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HERZOG - 30 ANOS
Márcio José de Moraes não aceitou o conselho de amigos para só anunciar a decisão após o fim do AI-5
Juiz que condenou a União temia ser morto
FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Às vésperas dos 30 anos da morte de Vladimir Herzog, o juiz federal Márcio José de Moraes, 60, revela que, nas semanas em que se
isolou para julgar a ação condenando a União pela morte do jornalista, ele temeu ser seqüestrado
e torturado pelo mesmo esquema
paramilitar que matou Herzog.
Desembargador e ex-presidente
do Tribunal Regional Federal da
3ª Região, Moraes admite que a
sentença o redimiu da alienação
da juventude. Antes da morte de
Herzog, relutava em crer que havia tortura no Brasil. Ele não aceitou o conselho de amigos para
"segurar" a decisão até 1979,
quando o AI-5 deixaria de vigorar, o que reduziria os riscos pessoais: "O gesto só teria valor, como uma espécie de grito político,
de revolta contra a ditadura, se
fosse dado sob o clima da ditadura, sob o AI-5".
Folha - O sr. tinha alguma atuação política na universidade? Como
o sr. via o clima de repressão?
Márcio Moraes - Eu venho da
classe média do interior paulista.
Meu pai tinha uma loja de ferragens em Jacareí. Minha família é
católica. Eu vim para USP, em São
Paulo, com o firme propósito de
estudar. Não me envolvi na política na faculdade. Não fiz parte de
nenhum partido. Meu irmão estudava história na USP e tinha
mais participação política que eu.
Folha - Algum parente ou amigo
do sr. foi preso, torturado?
Moraes - Não. Alguns conhecidos da faculdade tiveram problemas. Eu me formei em 1968. A ditadura militar estava extremada,
começaram as perseguições.
Folha - O sr. acreditava, na época,
que havia prisões e tortura?
Moraes - Mesmo depois da formatura, desinformado, eu ainda
resistia a acreditar que havia tortura e morte. Eu ainda admitia
que pudesse haver perseguição
política. Mas, na verdade, a tortura e a morte eram coisas que eu tinha dificuldade em acreditar.
Folha - Como o sr. tomou conhecimento da morte de Herzog?
Moraes - Em 1975, eu estava no
escritório de advocacia, compro o
jornal e vejo que Vladimir Herzog
morreu. Eu realmente fiquei chocadíssimo. Não só pela notícia em
si. Mas porque ficou absolutamente claro, para mim, que, na
verdade, ele morreu torturado.
Folha - O sr. teve a convicção, então, de que não foi um suicídio?
Moraes - Já naquele momento.
Não era possível que a pessoa tivesse entrado no DOI-Codi, de
manhã, e estivesse morto à tarde.
Folha - Qual foi o impacto?
Moraes - Foi um choque pessoal.
Caiu por terra a resistência que eu
tinha em acreditar que a ditadura
estava perseguindo, prendendo,
matando prisioneiros políticos.
Percebi claramente que tudo era
verdade. Tive uma certa crise de
consciência, por não ter participado politicamente para tentar evitar que aquilo acontecesse.
Folha - Qual foi o efeito?
Moraes - Uma semana depois da
morte do Herzog, eu participei do
culto ecumênico na praça da Sé.
Mas ainda um tanto quanto receoso, porque depois que se deu
aquela conscientização pessoal,
política, em decorrência da morte
do Herzog, eu ainda tinha uma
certa dificuldade de me engajar.
Folha - Mas o sr. foi ao ato?
Moraes - Mas eu não fiquei dentro da igreja. Fiquei no lado, perto
de uma pastelaria... Até mesmo,
pensando comigo, veja só até onde ia a minha covardia política
naquele momento: "Se a cavalaria
da Polícia Militar invadir a praça
da Sé, como se noticiava, eu me
ponho aqui dentro da pastelaria e
como um pastel". Alegaria que estava comendo um pastel...
Folha - Então, não foi por dificuldade de chegar à igreja...
Moraes - Eu poderia ter me posto no meio da praça da Sé. Eu fiquei de lado, como participante
direto do ato. Participando, mas
ao mesmo tempo tendo o álibi do
pastel... Imagine a minha surpresa, quando, três anos depois, em
1978, eu recebo o processo do caso Herzog para sentenciar...
Folha - Por que o juiz titular, João
Gomes Martins, foi impedido de
dar a sentença no processo?
Moraes - Foi um fato sui generis
na literatura mundial: um mandado de segurança para impedir
um juiz de ler a sentença...
Folha - Por que o governo suspeitava que ele condenaria a União?
Moraes - Porque o dr. João estava às vésperas da aposentadoria
compulsória. Iria completar 70
anos. Depois que o processo terminou, ele marcou uma audiência de leitura da sentença, dias antes da aposentadoria dele...
Folha - Essa audiência de leitura é
uma prática comum?
Moraes - Não é comum. Ele queria marcar, mesmo.
Folha - A interpretação era que
ele responsabilizaria a União?
Moraes - O governo militar fez a
seguinte leitura: ele, estando no final de carreira, teria muito mais
liberdade para condenar a União
do que o juiz substituto dele, que
estava em início de carreira.
Folha - Qual era o perfil do juiz?
Moraes - O dr. João não era um
jurista, mas era um humanista.
Um homem de uma cultura vasta,
de grande experiência de vida.
Trabalhei com ele oito anos. Fizemos uma grande amizade. Tornei-me quase um filho dele.
Folha - O sr. percebia a expectativa da ditadura de que poderia dar
uma sentença favorável à União?
Moraes - Percebi. Ficou muito
claro para todo o mundo na Justiça Federal que a aposta do governo militar foi exatamente entregar o caso a um juiz mais novo,
que, em função de carreira, e do
clima, tinha muito mais a perder.
Folha - Com o AI-5 em vigor, quais
eram os riscos para os juízes?
Moraes - Naquele período, tudo
podia acontecer. O AI-5 permitia
cassar a cidadania, cassar os direitos políticos. O juiz poderia perder o cargo. Depois, nem era tanto
a aplicação do AI-5, que já dava
respaldo à ditadura. Era o medo,
na verdade, de que poderia acontecer [com o juiz] o que aconteceu
com tantos outros: simplesmente
de ser seqüestrado e torturado,
como aconteceu com Herzog.
Havia um clima muito opressivo,
quer pelo AI-5, que permitia ao
governo fazer qualquer coisa, como manter alguém preso e incomunicável, quer pela própria repressão paramilitar, que, naquela
época, em função mesmo do caso
Herzog, tornou-se pública e notória. Todo o mundo sabia que havia esse aparato paramilitar que
era o braço executor do governo.
Folha - Quando o sr. soube que
iria julgar o processo, quais cuidados tomou? Havia preocupação
com a sua integridade física?
Moraes - Ah, tinha sim, sem dúvida. Mas, eu também tinha, a
meu favor, a minha mocidade. Ou
seja, essa volúpia no sentido de
poder exercer a magistratura com
todas as suas condições, apesar do
regime militar. Era a força da juventude, de se rebelar contra isso.
Quando eu percebi que aqueles
anos eu tinha sido quase um alienado político, queria exercer esse
caso com toda a liberdade de um
juiz que quer melhorar seu país.
Folha -Quais foram os cuidados
pessoais que o sr. tomou?
Moraes - Tomei algumas precauções. Levei minha família para
o interior. Tirei férias e dediquei-me exclusivamente à sentença. Eu
fiquei na minha casa, um pouco
na casa de meus pais.
Folha - Tinha segurança pessoal?
Moraes - Nessa época, não existia isso. Na verdade, estávamos
desprotegidos completamente.
Folha - O sr. recebeu apoio?
Moraes Alguns colegas vieram
conversar comigo. Alguns parlamentares federais sugeriram:
"Não sentencie agora, porque
ainda está na vigência do AI-5. O
governo te pega". O AI-5 deixaria
de ter vigência em 1º de janeiro de
1979. Estávamos em outubro de
1978. "A notícia que se tem em
Brasília é que, se você condenar a
União, vai sofrer represálias."
Folha - O que o sr. fez?
Moraes - Dei a sentença com o
AI-5 em vigor. Essa visão eu me
orgulho de ter tido. Seria uma reação, um grito de independência
do Poder Judiciário. Já tinha formado a minha convicção, iria
condenar a União. O gesto só teria
valor, como uma espécie de grito
político, de revolta contra a ditadura, se fosse dado sob o clima da
ditadura, sob o AI-5.
Folha - O sr. recebeu pressões?
Moraes - Recebi vários telefonemas anônimos. Mas nenhuma
ameaça. Eram xingamentos.
Folha - O que eles diziam?
Moraes - "Veja lá o que vai fazer... estou de olho em você". E
mais palavrões. "Cabeludo, filho
daquilo"... Do regime militar não
recebi nenhuma insinuação.
Folha - Como estava o processo,
quando o sr. recebeu o caso?
Moraes - As audiências já tinham sido feitas. O processo estava pronto para a sentença. Eu já tinha a convicção formada, era matéria que eu dominava. Fui advogado de banco e estudei muito o
tema da responsabilidade civil do
Estado. Sabia que, na sentença do
caso Herzog, eu podia dar um
passo muito importante na questão da responsabilidade civil.
Folha - O sr. trocou informações
ou consultou o juiz anterior?
Moraes - Não, mas seria normal.
Ele perguntou: "Quer ler a minha
sentença?" Agradeci, mas não
quis. Quando ele passou o processo para mim, escreveu um bilhete:
"Ao me proibirem de ler a sentença, mal sabem eles que sua mão é
muito mais capaz e pesada".
Folha - O sr. conversava sobre o
caso com outras pessoas?
Moraes - Não sobre o mérito. Eu
mostrei a minha sentença alguns
dias antes de publicar a um grande amigo meu, que foi ministro
do Superior Tribunal de Justiça:
Miguel Jerônymo Ferrante. Era
um juiz mais antigo, muito respeitado. Pedi a opinião dele. Ele
me devolveu, no mesmo dia, com
um bilhete: "Você fez uma obra
jurídica. Não tenho nada a dizer".
Folha - Foi uma decisão solitária?
Moraes - Foi uma decisão solitária e muito difícil. Todos aqueles
anos de alienação caíram sobre
mim: "Agora você tem que mostrar quem você é: no sentido de
dar a decisão, seja qual for, o mais
livre possível, sem amarras políticas, sem preconceito político, sem
qualquer tipo, o mais consciente.
E para responder a essa ditadura.
Está aí na sua mão". Na verdade,
foi a hora que eu cheguei para
mim mesmo e disse que, politicamente, eu não poderia mais ficar
comendo pastel. Quando tirei essa armadura de dentro de mim,
pude ser capaz de dar a sentença.
Folha - No processo, o que mais
pesou para a sua decisão?
Moraes - O laudo era imprestável, assinado apenas por um perito. O perito-chefe assinou sem fazer a autópsia. O laudo, a principal prova da União, não tinha validade. As testemunhas disseram
o que acontecia naquelas dependências. Alguns ouviram os gritos
de Herzog. Isso foi prova suficiente para me convencer de que Herzog morreu por causa da tortura.
Folha - O que sustentou a responsabilidade da União?
Moraes - O Estado era responsável, independente de qualquer
circunstância, porque tinha alguém sob sua guarda.
Folha - O sr. também foi além, ao
determinar a investigação criminal
em relação aos responsáveis.
Moraes - Primeiro, eu anulei o
laudo. Segundo, valorizei as provas para mostrar que havia tortura naquelas circunstâncias. Terceiro, determinei a abertura de Inquérito Policial Militar para verificar os responsáveis, todas as autoridades policiais e militares que
se encontravam no local e que foram responsáveis pela tortura.
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