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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
País não tem agenda nem rumo, mas Lula teve sorte
Ex-presidente diz que Brasil cultiva mentalidade avessa ao mercado
e defende novo "choque capitalista" contra apego ao estatismo e ao atraso
RENATA LO PRETE
EDITORA DO PAINEL
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
Aos 75 anos, o ex-presidente diz que seu sucessor
não tinha no primeiro e continua sem agenda para o segundo mandato -tem apenas uma "aspiração geral". Fernando Henrique Cardoso ainda
vê Luiz Inácio Lula da Silva como um símbolo das possibilidades democráticas e sociais do país, mas um símbolo hoje maculado por escândalos e diminuído pelo exercício do poder "como fruição". FHC entende os governos do PSDB e do PT
como um caso de "concertação por antagonismo", ou seja, de
continuidade na economia sob a retórica da ruptura e do confronto. Na entrevista que segue, o sociólogo volta a apontar o
apego ao Estado como causa e sintoma do capitalismo atrasado que, segundo ele, precisa ser passado a limpo pelo país.
FOLHA - O sr. acha que o presidente
Lula estava brincando quando disse
que quem é de esquerda depois dos
60 "tem problemas"?
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO -
Não foi brincadeira. Foi uma
expressão espontânea para um
sentimento que é popular. As
pessoas dizem: "quando fica
mais velho, toma juízo". O Lula
disse o que sente sobre a própria trajetória: ficou mais perto
do que ele chama de centro.
Mas é curioso que o centro, para ele, seja o Delfim Netto.
FOLHA - Por quê?
FHC - Porque o Delfim, para
quem lutou contra o regime
militar, é simbólico. Ainda mais
simbólico para quem lutou
contra o arrocho salarial. Não
estou acusando o Delfim. Parece-me apenas que o Lula baixou demais a guarda.
FOLHA - O sr. acha que a política
brasileira é definida por acordos entre forças vistas como avançadas e
outras vistas como atrasadas?
FHC - Sim. Somos um país desigual do ponto de vista econômico e injusto do ponto de vista
social. Isso coloca um desafio
para quem governa. O setor
mais progressista, sintonizado
com as formações democráticas e com os avanços da economia, é geralmente minoritário.
Mas o problema é outro. É
ter ou não capacidade de, ao fazer a aliança, imprimir um rumo. Lula perdeu o rumo. Antes
de os escândalos virem a público, já se via que a agenda no
Congresso não era renovadora.
FOLHA - O sr. vê alguma mudança
substantiva em relação à montagem do segundo mandato?
FHC - Estamos de novo botando o carro antes dos bois. Qual é
a proposta? Qual é a agenda?
Não está claro. Sem isso, como
é que se faz um acordo? Com
cargos, com posições nos ministérios. Mas vai fazer o quê?
Não se discutiu até agora. Discutiu-se uma vaga aspiração de
5% de crescimento na economia. Se você quer 5%, melhor
querer logo 10%. Isso não é
agenda. Isso é aspiração geral.
FOLHA - E o pacote econômico, que
teve seu anúncio adiado...
FHC - Pois é. Que pacote é esse?
Nem o governo sabe. A aliança
não foi feita para esse pacote.
FOLHA - Por que nenhum de seus
aliados defendeu na campanha as
privatizações de seu governo?
FHC - Durante anos o PT bateu
na tecla de que a privatização
era contra o interesse nacional
e que houve "privataria", bandalheira. Isso foi repetido, e
não reagimos corretamente.
FOLHA - Por quê?
FHC - Não fizemos a revisão
das nossas posições político-ideológicas. Continuamos funcionando na mentirinha, como se fosse possível ter, no mundo
moderno, um Estado que se
ocupe de tudo o que é investimento produtivo. Como se
bom mesmo fosse o capitalismo estatal ou o socialismo estatizante. Esse modelo de Estado
onipresente é ainda a ideologia
média. As pessoas preferem o
Estado ao mercado. Todos.
No fundo, nossa ideologia básica, embora não explicitada, é
que bom mesmo é uma sociedade igualitária, sem mercado,
bancos, juros, onde só tenha
Estado. É não-capitalista.
FOLHA - Isso é mais PT ou PSDB?
FHC - É mais evidente no PT,
mas quando o PT critica o
PSDB, calamos a boca. É preciso retomar o discurso feito pelo
Mário Covas de 1989, o do
"choque de capitalismo".
As pessoas preferem um capitalismo atrasado a um capitalismo avançado -e pensam que é por serem de esquerda. Não
se dão conta de que a esquerda
não está em jogo aí.
FOLHA - O país pode crescer de forma expressiva com a combinação
de juros altos e câmbio apreciado?
FHC - A questão do câmbio é
delicada. O governo tem poucos instrumentos. Vai fazer
com que o Banco Central compre mais reservas? Aumenta a
dívida. Vai fixar o câmbio e ser,
de novo, submetido a pressões
especulativas? Não vejo como.
Seria melhor um câmbio com
menos valorização, mas como
você chega lá? Aumenta a importação? Afeta a indústria.
Talvez pudesse ter sido melhor e não chegar a esse ponto,
mas qual é o instrumento que
você tem? Tem que aumentar a
produtividade. Crescimento é
isso: investimento com aumento de produtividade. E essa produtividade tem que ser não só
física, mas humana -e aí entra,
por exemplo, a educação.
FOLHA - O Lula está num ponto do
caminho que o sr. já viveu. Daqui em
diante, para onde ele vai?
FHC - Sempre ganhei no primeiro turno, o Lula nunca. Mas
o importante é que ganhou.
Agora, ninguém sabe o que vai
acontecer. O Lula teve mais
sorte do que eu. Pegou um vento favorável. Eu peguei contra
na situação internacional. E o
momento da reeleição foi o
pior. Isso não ocorre agora. Não
tem problema externo.
A questão do segundo mandato é política. Como não tem
mais reeleição, a partir do segundo ano todo mundo começa
a olhar para a frente.
FOLHA - No petismo, há quem opine reservadamente que não seria
absurdo mudar a Constituição para
permitir outra reeleição...
FHC - No Brasil isso é inviável.
Haveria uma oposição muito
forte. É possível que o pensamento não democrático exista
em alguns setores, mas não
acredito que o Lula entre nisso.
Não o vejo dessa maneira. Ele
gosta do poder. Tudo bem, eu
também gosto. Mas o Lula é
conservador. Isso implicaria
quebrar lanças.
FOLHA - E o exemplo venezuelano?
FHC - O Chávez é um militar.
Ele salta as instituições e vai direto às massas. O Lula é um líder sindical, ele mais negocia
do que quebra. Setores do PT
podem até sonhar com isso.
Mas acho que as instituições
brasileiras são mais sólidas do
que em outros países. Na Argentina, o Menem tentou, mas
não conseguiu. Não é fácil.
FOLHA - Resultados eleitorais recentes na América do Sul vão na
contramão da agenda que estava
em vigor na região quando o sr. foi
presidente. O que que aconteceu?
FHC - No que diz respeito ao
modelo econômico, não houve
mudança. Houve paralisação,
não alteração. Chávez não propõe nenhum modelo. O Peru
não mudou nada, Colômbia
não mudou nada, Argentina
tampouco, Uruguai tampouco.
FOLHA - Houve no mínimo uma
mudança no perfil dos governantes.
FHC - Isso sim. O que aconteceu foi o seguinte...
FOLHA - A América profunda...
FHC - É um pouco isso, e um
pouco também que esses governos se esgotaram no passado. O governo da Venezuela se esgotou. O Chávez é conseqüência do esgotamento do sistema anterior, um sistema que não produziu resultados para o
povo, que se desmoralizou.
Na Argentina também. Houve, em larga medida, um cansaço. O Menem, no auge do seu
neoliberalismo, era popular. A
perda de popularidade veio depois, quando o sistema mostrou sua incompetência para gerenciar as questões sociais.
Agora, raciocine pelo outro
lado: qual é o país que conseguiu manter um modelo econômico de eficiência e melhorar a situação social? O Chile. A redução da pobreza lá é grande. A
melhoria da educação é notável. Mas o Chile é assim fazendo reformas, mantendo uma coerência. Não acho que se deva julgar em bloco um vendaval
da América Latina.
FOLHA - Nesse quadro, qual é a especificidade do caso brasileiro?
FHC - É curioso. Houve continuidade no setor econômico,
apesar da retórica. É como se tivesse uma concertação por antagonismo. É uma questão política, outra vez. E aí o PT teve a
virtude de convencer o país de
que precisava mudar tudo. Não
mudou nada, mas convenceu
de que precisava mudar tudo. A
política tem sua autonomia. Ela
não depende só dos condicionantes econômicos e sociais.
FOLHA - O que caracteriza o Lula?
FHC - Primeiro, simbolicamente, o fato de uma pessoa
nordestina, pobre, de origem
sindical ter chegado à Presidência. Isso é importante para
o Brasil. Acho que esse lado
simbólico é uma janela de democracia. Em segundo lugar, o
que sobreviveu disso foi o sindicalismo. Quem está no governo hoje? Sindicalistas. Não são
os ideológicos do PT. Não é a
esquerda católica. Uma boa
parte, aliás, foi embora do PT.
Ficou o sindicalismo.
Não é peronismo nem getulismo. Quando Perón e Getúlio
puseram para dentro os sindicatos, havia mudanças muito
grandes na sociedade, velocidade de mobilidade social, de
crescimento. Agora não há nada disso. Os sindicalistas subiram e não carregaram a classe
trabalhadora. Não deixa de ser
uma democratização social.
Pessoas que nunca tiveram
nada a ver com o poder estão no
poder. Fazendo algumas bobagens, mas estão lá. Não vejo isso
com olhos negativos. Sou democrata. O Brasil precisa de
mais igualdade. Tem pessoas
que são rudes no manejo, mas...
FOLHA - Lula é um democrata?
FHC - Acho que, basicamente,
sim. Mais ou menos. Ele não
tem muita noção de certas coisas. Fez há pouco uma declaração agradecendo ao povo, que o
elegeu "sem intermediários".
Essa não é uma frase democrática. Ele nem sabe que não é.
Ele pensa que é genuíno, autêntico. Mas ele não é antidemocrático. Ele pode não saber certas coisas, mas não acho que ele
seja uma personalidade anti-institucional, digamos assim.
FOLHA - E o PT?
FHC - O PT é mais antidemocrático, na essência, por causa
da visão originária, do espírito
revolucionário, leninista. Mais
importante é o fim do que os
meios. Mas também é diluído.
Não há PT, existem vários setores. Mas há um núcleo duro que
pensa "pode mudar a Constituição, nunca mais alguém tão
bom quanto nós vai estar lá".
Essa idéia é antidemocrática, é
elitista. É a versão popular da
visão tradicional do que é o
mando arbitrário.
FOLHA - Os escândalos abalaram o
símbolo que o sr. descreveu?
FHC - Lamento que o comportamento do Lula na Presidência, a cada momento, jogue para
baixo o símbolo. O envolvimento, não dele, direto, mas muito
próximo a ele. Essas facilidades, essa visão do poder como
fruição. É ruim, porque esse
símbolo devia ter força, não devia se permitir frouxidão. Isso
de passar a mão na cabeça do
pessoal dele: "Ah, os meninos
são aloprados". Como aloprados? São criminosos.
Esse espírito de companheirismo, esse é o homem cordial
que o Sérgio Buarque de Holanda criticava. É o homem do impulso, não é o homem da regra geral. É contra a democracia.
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