São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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ARTIGO

A desordem paulista

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No final da ditadura, a luta pela democracia havia gerado duas inovações decisivas: a prática de campanhas nacionais e um partido de centro-esquerda implantado em todo o território, o MDB-PMDB. À diferença do contexto pré-1964, quando as eleições tinham um pé na roça, as duas inovações ocorriam num país urbanizado e imerso na comunicação de massa. Em 1986, o PMDB, elegendo 22 dos 23 governadores e dominando a Constituinte, aprestava-se a implementar as reformas sociais. No flanco esquerdo, o PT e o PDT faziam avançar a agenda partidária. A forte presença paulista na direção do PMDB sanava uma anomalia: politicamente minoritário desde a Revolução de 30, o centro econômico do país ganhava preponderância em Brasília.
Vinte anos mais tarde, essas promessas malograram, agravando o desmanche político. Paradoxalmente, boa parte da instabilidade origina-se em São Paulo, que, no início dos anos 80, apresentava-se como o pólo modernizador da política nacional. A propósito da crise do PT, Wanderley Guilherme apontou, com propriedade, a disrupção provocada no Congresso pela disputa interna petista em São Paulo. Contudo, o problema envolve outros partidos. O motivo é conhecido: a diversidade social e o poderio de São Paulo acentuam os desajustes do pacto federativo.
Até a Segunda Guerra, a opinião pública carioca resumia o sentimento nacional. O Rio de Janeiro encarnava uma certa concentricidade política, econômica e cultural. Data dos anos 1970 o atual desequilíbrio federativo. Enquanto Brasília se instalava na abstração planaltina e os fluminenses eram despojados de três senadores na fusão da Guanabara com o Rio de Janeiro (1975), as eleições de São Paulo repercutiam em todo o país. Sobrevindo no Estado que concentra 36% do PIB e 22% dos eleitores nacionais, os pleitos majoritários paulistas se transformaram em fábrica de presidenciáveis.
Megalópole internacional e centro nacional, "global player" na indústria e no agronegócio, lugar onde os ricos são mais ricos e os pobres, mais pobres, povoado por gente do mundo inteiro e de todo o Brasil, berço do PT e do Prona, São Paulo reúne contrastes renitentes. As eleições presidenciais retratam suas contendas internas. No primeiro turno de 1989, entre os sete primeiros candidatos à Presidência, cinco tinham base paulista (Lula, [Mario] Covas, [Paulo] Maluf, Afif Domingues e Ulysses [Guimarães]). Nas presidenciais de 1994, os quatro primeiros candidatos (FHC, Lula, Enéas e [Orestes] Quércia) eram de São Paulo. Em 1998, três dos quatro primeiros colocados (FHC, Lula e Enéas) vinham do Estado e, em 2002, os candidatos do segundo turno (Lula e [José] Serra) tinham a mesma origem. Provavelmente, o presidente eleito em 2006 também será paulista.
Ao lado da desestabilização criada no Congresso pelo PT de São Paulo, Wanderley Guillherme denunciou o "esquema oligárquico do PT paulista" responsável por uma direção nacional "dogmática e autoritária". Numa perspectiva mais ampla, é possível observar também o impacto nacional do percurso errático do PSDB paulista.
Assim, quando o PMDB escapou, em 1986, de seu controle, colocando em cheque suas ambições estaduais e presidenciais, Covas, Serra e FHC, entre outros, encamparam o parlamentarismo. Encerrada a Constituinte com a vitória do presidencialismo, o grupo cindiu o PMDB para fundar seu próprio partido, o PSDB. Na mesma ocasião, apoiando-se num estapafúrdio "partido" monarquista, a liderança tucana de São Paulo promoveu o plebiscito sobre a forma de governo. Em conseqüência, de 1988 a 1993, boa parte da atividade do Congresso necessária à consolidação constitucional ficou paralisada. Pouco podia ser feito sobre a legislação regulando os poderes e as eleições antes do plebiscito de 1993. Confirmado o presidencialismo, e Lula aparecendo como o favorito do pleito de 1994, o PSDB paulista capitaneou a mudança que reduziu o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Vitorioso em 1994, FHC e seus correligionários alteraram de novo a regra do jogo, implementando -do jeito que se viu- o reeleitoralismo em 1998. Derrotados em 2002, os tucanos efetuam outra reviravolta e questionam o instituto constitucional da reeleição. Para FHC, ele não deve valer para Lula. Para outros líderes do partido, o melhor seria reinstaurar o mandato único de cinco anos.
Para além das querelas partidárias, há um problema de fundo: a complexidade do novo federalismo. Paralelamente à fundação de Brasília foram criados seis novos Estados: Acre (1962), Mato Grosso do Sul (1979), Rondônia (1981) e Amapá, Roraima e Tocantins em 1988. O fato de a Câmara se pautar por um mínimo de oito e um máximo de 70 deputados por Estado engendrou disparidades.
Conforme os estudos de Jairo Nicolau, se a representação parlamentar estivesse correlacionada à população estadual, a região Norte teria 40 deputados, em vez dos 65 atuais, enquanto São Paulo contaria com mais 41, elevando para 111 o número de seus representantes na Câmara. Tal desproporcionalidade pesa sobre o Congresso.
Restam duas soluções. O aumento do total de deputados com uma equação equilibrada dos representantes dos Estados ou a instauração do voto distrital. Gerando alianças interestaduais entre eleitos de distritos similares (representantes de zebuzeiros de Araçatuba e de zebuzeiros de Uberaba, de estivadores de Santos e de Paranaguá etc.), o voto distrital quebraria a imagem unívoca atribuída ao bloco paulista na Câmara. Mas o preparo deste modo de escrutínio, intrincado e politicamente sensível, só é viável a longo prazo. No campo econômico, o quadro também é complicado. A agropecuária dos novos Estados do Centro-Oeste e do Norte, "latecomers" influenciados pela globalização, ganha perfil próprio. A abertura de vias para o Pacífico dará ainda maior autonomia à região. Entretanto, a atração caribenha pesa sobre a Amazônia, com a construção da BR-174, ligando Manaus a Caracas e, sobretudo, a entrada da Venezuela no Mercosul. Todos esses motivos impedem que São Paulo transforme sua hegemonia econômica em hegemonia política. Mas o problema de fundo permanece. Enquanto o novo federalismo brasileiro não for equacionado, a desordem política paulista continuará alimentando a desordem brasileira.


Luiz Felipe de Alencastro, professor na Universidade de Paris-Sorbonne, é autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras, 2000).


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