendentemente,
para viver e fazer viver, joga esse
roteiro fora e escreve outro. Esse é
o momento da grandeza. Essa é a
hora da imaginação.
A diretriz da atuação política da
Brizola foi a idéia de refundar o
Brasil, formado no cadinho da escravatura, da exclusão, do desrespeito e da ilegalidade, na valorização dos interesses do trabalhador
e no fortalecimento das capacitações do trabalhador. Para isso, era
necessário afirmar a independência nacional, rejeitando tutelas,
sobretudo mentais. Aumentar radicalmente a participação do salário na renda nacional. Associar o
Estado com a iniciativa privada
para democratizar oportunidades
e para instrumentalizar energias.
Desenvolver um ensino público
que, livre de mistificações, redimisse a criança, sobretudo pobre,
das indignidades e das inibições
de seu meio. Impedir o esvaziamento do regime republicano e
preservar o espaço constitucional
para a reviravolta econômica e social. Convencer o brasileiro, principalmente o pobre e o negro, de
que ele é grande e que o Brasil pertence a ele. Se faltou algo ao desdobramento desses compromissos, foi a imaginação institucional
e a prática organizadora, que faltam a quase tudo e a quase todos
em nosso país.
Para qualquer homem, por
maior que seja, os compromissos
que o guiam passam pelo prisma
de uma trajetória moldada pelas
forças de sua época e pelos acidentes de sua vida. Para Brizola,
foi a época Vargas e o sistema
Vargas e, sobretudo, o antigo PTB
como sua vertente partidária mais
progressista e fecunda. Brizola
identificou-se com essa tradição e
com suas raízes jacobinas e republicanas no Rio Grande do Sul.
Criticou-a, porém, e ajudou a reconstruir como só podem fazer os
que se identificam com uma obra
histórica. Pouco a pouco, o PTB
que surgiu da era Vargas purgava-se de suas mazelas quando
caiu no abismo da ditadura militar. Resgatar e reinventar esse trabalhismo nacional é a obra que
ocupou Brizola na última fase de
sua vida e que ele deixou inacabada.
Tragicamente para o Brasil, os
intelectuais mais influentes entre
nós interpretaram essa ação pública sob o rótulo de categorias
obtusas, vagas e enganosas como
"populismo". Como se num país
com maiorias desorganizadas e
organizações frágeis pudéssemos
contentar-nos em representar
apenas os interesses já organizados e por isso mesmo relativamente privilegiados. O resíduo
prático desse embuste ideológico
foi a promoção, a partir das últimas fases da ditadura militar, de
uma esquerda que parecia "moderna" porque era também "corporativista", fundada sobre as organizações sindicais e religiosas e,
portanto, parecida com a esquerda supostamente respeitável e
responsável que marcara a história européia.
O resultado desse equívoco
-monstruoso e previsível- está
hoje diante de nossos olhos no governo Lula. A representação da
minoria organizada dentro da
massa popular e de classe média
foi apenas a escada para chegar ao
poder, jogada para o lado depois
de usada. Os que subiram perderam-se, sem a luz que pudesse vir
do passado, da tradição dos conflitos sociais e políticos do último
século de nossa vida nacional, ou
do futuro, da visão de outro rumo, definido pela aliança do regime republicano com os interesses
do trabalho e os valores da independência nacional. Agora é preciso começar de novo, retomando
o fio partido da história brasileira.
Nos últimos meses, minhas
conversas incessantes com Brizola eram dominadas por um único
tema: como livrar o país de ter de
escolher em 2006 entre duas coalizões políticas -uma organizada
em torno do PT e do presidente
atual e a outra, em volta do PSDB
e do presidente anterior- que representam o mesmo projeto ruinoso. Projeto que o povo brasileiro tentou e não conseguiu substituir na eleição presidencial de
2002. As discussões com Brizola
tiveram desfecho num plano audacioso -inteiramente fora dos
cálculos- de intervenção na sucessão presidencial, a ser debatido
e revisto e sujeito aos contratempos de qualquer ação empreendida contra a corrente. Brizola pediu-me que memorializasse por
escrito essa proposta. Assim fiz
em longa carta, entregue quando
ele já não a podia ler, em 21 de junho, dia de sua morte.
Agora estamos todos nós, os inconformados, muito mais sós. Falo por muitos quando digo -dizendo o que sinto, não o que devo
dizer- que nunca me senti tão
obrigado a atuar e tão faltoso de
meios de ação. E juro perante
meus concidadãos: "Inveniemos
viam aut faciemos". Encontraremos um caminho ou faremos um
caminho.
Roberto Mangabeira Unger é professor de direito na Universidade Harvard e
colunista da Folha. É autor de "A Alternativa Transformadora", "Conhecimento
e Política" e "Direito na Sociedade Moderna", entre outros. Sua obra já foi publicada nos EUA, na Europa e na China.
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