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ENTREVISTA DA 2ª
JOÃO MOREIRA SALLES
Cineasta afirma que "Entreatos" mostra "indícios" de que o então candidato e seus aliados não tinham projeto de país
"É uma imensa decepção", diz documentarista da vitória de Lula
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
João Moreira Salles, 42, está decepcionado. Um dos principais
documentaristas do país, reconhecido e premiado mundialmente, filmou 180 horas dos meses finais da campanha vitoriosa
do candidato Luiz Inácio Lula da
Silva à Presidência, em 2002, que
se transformaram no documentário "Entreatos".
Hoje, assim como o público
vem fazendo ao assistir de novo a
seu filme, Salles repensa aquele
momento com olhos críticos. "De
um modo geral, o filme virou
mais melancólico, se tornou um
filme triste. Não era um filme triste, e se tornou", disse ele, em entrevista exclusiva à Folha, que ele
concedeu a princípio para falar de
um lançamento em sua produtora e da revista que prepara.
Hoje, "Entreatos" se torna quase profético quanto ao principal
problema do futuro governo, o
despreparo e a falta de um projeto
para o Brasil, sufocado por um
projeto para a vitória. "Ali, se elegia muito mais um símbolo e
muito menos um projeto de
país", diz. A seguir, os trechos da
entrevista que tratam de política.
Folha - O que você acha desse fenômeno que vem acontecendo com
seu "Entreatos", de pessoas querendo revê-lo com outros olhos hoje? Você já reviu sem a cortina da
vitória, ou seja, pós-denúncias?
João Moreira Salles - Não. Logo
no início das denúncias, como você chama, ainda eram os Correios
[em maio, o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material, Maurício Marinho, foi filmado ao aceitar propina de R$ 3.000 de empresários],
estava no início da história [da
primeira entrevista] do Roberto
Jefferson à Folha. Eu fui a um seminário na Unicamp, e o organizador exibiu trechos do filme.
Existem políticos
melhores e piores. É nesse sentido que o erro
do Lula é mais
grave do que o
do Maluf. Porque do Maluf
você espera, do
Lula, não
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Ali, de fato,
percebi que
não é que o filme virou outra
coisa. O Brasil
virou outra
coisa, é um
pouco diferente. E porque o
Brasil virou
outra coisa, determinadas seqüências do filme ganham
sentido diferente. O filme
virou mais melancólico, um
filme triste.
Não era um filme triste, e se
tornou.
Folha - E os telespectadores
assistiram quase com olhos de detetive, tentando achar o Delúbio
Soares em atitude suspeita?
Salles - É um fenômeno quase
compreensível, porque aquilo é
um documento que eu julgo importante sobre a vida política brasileira, não tem nada a ver com a
qualidade ou a falta de qualidade
do filme, simplesmente pelo fato
de uma câmera ter existido ali, tão
de perto, naqueles últimos 30
dias. Você está ali diante do fato
histórico em andamento. É normal que as pessoas queiram voltar
a vê-lo para saber o que o Silvinho
[Silvio Pereira, ex-secretário-geral
do PT] dizia no avião, que queiram saber o que o José Dirceu dizia, mas fica um pouco do jogo
dos sete erros, sabe?
Folha - Se quando o Dirceu pergunta "O que esse pessoal está fazendo aqui?" é um traço dele de autoritarismo...
Salles - Exato, vira um pouco isso. Eu não quis que o filme fosse lançado no
"Carnaval da Vitória"
-e ali havia um impedimento concreto, eu
não conseguiria montar
um filme em dois, três
meses, mas digamos
que conseguisse-, era
muito claro para mim
que não seria bom para
o filme que ele fosse lançado imediatamente
após a vitória. Houve
uma conversa de co-produção entre a VideoFilmes e a Globo, que teria sido muito bom à VideoFilmes, até como ensaio de parceria. Eu poderia ter aceitado, mas o
filme seria visto de forma carnavalesca.
Com o sinal trocado,
fenômeno idêntico acontece agora: uma exibição hoje é em primeiro lugar oportunista e, em segundo, produz-se uma leitura viciada do filme. Do mesmo modo
que não é o "Carnaval da Vitória",
como seria visto se exibido naquele momento, não acho que seja antecipatório da crise, que seria
visto dessa maneira hoje.
Daí minha decisão de não relançar o filme. Tem também uma
questão de lealdade. O filme foi
exibido, as pessoas que quiseram
assistir assistiram, e poderão assistir de novo quando for relançado em DVD no ano que vem. Então, cumpriu o seu papel. Um relançamento agora é desleal e
oportunista, e você tem de ser leal
com qualquer pessoa, no caso o
Lula e as pessoas que estavam em
torno do Lula e que foram filmadas naquele momento.
O filme vai ficar mais interessante com o tempo. A cena famosa do Dirceu, em que ele diz
"Quem são vocês e porque vocês
estão filmando?", hoje em dia é
vista como um claro indício de
seu caráter autoritário.
É uma leitura equivocada, ele
está sendo apenas uma pessoa
responsável. De fato, é uma loucura deixar uma equipe independente no coração de uma campanha a quatro dias das eleições. Ele
ali é o princípio de realidade.
Folha - Já na montagem do filme
você encontrou indícios do que viria a se confirmar depois?
Salles - Fica muito claro no filme
que a vitória do Lula não foi a vitória de um projeto de país, foi a
vitória de um homem com um
inegável carisma, com uma trajetória extraordinária num país tão
desigual como o Brasil. Portanto,
você consegue encontrar indícios
da falta de projeto, que é um dos
problemas desse governo. Ali, se
elegia muito mais um símbolo e
muito menos um projeto de país.
Folha - Parte da comunidade artística, cultural e de formadores de
opinião tem se manifestado decepcionada com o que veio a acontecer. Qual a sua avaliação?
Salles - Como cidadão, como todo o Brasil, acho que é uma imensa decepção. Ninguém poderia
supor que a derrocada seria tão
grande. É um momento de melancolia. Eu não torcia por isso,
pelo contrário. Não é bom para o
Brasil, mesmo para quem não
gosta do PT. Continuo achando
que se modifica um país no âmbito da política, não há outro lugar
para isso no regime democrático.
Do mesmo modo
que ["Entreatos']
não é o "Carnaval da Vitória",
como seria visto
se exibido naquele momento,
não acho que seja antecipatório
da crise
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E essa crise produz uma falta de
fé na política, aquela velha coisa
reacionária de que todo mundo é
igual. E não é verdade. Essa descrença produz o cinismo, e esse
cinismo produz, enfim, um vale-tudo. E o PT,
por erro próprio, encarnava muito essa
idéia de "Nós
somos puros".
Então, quando
o próprio santo peca...
Folha - Se
Deus está morto...
Salles - Deus
morre, a fé
morre. E isso é
muito ruim, se
a crise do governo Collor
reafirmou a fé
na política e na
democracia,
essa crise é
mais séria,
porque é a crise dos puros. Acho que o Lula não
é um político como os outros, assim como não acho que o FHC seja como os outros. Fico irritado
com essa conversa de que não há
diferença entre Maluf e Lula. Claro que existe. Nesse sentido, é um
momento muito muito triste para
o Brasil. Porque a gente elegeu o
símbolo, e o símbolo se desfez.
Era o único patrimônio dele [Lula], e ele pode ter perdido.
Folha - Você vê exageros ou generalizações da imprensa?
Salles - A imprensa está cumprindo bem o seu papel, de um
modo geral. Mas a generalização
ocorre mesmo é na população.
Estou cansado de ouvir motorista
de táxi, amigos meus repetindo a
frase "Todo mundo é igual". E
não é! O cara que recebeu a Land
Rover [Silvio Pereira] é igual, mas
não acho que o [ministro da Fazenda Antonio] Palocci seja.
Existem políticos melhores e
piores. Perigosa é essa
idéia de dizer que todo
mundo é igual. É nesse
sentido que o erro do
Lula é mais grave do que
o do Maluf. Porque do
Maluf você espera, do
Lula, não.
Assim, essa crise é
mais grave do que a do
governo Collor. Aquela
produziu virtude, essa
não sei se produzirá virtude ou só cinismo. Se
produzir só cinismo, será uma tragédia. Não
quero dizer que Lula seja conivente. O fato é
que sem dúvida nenhuma houve ali um equívoco brutal, e o Lula...
Ele diz isso no comício
da Paulista, que graças a
Deus não usei.
Um dos acertos do filme é terminar quando termina, que é o
Lula sendo engolido pela realidade. [A câmera] afasta, ele já é o
presidente eleito e é engolido pela
imprensa. Acabou o sonho, vamos ver se você consegue não ser
devorado. Parece que não conseguiu, né? Se terminasse na Paulista, se terminasse no dia seguinte,
seria um final edificante, a vitória
óbvia, sem nenhuma ambigüidade. Desse jeito, termina de maneira quase inquietante, "Será que
ele vai conseguir resistir aos..."
Folha - Você não se arrisca a uma
previsão?
Salles - Não, não me arrisco. A
minha opinião vale tanto quanto
a de qualquer outra pessoa, e menos até, porque não sou especialista. Acho que ele chega à reeleição. Aí é exercício de futurologia.
A economia está crescendo, por
incrível que pareça houve um
descolamento completo da política com a economia, coisa que
nunca aconteceu no Brasil. No
ano que vem, se essa coisa for resolvida, com cinco, seis, sete deputados cassados, e se [as denúncias] não chegarem ao Lula, ele
tem chance de se reeleger.
Mas eu estava dizendo do discurso da Paulista, o Lula diz isso,
que é trágico, que todos têm o direito de errar, menos ele. Não é só
você que está ali, é você e todos os
preconceitos que o Brasil tem
contra a sua figura. Portanto, sua
responsabilidade é muito maior.
E o Lula tem consciência aguda
disso. Disse para 200 mil pessoas:
"Professor da universidade que é
presidente da República pode errar, eu não posso errar, não tenho
esse direito. De mim esperam o
erro, de mim esperam o despreparo, eu preciso provar que não
sou despreparado..." A crise de
confiança na democracia é mais
grave quando alguém como o PT,
o Lula e o que ele representa produzem o que produziram do que
quando alguém como o Collor
produz o que produziu.
É preciso acreditar na política.
Portanto, torço muito para que isso não chegue ao Lula e para que
de alguma maneira se resolva
com uma certa serenidade e que
quem merecer ser cassado seja e
que o Congresso dê uma demonstração de firmeza.
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