São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 2006

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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

País não tem agenda nem rumo, mas Lula teve sorte

Ex-presidente diz que Brasil cultiva mentalidade avessa ao mercado e defende novo "choque capitalista" contra apego ao estatismo e ao atraso

RENATA LO PRETE
EDITORA DO PAINEL

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Aos 75 anos, o ex-presidente diz que seu sucessor não tinha no primeiro e continua sem agenda para o segundo mandato -tem apenas uma "aspiração geral". Fernando Henrique Cardoso ainda vê Luiz Inácio Lula da Silva como um símbolo das possibilidades democráticas e sociais do país, mas um símbolo hoje maculado por escândalos e diminuído pelo exercício do poder "como fruição". FHC entende os governos do PSDB e do PT como um caso de "concertação por antagonismo", ou seja, de continuidade na economia sob a retórica da ruptura e do confronto. Na entrevista que segue, o sociólogo volta a apontar o apego ao Estado como causa e sintoma do capitalismo atrasado que, segundo ele, precisa ser passado a limpo pelo país.
 

FOLHA - O sr. acha que o presidente Lula estava brincando quando disse que quem é de esquerda depois dos 60 "tem problemas"?
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
- Não foi brincadeira. Foi uma expressão espontânea para um sentimento que é popular. As pessoas dizem: "quando fica mais velho, toma juízo". O Lula disse o que sente sobre a própria trajetória: ficou mais perto do que ele chama de centro. Mas é curioso que o centro, para ele, seja o Delfim Netto.

FOLHA - Por quê?
FHC
- Porque o Delfim, para quem lutou contra o regime militar, é simbólico. Ainda mais simbólico para quem lutou contra o arrocho salarial. Não estou acusando o Delfim. Parece-me apenas que o Lula baixou demais a guarda.

FOLHA - O sr. acha que a política brasileira é definida por acordos entre forças vistas como avançadas e outras vistas como atrasadas?
FHC
- Sim. Somos um país desigual do ponto de vista econômico e injusto do ponto de vista social. Isso coloca um desafio para quem governa. O setor mais progressista, sintonizado com as formações democráticas e com os avanços da economia, é geralmente minoritário. Mas o problema é outro. É ter ou não capacidade de, ao fazer a aliança, imprimir um rumo. Lula perdeu o rumo. Antes de os escândalos virem a público, já se via que a agenda no Congresso não era renovadora.

FOLHA - O sr. vê alguma mudança substantiva em relação à montagem do segundo mandato?
FHC
- Estamos de novo botando o carro antes dos bois. Qual é a proposta? Qual é a agenda? Não está claro. Sem isso, como é que se faz um acordo? Com cargos, com posições nos ministérios. Mas vai fazer o quê? Não se discutiu até agora. Discutiu-se uma vaga aspiração de 5% de crescimento na economia. Se você quer 5%, melhor querer logo 10%. Isso não é agenda. Isso é aspiração geral.

FOLHA - E o pacote econômico, que teve seu anúncio adiado...
FHC
- Pois é. Que pacote é esse? Nem o governo sabe. A aliança não foi feita para esse pacote.

FOLHA - Por que nenhum de seus aliados defendeu na campanha as privatizações de seu governo?
FHC
- Durante anos o PT bateu na tecla de que a privatização era contra o interesse nacional e que houve "privataria", bandalheira. Isso foi repetido, e não reagimos corretamente.

FOLHA - Por quê?
FHC
- Não fizemos a revisão das nossas posições político-ideológicas. Continuamos funcionando na mentirinha, como se fosse possível ter, no mundo moderno, um Estado que se ocupe de tudo o que é investimento produtivo. Como se bom mesmo fosse o capitalismo estatal ou o socialismo estatizante. Esse modelo de Estado onipresente é ainda a ideologia média. As pessoas preferem o Estado ao mercado. Todos. No fundo, nossa ideologia básica, embora não explicitada, é que bom mesmo é uma sociedade igualitária, sem mercado, bancos, juros, onde só tenha Estado. É não-capitalista.

FOLHA - Isso é mais PT ou PSDB?
FHC
- É mais evidente no PT, mas quando o PT critica o PSDB, calamos a boca. É preciso retomar o discurso feito pelo Mário Covas de 1989, o do "choque de capitalismo". As pessoas preferem um capitalismo atrasado a um capitalismo avançado -e pensam que é por serem de esquerda. Não se dão conta de que a esquerda não está em jogo aí.

FOLHA - O país pode crescer de forma expressiva com a combinação de juros altos e câmbio apreciado?
FHC
- A questão do câmbio é delicada. O governo tem poucos instrumentos. Vai fazer com que o Banco Central compre mais reservas? Aumenta a dívida. Vai fixar o câmbio e ser, de novo, submetido a pressões especulativas? Não vejo como. Seria melhor um câmbio com menos valorização, mas como você chega lá? Aumenta a importação? Afeta a indústria. Talvez pudesse ter sido melhor e não chegar a esse ponto, mas qual é o instrumento que você tem? Tem que aumentar a produtividade. Crescimento é isso: investimento com aumento de produtividade. E essa produtividade tem que ser não só física, mas humana -e aí entra, por exemplo, a educação.

FOLHA - O Lula está num ponto do caminho que o sr. já viveu. Daqui em diante, para onde ele vai?
FHC
- Sempre ganhei no primeiro turno, o Lula nunca. Mas o importante é que ganhou. Agora, ninguém sabe o que vai acontecer. O Lula teve mais sorte do que eu. Pegou um vento favorável. Eu peguei contra na situação internacional. E o momento da reeleição foi o pior. Isso não ocorre agora. Não tem problema externo. A questão do segundo mandato é política. Como não tem mais reeleição, a partir do segundo ano todo mundo começa a olhar para a frente.

FOLHA - No petismo, há quem opine reservadamente que não seria absurdo mudar a Constituição para permitir outra reeleição...
FHC
- No Brasil isso é inviável. Haveria uma oposição muito forte. É possível que o pensamento não democrático exista em alguns setores, mas não acredito que o Lula entre nisso. Não o vejo dessa maneira. Ele gosta do poder. Tudo bem, eu também gosto. Mas o Lula é conservador. Isso implicaria quebrar lanças.

FOLHA - E o exemplo venezuelano?
FHC
- O Chávez é um militar. Ele salta as instituições e vai direto às massas. O Lula é um líder sindical, ele mais negocia do que quebra. Setores do PT podem até sonhar com isso. Mas acho que as instituições brasileiras são mais sólidas do que em outros países. Na Argentina, o Menem tentou, mas não conseguiu. Não é fácil.

FOLHA - Resultados eleitorais recentes na América do Sul vão na contramão da agenda que estava em vigor na região quando o sr. foi presidente. O que que aconteceu?
FHC
- No que diz respeito ao modelo econômico, não houve mudança. Houve paralisação, não alteração. Chávez não propõe nenhum modelo. O Peru não mudou nada, Colômbia não mudou nada, Argentina tampouco, Uruguai tampouco.

FOLHA - Houve no mínimo uma mudança no perfil dos governantes.
FHC
- Isso sim. O que aconteceu foi o seguinte...

FOLHA - A América profunda...
FHC
- É um pouco isso, e um pouco também que esses governos se esgotaram no passado. O governo da Venezuela se esgotou. O Chávez é conseqüência do esgotamento do sistema anterior, um sistema que não produziu resultados para o povo, que se desmoralizou. Na Argentina também. Houve, em larga medida, um cansaço. O Menem, no auge do seu neoliberalismo, era popular. A perda de popularidade veio depois, quando o sistema mostrou sua incompetência para gerenciar as questões sociais. Agora, raciocine pelo outro lado: qual é o país que conseguiu manter um modelo econômico de eficiência e melhorar a situação social? O Chile. A redução da pobreza lá é grande. A melhoria da educação é notável. Mas o Chile é assim fazendo reformas, mantendo uma coerência. Não acho que se deva julgar em bloco um vendaval da América Latina.

FOLHA - Nesse quadro, qual é a especificidade do caso brasileiro?
FHC
- É curioso. Houve continuidade no setor econômico, apesar da retórica. É como se tivesse uma concertação por antagonismo. É uma questão política, outra vez. E aí o PT teve a virtude de convencer o país de que precisava mudar tudo. Não mudou nada, mas convenceu de que precisava mudar tudo. A política tem sua autonomia. Ela não depende só dos condicionantes econômicos e sociais.

FOLHA - O que caracteriza o Lula?
FHC
- Primeiro, simbolicamente, o fato de uma pessoa nordestina, pobre, de origem sindical ter chegado à Presidência. Isso é importante para o Brasil. Acho que esse lado simbólico é uma janela de democracia. Em segundo lugar, o que sobreviveu disso foi o sindicalismo. Quem está no governo hoje? Sindicalistas. Não são os ideológicos do PT. Não é a esquerda católica. Uma boa parte, aliás, foi embora do PT. Ficou o sindicalismo. Não é peronismo nem getulismo. Quando Perón e Getúlio puseram para dentro os sindicatos, havia mudanças muito grandes na sociedade, velocidade de mobilidade social, de crescimento. Agora não há nada disso. Os sindicalistas subiram e não carregaram a classe trabalhadora. Não deixa de ser uma democratização social. Pessoas que nunca tiveram nada a ver com o poder estão no poder. Fazendo algumas bobagens, mas estão lá. Não vejo isso com olhos negativos. Sou democrata. O Brasil precisa de mais igualdade. Tem pessoas que são rudes no manejo, mas...

FOLHA - Lula é um democrata?
FHC
- Acho que, basicamente, sim. Mais ou menos. Ele não tem muita noção de certas coisas. Fez há pouco uma declaração agradecendo ao povo, que o elegeu "sem intermediários". Essa não é uma frase democrática. Ele nem sabe que não é. Ele pensa que é genuíno, autêntico. Mas ele não é antidemocrático. Ele pode não saber certas coisas, mas não acho que ele seja uma personalidade anti-institucional, digamos assim.

FOLHA - E o PT?
FHC
- O PT é mais antidemocrático, na essência, por causa da visão originária, do espírito revolucionário, leninista. Mais importante é o fim do que os meios. Mas também é diluído. Não há PT, existem vários setores. Mas há um núcleo duro que pensa "pode mudar a Constituição, nunca mais alguém tão bom quanto nós vai estar lá". Essa idéia é antidemocrática, é elitista. É a versão popular da visão tradicional do que é o mando arbitrário.

FOLHA - Os escândalos abalaram o símbolo que o sr. descreveu?
FHC
- Lamento que o comportamento do Lula na Presidência, a cada momento, jogue para baixo o símbolo. O envolvimento, não dele, direto, mas muito próximo a ele. Essas facilidades, essa visão do poder como fruição. É ruim, porque esse símbolo devia ter força, não devia se permitir frouxidão. Isso de passar a mão na cabeça do pessoal dele: "Ah, os meninos são aloprados". Como aloprados? São criminosos.
Esse espírito de companheirismo, esse é o homem cordial que o Sérgio Buarque de Holanda criticava. É o homem do impulso, não é o homem da regra geral. É contra a democracia.


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