São Paulo, quarta-feira, 24 de junho de 2009

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ELIO GASPARI

O major Curió não é "uma pessoa comum"


O ex-agente do SNI é um retrato do Brasil do final do século 20, feio, brutal e dissimulado

O REPÓRTER Leonencio Nossa trouxe o major Curió de volta ao palco. Aos 74 anos, com os cabelos pintados de vermelho, ele vive seu último ato no interior da Amazônia. Agarrado a uma velha mala, conta mais uma vez sua história da Guerrilha do Araguaia. Nesse conflito se chocaram comandantes militares ineptos, seduzidos pelo banditismo, e uma liderança do Partido Comunista do Brasil que jogou cerca de 70 jovens numa "guerra popular" iniciada em 1972 com a fuga do chefe político (João Amazonas) e terminada dois anos depois, com a fuga do chefe militar (Angelo Arroyo).
Numa região de lendas superlativas, Curió se tornou um dos brasileiros que marcam a história da segunda metade do século 20. Numa desgraça dessas que descem do além, o tempo que viu JK viu Curió também. Sem se conhecer o Brasil das luzes de Juscelino não se entende o que veio a ser o país. Conhecendo-se o país das sombras de Curió, aprende-se porque muitas coisas ainda são como são.
Seu nome é Sebastião Rodrigues de Moura, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras, oficial do Centro de Informações do Exército, agente do SNI, senhor de baraço e cutelo do maior garimpo a céu aberto do mundo, em Serra Pelada; deputado federal e prefeito (pelo PMDB), da cidade brotada de um casario de bordéis, hoje denominada Curionópolis. Em suma, um daqueles sujeitos que, não sendo "uma pessoa comum", patrocinam desditas com a bolsa e o aparato da Viúva.
Curió participou do massacre dos militantes do PC do B que se renderam ou foram capturados pelas tropas do Exército a partir de outubro de 1973. Felizmente apresentou informações e documentos que ajudam a comprovar uma política de extermínio que só teve paralelo em Canudos ou na Guerra do Contestado. Ele poderá ajudar a reconstituir o cenário de delinquência no qual oficiais do Exército matavam pessoas que se haviam rendido, com quem haviam se familiarizado e, possivelmente, de quem recebiam até mesmo serviços domésticos. Ao contrário dos demais oficiais que participaram da matança, Curió foi muito mais que isso, sempre movendo-se nas beiradas da fronteira da expansão social e geográfica do Brasil. Aí está o aspecto instrutivo de sua figura.
A serviço da ditadura, comandou ações repressivas e negociadoras em regiões de conflitos fundiários. Esteve no Rio Grande do Sul quando amanhecia o MST, mas foi na região do Bico do Papagaio que se tornou uma espécie de vice-rei. Até aí, teria sido mais um coronelzinho de castanhais. Em 1977, quando caçava guerrilhas inexistentes em busca das diárias do CIE, acharam ouro por perto, em Serra Pelada.
Curió coroou-se imperador das crateras e, em nome do governo federal, organizou o trabalho de 30 mil garimpeiros. (É possível que de Serra Pelada tenham saído cerca de 30 toneladas de ouro e uma parte foi mandada por via expressa para o Banco Morgan, na tentativa de segurar um governo quebrado.) Quando Brasília tentou impedir o garimpo manual, o major que perseguira guerrilheiros instrumentalizou a maior revolta popular ocorrida na Amazônia. Prevaleceu e elegeu-se deputado federal.
O Curió das degolas de prisioneiros é o mesmo líder de garimpeiros miseráveis que se elegeu deputado federal e prefeito. Não é "uma pessoa comum", parece pertencer ao passado, mas nunca abandona por completo o presente.


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