São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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ELIO GASPARI
Os ekonomistas são os pais. Os demais são os órfãos

Circula no tucanato uma nova idéia velha: a convocação do professor Armínio Fraga para a ekipekonômica. Ele pertence ao grupo de economistas saídos do corpo docente da Faculdade de Economia da PUC do Rio. Alguns passaram pelo Plano Cruzado e quase todos pelo Real.
É injusto chamá-los de Grupo da PUC. Seria mais apropriado dizer Grupo da Gávea, pois a Pontifícia Universidade Católica não tem nada a ver com essas coisas.
Todos guardam algumas características comuns.
Passaram, ou permanecem, na administração pública como exemplos de honradez e de trabalho.
Alguns tinham trabalhado no sistema financeiro antes de servir ao governo e todos foram trabalhar em casas bancárias depois de deixá-lo. No mundo das mercadorias, além de livros, nunca produziram uma caixa de fósforos.
Estimando-se o patrimônio acumulado por alguns deles nos últimos 15 anos, verifica-se que, desde a fundação da Universidade de Paris, na Idade Média, nenhum grupo de professores conseguiu acumular tanto dinheiro em tão pouco tempo. Há casos de turmas de alunos de universidades como Yale, Oxford e Heidelberg que se tornaram bilionários. De professores, não. (Poucos economistas de renome fizeram fortuna. Robert Merton e Myron Scholes, ganhadores do Prêmio Nobel, ficaram ricos, mas foram à breca em setembro passado, quando o fundo que administravam perdeu US$ 2,5 bilhões em oito meses.)
Todos participaram das fases de sucesso dos planos econômicos que conceberam. Sem que sejam responsáveis pela simplificação, são qualificados como "pai do Cruzado", ou como "um dos pais do Real". Como poucos ficaram no governo quando onça bebeu água, deixaram os meninos na rua. No caso do Cruzado, a paternidade do fracasso sobrou para José Sarney. No do Real, a sobrevalorização deslizou suavemente para as costas de Gustavo Franco. (Ele é da Gávea, mas nunca trabalhou em banco e, inclusive por isso, não formou patrimônio algum.) Armínio Fraga, por exemplo, foi um dos arquitetos da sobrevalorização de 1994.
Em todos os casos pode-se argumentar que deixaram o governo porque perceberam que, contra suas opiniões, o leite talhou. Infelizmente, a administração pública difere de um seminário acadêmico. Nenhum professor é obrigado a ficar batendo boca num debate universitário, mas é recomendável que um cidadão estrile quando deixa um cargo público por discordar fundamentalmente dos rumos de uma política pública. William Simon, secretário do Tesouro no primeiro governo Reagan deu um belo exemplo disso. Saiu, escreveu um livro e botou para quebrar.
O percurso dos ekonomistas que passam por cargos públicos e se transferem em silêncio para diretorias de bancos vem criando uma distorção na vida nacional. Ela transforma o sucesso inicial dos planos em manto dos mestres e mortalha dos políticos e do Congresso.
Um exemplo: o Plano Real está ameaçado por causa de Itamar Franco. Mentira. O Plano Real foi bem sucedido exatamente porque ele teve a clarividência (tirada sabe-se lá de onde) de abdicar da gestão econômica, entregando-a ao professor Fernando Henrique Cardoso. Foi caso único e vitorioso em toda a história republicana.
Outro: foi o atraso do Congresso na votação das reformas que travou o Real. Mentira. Foi o atraso da ekipekonômica em mudar o câmbio que atraiu os tubarões. Os sábios lembram-se muito bem que, no início do segundo semestre do ano passado, discutia-se em segredo a ampliação da faixa de flutuação da moeda. Isso não foi feito porque prevaleceram o receio e a inércia, até que a Tailândia acabou com a brincadeira.
A distorção provocada por essa deificação torna-se mais grave quando se verifica que se convive hoje com uma espécie de baronato. São os ex-membros da ekipekonômica. Um ex-ministro da Justiça é nada. (Quem se lembra dos dois últimos ocupantes do cargo?) Já um ex-ministro da Fazenda vira visconde de Inhomerim e se transforma em oráculo. Um ex-deputado é um deputado que não conseguiu se reeleger. Um ex-diretor do Banco Central é um sábio vitalício.
O doutor Armínio, ex-diretor internacional do BC, viveu os últimos anos em Nova York, como administrador de uma parte do ervanário do fundo de investimentos de George Soros.
Nessa condição, logo depois da quebra dos Tigres Asiáticos, sustentou numa entrevista à repórter Cecília Costa que "a situação não é preocupante", pois "o Brasil não pode ser colocado na mesma categoria da Tailândia". Não se incomodava muito com o déficit de contas externas porque estava "sendo financiado com dinheiro bom, de longo prazo, investimentos diretos, dinheiro da privatização". Achava que a cotação do real ia bem, obrigado. Em janeiro do ano passado, noutra entrevista, a Cosette Alves, informou que nada se devia mudar na política econômica brasileira, pois os investimentos diretos haveriam até de aumentar. Acreditava que o mundo vivia um período de prosperidade semelhante ao que houve entre 1870 e 1914. (Em seu benefício, registre-se que dizia isso antes da crise russa, quando as reservas brasileiras estavam em quase US$ 60 bilhões.)
A menos que tenha passado por uma iluminação posterior, da qual não se viu reflexo público, se o doutor Fraga tivesse posto o dinheiro do fundo de Soros em idéias como as suas, teria feito um péssimo negócio. E quem acreditou no que dizia, bailou.

Questão de saúde

Está por pouco a solução do caso dos sexagenários a quem o Bradesco Seguros quer impor aumentos de até 69% nas mensalidades de seus planos de saúde.
Aconteceu a velha história: os planos foram vendidos (pela Golden Cross) a preço de banana a pessoas com menos de 50 anos, o tempo passou e agora a conta só fecha (nas mãos do Bradesco, que comprou a carteira) se os sobreviventes forem esfaqueados. A um segurado de 70 anos, com 14 anos de contrato, queriam subir a mensalidade de R$ 549 para R$ 703.
O Ministério da Saúde foi à luta, e surgiu uma possibilidade de acordo. Em vez do aumento brutal, o Bradesco poderá oferecer a esses associados reajustes anuais abaixo de 5%. Ainda há muitos detalhes a serem aparados e nada garante que o problema venha a ser resolvido.
A seguradora do Bradesco mostrou-se disposta a discutir uma maneira de varrer para longe de sua porta um episódio carregado de insensibilidade. Se houver acordo, fará bem à saúde de todos os interessados.

A voz da vítima

Com as costas lanhadas pelas críticas que recebeu quando o Plano Cruzado foi a pique, o ex-presidente José Sarney faz uma recomendação a FFHH, que à época estava na outra ponta do chicote:
- Quando a economia parecer descontrolada, quando a situação política parecer insolúvel, confie no Brasil. Por maiores que sejam as crises, é no país que estão as forças capazes de dissolver os interesses e as jogadas embutidas nas manhas da política e da economia. Há algo de budista nisso, mas nessas horas só o presidente é capaz de perceber a importância de sua força.

A fraude pode virar uma arquifraude

A Câmara de vereadores do Rio de Janeiro reabrirá seus trabalhos diante de um dilema. Vai decidir se é uma Câmara ou a velha casa que ganhou da população o apelido de Gaiola de Ouro.
Em novembro do ano passado, ela realizou um concurso para admitir 207 funcionários, de auxiliar de serviços gerais (R$ 1.079,60 mensais) a engenheiro (R$ 2.395,57). As vagas foram disputadas por 99 mil candidatos, e o concurso foi montado pela Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nada mais limpo.
Em novembro saíram os resultados. Como de praxe, surgiram pedidos de revisão e disso resultou uma segunda lista de candidatos aprovados.
Nessa hora veio a surpresa. Na revisão classificaram-se, com novas notas, 16 candidatos. Sete já eram funcionários da Câmara, lotados em gabinetes de vereadores. As notas de alguns deles pularam de 50 para 80 pontos. A Coppe suspeitou de fraude e chamou-se a polícia. Há professores convencidos de que as fichas de alguns candidatos foram substituídas. O cheiro da fraude vem da existência de diversas provas com um padrão comum de respostas.
Diante do cheiro de maracutaia, prosperou na Câmara de vereadores o desejo de anular todo o concurso. Parece solução austera quando é um ardil típico da velha Gaiola de Ouro. É a arquifraude.
A anulação do concurso pune, com toda certeza, os 191 candidatos que foram classificados na primeira e na segunda lista, sem que haja qualquer suspeita de fraude sobre suas provas. Se eles forem contratados, o problema dos 16 candidatos cuja classificação tornou-se discutível continuará do mesmo tamanho. Se a Justiça lhes der razão, ganham os empregos. Se não a tiverem, chama-se os 16 seguintes.
A mágica da história está em outro lugar. Se o concurso for anulado, preserva-se a boca rica de algumas dezenas de apadrinhados de vereadores que ocupam os cargos em caráter precário. Até que se convoque um novo concurso e se dê posse aos aprovados, vai se passar algo como um ano. Enquanto isso, padrinhos e afilhados continuarão a viver às custas da Viúva, a salvo de qualquer teste de competência.

Entrevista
Ciro Gomes
(41 anos, ex-ministro da Fazenda e ex-governador do Ceará.)

Se o telefone tocar e do outro lado estiver FFHH, convidando-o para uma conversa no Alvorada, o que o senhor responde?
Diga a hora e o dia. Se possível, nos encontraremos no palácio do Planalto, durante o horário de expediente.
O que o senhor tem a dizer ao presidente?
A ele e a quem queira ouvir minha opinião, tenho a dizer, em primeiro lugar, que é inútil e até impertinente entrar numa discussão de responsabilidades. Também não se ganha nada com frases desagradáveis do tipo "eu disse que ia dar nisso". Temos que pensar no que vai acontecer daqui para a frente. Se continuarmos no cenário em que estamos, nosso destino será o desastre. Temos que colocar no devido lugar essa mitologia conservadora de que a nossa crise se resume a uma questão fiscal. Ela não leva a nada. É um engano coletivo e, na melhor das hipóteses, um caso de auto-engano. O problema da nossa economia é o colapso da dívida pública. O governo desindexou preços e salários, mas indexou em dólares a maior parte de sua dívida interna. O resultado é que ela chegou a R$ 400 bilhões. Não há ajuste que resolva isso. Você pode cortar os salários dos servidores públicos à metade e não vai adiantar. De cada R$ 100 dessa divida, R$ 99 estão com banqueiros nacionais. Temos que criar um consenso para rolá-la em condições diferentes. Estou falando em renegociá-la sem quebra de contrato, sem maluquices colloridas. Já conversei com diversos banqueiros e eles dizem que há margem para conversar. Então, vamos conversar. Além disso, devemos tomar medidas de varejo: eliminar as facilidades para a fuga de capitais brasileiros e restringir as perdas de divisas com turismo. Finalmente, devemos criar um mecanismo que, com a participação dos consumidores e dos empresários, nos permita definir e cortar uma pauta de importações supérfluas. São coisas difíceis de fazer, mas atenuam o problema. Resolver, não resolvem.

O que é que resolve?
Uma reforma tributária que deixe de onerar a produção e passe a onerar o consumo. Isso, e tudo o mais, são providências de altíssimo risco. Só podem ser bem-sucedidas com a liderança de um presidente forte, disposto a ir buscar seu poder junto ao povo. Para isso, ele não precisa abandonar seus aliados, mas deve trazer novos interlocutores para a cena. Assim, vence a crise. Do jeito que estamos, nosso caminho é o do México, com uma tristeza adicional: o presidente vai virar um Carlos Salinas reeleito, sem a válvula de Ernesto Zedillo. Salinas viveu o esplendor da globalização mexicana. Hoje, Zedillo descasca o abacaxi que recebeu, enquanto Salinas está exilado na Irlanda.

O preço da preguiça

Coisas da ekipekonômica:
No dia 25 de dezembro venceu a isenção de IPI que o governo dá aos compradores de máquinas e equipamentos agrícolas. Diante disso, o governo tinha que decidir se restabelecia a isenção ou se a esqueceria.
Levou quase um mês para resolver que a isenção continua valendo.
Resultado: paralisou a venda de máquinas e empanturrou os pátios de tratores.


A média do nada

Para a crônica da desvalorização do real:
Na primeira semana deste ano, nas últimas rodadas de conversas que levaram à mudança da política cambial, FFHH queria desvalorizar o real em algo como 10%. Mudou de idéia depois de uma conversa com o ministro Pedro Malan e com o economista Francisco Lopes. Malan achava que algo como 4% estava bom. Lopes ia um pouco além. Ainda assim, FFHH conseguiu chegar a 8%. A realidade cobrou o triplo.
Esse tipo de erro de avaliação resulta da SMSP, ou Síndrome da Média dos Sábios Presentes. Em março de 1995, a SMSP produziu o camelo cambial que explodiu no início deste ano. Pérsio Arida, presidente do Banco Central, defendia uma desvalorização de 10% seguida de uma margem de flutuação de outros 10%. Foi contraditado e chegou-se a um híbrido. A desvalorização ficou em pouco mais de 5%, e a margem de flutuação tornou-se irrelevante. Parecia uma solução de compromisso, mas era a SMSP, misturando jaca com mármore.
Quando FFHH voltar a se encontrar com Malan e Lopes, bem que lhes poderia perguntar:
- Vocês realmente achavam que a desvalorização de 5% era suficiente?



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