São Paulo, terça-feira, 24 de agosto de 2004

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VARGAS, 50 ANOS

Quatro pesquisadores discutem a memória política do Brasil no século 20

Ambigüidades de Getúlio aproximam brasilianistas

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

O brasilianista Jeffrey Lesser conta que entendeu um pouco sobre a relação que os brasileiros mantêm com a memória política do século 20 no dia em que foi visitar o Palácio do Catete, no Rio.
"O quarto de Getúlio Vargas está ali. Mas as pessoas não sobem as escadas. Aquilo não é lembrado como o lugar onde ele se matou. Vai-se ao cinema, à lojinha. É um outro espaço, e o mais incrível é que ninguém esteja protestando: "mas porque não estamos lembrando o grande Getúlio?"."
O mesmo local deixou duas impressões diferentes em Joseph L. Love: "Visitei o Catete em 1965, quando as estruturas políticas de Vargas foram quase desfeitas. Voltei em 2002, e o museu tinha virado um monumento, salientando o tom martirológico".
Para discutir a imagem histórica de Getúlio a partir de um olhar estrangeiro, a Folha ouviu os brasilianistas Jeffrey Lesser, 43, da Universidade de Emory, na Georgia ("A Negociação da Identidade Nacional"); Barbara Weinstein, 52, da Universidade de Maryland ("Vargas Morto: The Death and Life of a Brazilian Statesman", com Daryle Williams); Joseph L. Love, 66, da Universidade de Illinois ("O Regionalismo Gaúcho"); e James Green, 52, presidente da Brazilian Studies Association.
Weinstein diz que, no meio acadêmico internacional, Getúlio é considerado "pioneiro da política corporativista/nacionalista/populista na América Latina, ainda que a imagem de admirador de conceitos fascistas perdure".
Para Green, "Getúlio é totalmente desconhecido nos EUA. Duvido que uma em mil pessoas saiba que o Brasil lutou junto aos aliados na Segunda Guerra". Para ele, a visão generalizada de Getúlio para estrangeiros que têm certa noção da história do Brasil é a de "um demagogo nacionalista com forte apoio popular".
Já Lesser se impressiona com o fato de Getúlio ter sido praticamente esquecido em São Paulo mesmo. "Apesar de ter sido sempre um inimigo dos paulistas, é incompreensível que uma cidade que tem sua história ligada à indústria não pense em Getúlio."
O historiador vê uma relação frágil dos brasileiros com o passado recente. "Ouro Preto é um símbolo colonial, mas o Estado Novo sumiu da memória." A razão, crê, é o fato de a ditadura ter promovido um rompimento.
Mas não teria a Argentina vivido uma ditadura muito mais severa do que a brasileira? E não estão os argentinos até hoje discutindo o legado de Perón?
"Sim. O peronismo ainda é presente na política argentina. Por que vemos nas livrarias de Buenos Aires livros sobre o peronismo em Tucumán e aqui nada se fala do varguismo em Belo Horizonte? É parte da cultura brasileira a idéia de que o passado não é muito importante", diz Lesser.
O historiador considera a volta de Getúlio um dos aspectos mais "fantásticos" de sua trajetória. "É difícil imaginar, depois da Guerra, os líderes fascistas derrotados voltando. E isso só foi possível porque um lado de Getúlio trabalhou com a idéia de democracia."
Para Weinsten, a ambigüidade política contribuiu para que sua memória não se fixasse. "O suicídio provocou simpatia entre o povo e fez avançar as carreiras dos herdeiros do getulismo. Mas, com o tempo, as ambigüidades de seu legado reapareceram, e sua imagem, por conta disso, diminuiu na memória coletiva."
Ao olhar para Getúlio no contexto latino-americano, Green faz um alerta. "Existe um divisor entre o Brasil e a América Latina. Getúlio não entrou no imaginário desses países como aconteceu com Perón (Argentina), Haya de La Torre (Peru), Cárdenas (México) ou Fidel (Cuba). Esses são símbolos da América Latina. Vargas não teve a mesma influência continental duradoura."
Ao compará-lo com o general Juan Domingo Perón, ainda, Green acha que, apesar de a volta de ambos ter criado esperanças parecidas, seus projetos foram diferentes: "Perón voltou mais conservador. Vargas reapareceu com um projeto à esquerda".
Apesar das comparações que se formulam entre Getúlio, Perón e outros líderes latino-americanos do século passado, Love recusa-se a ver Vargas como um produto típico de seu tempo: "Não vejo nada de típico em Getúlio. Não foi grande orador nem uma personalidade magnética, como os típicos caudilhos hispano-americanos. Passou de uma postura política para outra, e transformou o país em um quarto de século. Teve a vantagem de não ter aderido sinceramente a qualquer doutrina".
Ambíguo, contraditório, populista, fascista; típico caudilho latino-americano ou estrategista visionário. Adjetivos e paradoxos não faltam na descrição de Getúlio pelos brasilianistas. É fato, porém, que sua complexidade ainda é um importante atrativo para os historiadores estrangeiros. "Getúlio ainda é objeto de grande interesse, senão de fascinação. Na historiografia da América Latina, seu lugar é absolutamente seguro justamente por ter sido uma figura tão complicada", diz Weinstein.


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