São Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2004

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ARTIGO

Leonel Brizola e o futuro do Brasil

ROBERTO MANGABEIRA UNGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Perdoem-me os leitores dar a este artigo cunho pessoal. Quando eu era criança, ouvi muitas vezes de meu avô Otávio Mangabeira uma história a respeito de Rui Barbosa. Otávio e seu irmão mais velho, João, que viria a fundar o Partido Socialista Brasileiro, eram discípulos diletos de Rui, a quem tratavam como encarnação da República. Contou-me meu avô que certo dia, pouco antes da morte de Rui, entrando na biblioteca dele no Rio de Janeiro, encontrou-o desolado com o Brasil e com os frutos, aparentemente escassos, de sua vida de luta. "Minha tristeza é mortal", disse ele a meu avô. Quando, ainda em minha infância e adolescência, comecei, por mãos de meu avô, a conviver com os velhos chefes liberais -sou talvez o único brasileiro de minha geração a haver privado com eles- encontrei um grupo de homens que parecia haver resolvido um dos maiores enigmas da existência humana. Como participar intensamente dos combates de seu tempo sem perder a nobreza? Arrebatamento despojado, magnanimidade incapaz de ser corrompida pela vitória ou abatida pela derrota e força interior inquebrantável diante das pressões e das desilusões do mundo.
Já adulto, conheci aquele que viria a considerar o maior dos brasileiros vivos. Era em quase tudo diferente de Rui e dos apóstolos republicanos que em Rui se inspiraram. Diferente, na origem social, nascido de pobres lavradores, não da alta burguesia profissional. Diferente na cultura, feita de intuições e manifesta em histórias exemplares, não em doutrinas eruditas. Diferente na orientação programática e social, voltada para a afirmação da independência e da originalidade do Brasil e para o destino dos trabalhadores brasileiros, não para o esforço de compatibilizar o Brasil com o formulário liberal. Igual a Rui, porém, no culto ao regime republicano e no ardor da identificação com o Brasil. E, no final da vida, como Rui, enojado e indignado com o que via à sua volta e querendo mais - mais força, mais vida, mais tempo- para lutar. Para um homem público, talvez para qualquer pessoa, ter isso é ter tudo.
Formada nas teorias sociais dos últimos dois séculos, nossa intelectualidade sempre teve dificuldade em compreender haver algo ainda mais importante do que classes e ideologias: a natureza moral do indivíduo. O indivíduo que, ao tornar-se adulto, recebe da sociedade um roteiro ditando-lhe como pensar, atuar e sentir, mas que, surpreendentemente, para viver e fazer viver, joga esse roteiro fora e escreve outro. Esse é o momento da grandeza. Essa é a hora da imaginação.
A diretriz da atuação política da Brizola foi a idéia de refundar o Brasil, formado no cadinho da escravatura, da exclusão, do desrespeito e da ilegalidade, na valorização dos interesses do trabalhador e no fortalecimento das capacitações do trabalhador. Para isso, era necessário afirmar a independência nacional, rejeitando tutelas, sobretudo mentais. Aumentar radicalmente a participação do salário na renda nacional. Associar o Estado com a iniciativa privada para democratizar oportunidades e para instrumentalizar energias. Desenvolver um ensino público que, livre de mistificações, redimisse a criança, sobretudo pobre, das indignidades e das inibições de seu meio. Impedir o esvaziamento do regime republicano e preservar o espaço constitucional para a reviravolta econômica e social. Convencer o brasileiro, principalmente o pobre e o negro, de que ele é grande e que o Brasil pertence a ele. Se faltou algo ao desdobramento desses compromissos, foi a imaginação institucional e a prática organizadora, que faltam a quase tudo e a quase todos em nosso país.
Para qualquer homem, por maior que seja, os compromissos que o guiam passam pelo prisma de uma trajetória moldada pelas forças de sua época e pelos acidentes de sua vida. Para Brizola, foi a época Vargas e o sistema Vargas e, sobretudo, o antigo PTB como sua vertente partidária mais progressista e fecunda. Brizola identificou-se com essa tradição e com suas raízes jacobinas e republicanas no Rio Grande do Sul. Criticou-a, porém, e ajudou a reconstruir como só podem fazer os que se identificam com uma obra histórica. Pouco a pouco, o PTB que surgiu da era Vargas purgava-se de suas mazelas quando caiu no abismo da ditadura militar. Resgatar e reinventar esse trabalhismo nacional é a obra que ocupou Brizola na última fase de sua vida e que ele deixou inacabada.
Tragicamente para o Brasil, os intelectuais mais influentes entre nós interpretaram essa ação pública sob o rótulo de categorias obtusas, vagas e enganosas como "populismo". Como se num país com maiorias desorganizadas e organizações frágeis pudéssemos contentar-nos em representar apenas os interesses já organizados e por isso mesmo relativamente privilegiados. O resíduo prático desse embuste ideológico foi a promoção, a partir das últimas fases da ditadura militar, de uma esquerda que parecia "moderna" porque era também "corporativista", fundada sobre as organizações sindicais e religiosas e, portanto, parecida com a esquerda supostamente respeitável e responsável que marcara a história européia.
O resultado desse equívoco -monstruoso e previsível- está hoje diante de nossos olhos no governo Lula. A representação da minoria organizada dentro da massa popular e de classe média foi apenas a escada para chegar ao poder, jogada para o lado depois de usada. Os que subiram perderam-se, sem a luz que pudesse vir do passado, da tradição dos conflitos sociais e políticos do último século de nossa vida nacional, ou do futuro, da visão de outro rumo, definido pela aliança do regime republicano com os interesses do trabalho e os valores da independência nacional. Agora é preciso começar de novo, retomando o fio partido da história brasileira.
Nos últimos meses, minhas conversas incessantes com Brizola eram dominadas por um único tema: como livrar o país de ter de escolher em 2006 entre duas coalizões políticas -uma organizada em torno do PT e do presidente atual e a outra, em volta do PSDB e do presidente anterior- que representam o mesmo projeto ruinoso. Projeto que o povo brasileiro tentou e não conseguiu substituir na eleição presidencial de 2002. As discussões com Brizola tiveram desfecho num plano audacioso -inteiramente fora dos cálculos- de intervenção na sucessão presidencial, a ser debatido e revisto e sujeito aos contratempos de qualquer ação empreendida contra a corrente. Brizola pediu-me que memorializasse por escrito essa proposta. Assim fiz em longa carta, entregue quando ele já não a podia ler, em 21 de junho, dia de sua morte.
Agora estamos todos nós, os inconformados, muito mais sós. Falo por muitos quando digo -dizendo o que sinto, não o que devo dizer- que nunca me senti tão obrigado a atuar e tão faltoso de meios de ação. E juro perante meus concidadãos: "Inveniemos viam aut faciemos". Encontraremos um caminho ou faremos um caminho.


Roberto Mangabeira Unger é professor de direito na Universidade Harvard e colunista da Folha. É autor de "A Alternativa Transformadora", "Conhecimento e Política" e "Direito na Sociedade Moderna", entre outros. Sua obra já foi publicada nos EUA, na Europa e na China.

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