São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 2002

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LOBBY INTERNACIONAL

Casa Branca teve acesso a informações sigilosas; militar brasileiro colaborou para que Raytheon vencesse

Espionagem deu Sivam a empresa dos EUA

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

Espionagem do governo dos EUA e a ajuda de um militar brasileiro garantiram à companhia norte-americana Raytheon a conquista do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), projeto de US$ 1,4 bilhão de proteção da bacia amazônica que será inaugurado na quinta-feira em Manaus.
Documentos oficiais dos Estados Unidos revelam que, em junho e em julho de 1994, nas semanas que antecederam a apresentação final das duas propostas finalistas do processo de seleção do Sivam, a Casa Branca soube, por meio de "fontes dos serviços de inteligência", que as condições de financiamento oferecidas de forma sigilosa pela francesa Thomson-CSF (que mudou seu nome para Thales em 2000) eram melhores que as da Raytheon.
Com base nessa descoberta, diplomatas americanos reuniram-se sigilosamente com o tenente-brigadeiro Marcos Antônio de Oliveira, então coordenador do processo de seleção da empresa que forneceria equipamentos ao Sivam, e, todos juntos, puseram em prática uma estratégia que melhorou a proposta da Raytheon e garantiu sua vitória. Hoje, Oliveira é o chefe do Estado-Maior da Aeronáutica.
Os documentos, cerca de 400, são do Departamento de Estado, do Departamento de Comércio, da CIA (agência de inteligência) e da embaixada dos EUA no Brasil. Foram obtidos pela Folha ao longo dos últimos três anos com base na lei norte-americana da liberdade da informação -"Freedom of Information Act". Outros cem papéis sobre o Sivam foram total ou parcialmente censurados.

Financiamento
Um dos papéis em poder da Folha é um ofício enviado em 5 de julho de 94 por Daniel Tarullo, vice-assistente-especial para Política Econômica do ex-presidente Bill Clinton, a Joan E. Spero, então subsecretária de Estado para Assuntos Econômicos, oito dias antes da segunda e última apresentação da fase final das propostas das companhias finalistas.
"Fontes dos serviços de inteligência confirmaram que, enquanto o governo brasileiro vê o pacote da Raytheon como sendo tecnologicamente superior ao da Thomson, os franceses ofereceram um financiamento mais abrangente e atraente", diz ele.
Outro documento -telegrama enviado a Washington pelo então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Melvin Levitsky- mostra que os EUA já monitoravam a proposta francesa quase um mês antes, em 13 de junho.
"A empresa americana que concorre na licitação, a Raytheon, ocupa posição forte em termos de tecnologia, posição moderadamente fraca em termos de preço e muito fraca com relação a financiamento... Segundo a Raytheon, o diferencial de preço relativamente pequeno, entre 10% e 15%, poderia ser superado com base na proposta tecnológica superior da Raytheon, desde que fosse possível reduzir significativamente ou eliminar a diferença no financiamento. Resta pouco tempo para melhorar a posição competitiva da equipe norte-americana."
A oferta do Eximbank -banco oficial dos EUA que financia exportações de empresas do país-, diferentemente da francesa, não cobria a aquisição de cinco aviões de aviso precoce, porque seus estatutos proíbem o financiamento de equipamentos com uso militar. Esses aviões usam radares aerotransportados e eram avaliados na época em US$ 78 milhões.
O Eximbank, que tem administração independente, dizia que só poderia financiar a aquisição se o Brasil fornecesse uma carta atestando que tais aeronaves teriam como propósito essencial o controle de drogas, e não uso militar.
A direção da Raytheon, o Departamento de Comércio, o Departamento de Estado e diplomatas dos EUA no Brasil concluíram, então, que o governo brasileiro precisaria declarar, por escrito, que os aviões seriam usados para fins de combate ao narcotráfico.
Para obter tal documento, diplomatas americanos conversaram várias vezes, sigilosamente, com Oliveira, que, embora tenha relutado no início apontando restrições constitucionais e inibições pessoais, acabou cedendo.

"Sigilo"
Em 93, Oliveira fora um dos militares que convencera o presidente Itamar Franco a dispensar licitação pública para o Sivam sob o argumento de que outros governos poderiam ter acesso a dados sensíveis brasileiros e comprometer a segurança nacional. Itamar acabou conduzindo um processo de seleção sigiloso para o qual, segundo depoimento feito por Oliveira no Congresso Nacional em 1995, foram respeitados o "sigilo" e todos os concorrentes foram tratados de forma igual.
No entanto, os documentos dos EUA mostram uma realidade diferente quanto ao sigilo das informações e o equilíbrio de garantias entre os concorrentes.
Em junho de 94, num encontro entre Oliveira e a conselheira comercial dos EUA no Rio, Dar-Jalane Pribyl, o militar brasileiro recebeu da diplomata americana um "rascunho" de uma carta que deveria ser assinada pelo então ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Almirante Flores, para convencer o Eximbank a melhorar sua proposta de financiamento.
Oliveira aceitou o rascunho e entregou a Pribyl um memorando interno do governo brasileiro, com teor semelhante ao texto do rascunho, que enviara a Flores.
O fato foi relatado em telegrama, de 28 junho de 94, ao Departamento de Estado pelo cônsul dos EUA no Rio, David Zweifel. "A conselheira comercial Pribyl apresentou ao brigadeiro Oliveira a sugestão de um rascunho (...). [Oliveira" forneceu a Pribyl o teor de um memorando "confidencial" que enviara ao ministro dos assuntos estratégicos, Flores."
A Raytheon foi anunciada vencedora em 21 de julho de 94. O governo e os militares brasileiros atestaram ao Congresso que os fatores determinantes para o resultado foram a forma e o valor do financiamento do Eximbank.


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