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ARTIGO
A desordem paulista
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
No final da ditadura, a luta pela democracia havia
gerado duas inovações decisivas:
a prática de campanhas nacionais e um partido de centro-esquerda implantado em todo o
território, o MDB-PMDB. À diferença do contexto pré-1964,
quando as eleições tinham um pé
na roça, as duas inovações ocorriam num país urbanizado e
imerso na comunicação de massa. Em 1986, o PMDB, elegendo 22
dos 23 governadores e dominando a Constituinte, aprestava-se a
implementar as reformas sociais.
No flanco esquerdo, o PT e o PDT
faziam avançar a agenda partidária. A forte presença paulista
na direção do PMDB sanava uma
anomalia: politicamente minoritário desde a Revolução de 30, o
centro econômico do país ganhava preponderância em Brasília.
Vinte anos mais tarde, essas
promessas malograram, agravando o desmanche político. Paradoxalmente, boa parte da instabilidade origina-se em São
Paulo, que, no início dos anos 80,
apresentava-se como o pólo modernizador da política nacional.
A propósito da crise do PT, Wanderley Guilherme apontou, com
propriedade, a disrupção provocada no Congresso pela disputa
interna petista em São Paulo.
Contudo, o problema envolve outros partidos. O motivo é conhecido: a diversidade social e o poderio de São Paulo acentuam os desajustes do pacto federativo.
Até a Segunda Guerra, a opinião pública carioca resumia o
sentimento nacional. O Rio de Janeiro encarnava uma certa concentricidade política, econômica
e cultural. Data dos anos 1970 o
atual desequilíbrio federativo.
Enquanto Brasília se instalava na
abstração planaltina e os fluminenses eram despojados de três
senadores na fusão da Guanabara com o Rio de Janeiro (1975), as
eleições de São Paulo repercutiam
em todo o país. Sobrevindo no Estado que concentra 36% do PIB e
22% dos eleitores nacionais, os
pleitos majoritários paulistas se
transformaram em fábrica de
presidenciáveis.
Megalópole internacional e
centro nacional, "global player"
na indústria e no agronegócio, lugar onde os ricos são mais ricos e
os pobres, mais pobres, povoado
por gente do mundo inteiro e de
todo o Brasil, berço do PT e do
Prona, São Paulo reúne contrastes renitentes. As eleições presidenciais retratam suas contendas
internas. No primeiro turno de
1989, entre os sete primeiros candidatos à Presidência, cinco tinham base paulista (Lula, [Mario] Covas, [Paulo] Maluf, Afif
Domingues e Ulysses [Guimarães]). Nas presidenciais de 1994,
os quatro primeiros candidatos
(FHC, Lula, Enéas e [Orestes]
Quércia) eram de São Paulo. Em
1998, três dos quatro primeiros
colocados (FHC, Lula e Enéas) vinham do Estado e, em 2002, os
candidatos do segundo turno
(Lula e [José] Serra) tinham a
mesma origem. Provavelmente, o
presidente eleito em 2006 também será paulista.
Ao lado da desestabilização
criada no Congresso pelo PT de
São Paulo, Wanderley Guillherme denunciou o "esquema oligárquico do PT paulista" responsável
por uma direção nacional "dogmática e autoritária". Numa
perspectiva mais ampla, é possível observar também o impacto
nacional do percurso errático do
PSDB paulista.
Assim, quando o PMDB escapou, em 1986, de seu controle, colocando em cheque suas ambições
estaduais e presidenciais, Covas,
Serra e FHC, entre outros, encamparam o parlamentarismo. Encerrada a Constituinte com a vitória do presidencialismo, o grupo cindiu o PMDB para fundar
seu próprio partido, o PSDB. Na
mesma ocasião, apoiando-se
num estapafúrdio "partido" monarquista, a liderança tucana de
São Paulo promoveu o plebiscito
sobre a forma de governo. Em
conseqüência, de 1988 a 1993, boa
parte da atividade do Congresso
necessária à consolidação constitucional ficou paralisada. Pouco
podia ser feito sobre a legislação
regulando os poderes e as eleições
antes do plebiscito de 1993. Confirmado o presidencialismo, e Lula aparecendo como o favorito do
pleito de 1994, o PSDB paulista
capitaneou a mudança que reduziu o mandato presidencial de
cinco para quatro anos. Vitorioso
em 1994, FHC e seus correligionários alteraram de novo a regra do
jogo, implementando -do jeito
que se viu- o reeleitoralismo em
1998. Derrotados em 2002, os tucanos efetuam outra reviravolta e
questionam o instituto constitucional da reeleição. Para FHC, ele
não deve valer para Lula. Para
outros líderes do partido, o melhor seria reinstaurar o mandato
único de cinco anos.
Para além das querelas partidárias, há um problema de fundo: a
complexidade do novo federalismo. Paralelamente à fundação de
Brasília foram criados seis novos
Estados: Acre (1962), Mato Grosso
do Sul (1979), Rondônia (1981) e
Amapá, Roraima e Tocantins em
1988. O fato de a Câmara se pautar por um mínimo de oito e um
máximo de 70 deputados por Estado engendrou disparidades.
Conforme os estudos de Jairo
Nicolau, se a representação parlamentar estivesse correlacionada à
população estadual, a região Norte teria 40 deputados, em vez dos
65 atuais, enquanto São Paulo
contaria com mais 41, elevando
para 111 o número de seus representantes na Câmara. Tal desproporcionalidade pesa sobre o Congresso.
Restam duas soluções. O aumento do total de deputados com
uma equação equilibrada dos representantes dos Estados ou a instauração do voto distrital. Gerando alianças interestaduais entre
eleitos de distritos similares (representantes de zebuzeiros de
Araçatuba e de zebuzeiros de
Uberaba, de estivadores de Santos e de Paranaguá etc.), o voto
distrital quebraria a imagem unívoca atribuída ao bloco paulista
na Câmara. Mas o preparo deste
modo de escrutínio, intrincado e
politicamente sensível, só é viável
a longo prazo. No campo econômico, o quadro também é complicado. A agropecuária dos novos
Estados do Centro-Oeste e do
Norte, "latecomers" influenciados
pela globalização, ganha perfil
próprio. A abertura de vias para o
Pacífico dará ainda maior autonomia à região. Entretanto, a
atração caribenha pesa sobre a
Amazônia, com a construção da
BR-174, ligando Manaus a Caracas e, sobretudo, a entrada da Venezuela no Mercosul. Todos esses
motivos impedem que São Paulo
transforme sua hegemonia econômica em hegemonia política.
Mas o problema de fundo permanece. Enquanto o novo federalismo brasileiro não for equacionado, a desordem política paulista
continuará alimentando a desordem brasileira.
Luiz Felipe de Alencastro, professor na
Universidade de Paris-Sorbonne, é autor
de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras, 2000).
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