São Paulo, segunda-feira, 25 de junho de 2007

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Entrevista da 2ª

JOSÉ CARLOS DIAS

PF precisa ser controlada para não cometer excessos

Segundo o ex-ministro da Justiça, pressão pública e postura da mídia ajudam a incitar ações espalhafatosas da Polícia Federal e violências ao direito de defesa

Lula Marques - 16.abr.2007/Folha Imagem e Eduardo Knapp - 13.jun.2007/Folha Imagem
Carreta leva carros dos presos pela Operação Hurricane, da PF; (ao lado), José Carlos Dias


MALU DELGADO
EDITORA-ASSISTENTE DE BRASIL

O ESTADO BRASILEIRO ESTÁ TODO CARCOMIDO." O frio e desalentador diagnóstico é feito por José Carlos Dias, 68, ministro da Justiça durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Em entrevista concedida à Folha em seu escritório de advocacia, em São Paulo, ele analisa o impacto das ações da Polícia Federal.

O especialista em Direito Penal, que não se cansa de protestar contra o "direito de outdoor", prega a necessidade de controle da PF, acrescentando que não se trata de cerceamento político de investigações.
"Investigar o crime é tão importante quanto garantir direitos." Ao atual ministro da Justiça, Tarso Genro (PT-RS), o ex-titular da pasta faz alertas: ministro da Justiça tem que agir com firmeza. José Carlos Dias recusa, ainda, a tese de que a PF tem maior autonomia no governo Lula que no governo FHC. "A PF praticou ações importantes [no governo FHC], mas sem o espalhafato de hoje."
Com a mesma sinceridade com que admite as mazelas do Judiciário, Dias critica o que chama de relação espúria entre polícia e mídia. "Transcrição de fita ilegal é crime, e os jornais vão fazendo, e isso vai sendo aceito, porque ninguém gosta de ir contra o jornal."

 

FOLHA - A imagem do Judiciário foi abalada com recentes operações da Polícia Federal -a Hurricane e a Têmis. Que conseqüências isso pode trazer a um país como o Brasil, com sérios problemas de corrupção?
JOSÉ CARLOS DIAS -
Eu fico muito contente de saber que a impunidade não se estende aos juízes. O que está causando espanto é que de repente aparecem investigações que envolvem membros do Judiciário. Isso não significa que não existia antes. Acontece que agora é que está aparecendo. O que vejo de mais importante é a postura e a firmeza do Supremo Tribunal Federal, e o equilíbrio que os ministros estão assumindo.
O grande risco é que, por pressão da opinião pública, começamos a verificar violências ao direito de defesa, apresentando uma Justiça escandalosa. No Brasil existe uma coisa chamada pena de algemas. A pessoa é condenada a usar algema toda vez que é transportada de um lado para o outro, mesmo que não ofereça risco.
Eu me lembro de quando o PC Farias chegou algemado, aquilo foi um sucesso. Quando o Maluf se apresentou à prisão -e ele se apresentou à prisão-, ele foi algemado. São absurdos, exageros que precisamos combater. A presunção de inocência vem sendo conspurcada.

FOLHA - Por que a corrupção no Judiciário não aparecia antes?
DIAS -
Acho que foram revelados agora fatos envolvendo juízes, desembargadores, ministro. Isso aconteceu há pouco tempo aqui em São Paulo, com a Operação Anaconda, e agora apareceu novamente. É positivo. Meu medo são os exageros. Você começa a ver o risco que tem de ter a sua vida devassada. Se você recebe o telefonema de alguém que está sendo investigado, você entra no sistema e os seus telefonemas também começam a ser grampeados. E aí aparece tudo, conversas sentimentais, afetivas, confidências. Justiça se faça: eles não estão usando isso nos processos. Mas, veladamente, muitas vezes isso é colocado como moeda de barganha.

FOLHA - Essa sensação de que as investigações contra a corrupção não têm mais fronteira, atingindo até mesmo o Judiciário, vem da maturação normal do trabalho da PF?
DIAS -
Tenho 40 anos de advocacia; quando eu comecei, era raríssimo ouvir histórias de um juiz corrupto. Era exceção. Principalmente em São Paulo.

FOLHA - O que seria a causa deste aumento de corrupção?
DIAS -
Eu tenho a impressão que talvez a proliferação das faculdades de Direito, a forma de seleção. Mas, muito mais grave que isso, acho que há um processo geral de degeneração e de impunidade. Todo mundo vê que a corrupção não é punida. E hoje, nós temos a mídia denunciando, a PF. Que não é só agora. Eu me lembro de quando era ministro, eu acompanhava. Só que fazíamos a coisa com menos alarde. Sou contra o que chamo de direito penal de outdoor, aquela coisa de que você coloca com grande espalhafato. É o direito penal do escândalo: a pessoa é presa sempre televisionada.

FOLHA - Abusos jurídicos podem ocorrer em operações da PF?
DIAS -
Muitas vezes os juízes e os tribunais decretam prisões desnecessárias, assinam mandados de busca e apreensão domiciliares ou em escritórios de advocacia de forma abusiva. Eu tenho o maior respeito pelo dr. Paulo Lacerda [diretor-geral da PF]. Mas acontece que as coisas são indomáveis. Embora eu ache que o ministro da Justiça tenha que exercer uma postura de maior firmeza.

FOLHA - É possível controlar a PF? Isso não feriria a autonomia das investigações?
DIAS -
Vou dar um exemplo: o inquérito que resultou no levantamento de toda a corrupção do governo Collor e resultou na ação penal etc. foi instaurado a partir de um despacho dele. Ele deu o despacho para que apurassem as denúncias. A coisa se voltou contra ele, num efeito bumerangue. Tudo isso precisa de prestígio do ministro com a PF, mas pode haver controle para não haver exagero.

FOLHA - Esse controle não seria político, no sentido de conter a investigação?
DIAS -
Não, de jeito nenhum. É para ter noção do que está sendo feito e para evitar excessos quanto à exposição de imagens de pessoas, quanto a atuações que violem a intimidade. O importante é saber que investigar o crime é tão importante quanto garantir direitos.

FOLHA - Quando o sr. era ministro tinha esse controle da PF?
DIAS -
Acho que sim, mas nunca passei por cima da autoridade de nenhum diretor ou delegado. Era feito num nível muito democrático, muito dialogado.

FOLHA - O sr. passava relatos do que era investigado ao presidente da República?
DIAS -
Exatamente. Aliás, eu saí do ministério porque vazou uma operação que a PF iria desencadear e não concordei. Eu transmiti ao presidente. O presidente tem o direito de saber as coisas, e o ministro tem a obrigação de informar. Sobre a questão que envolve o irmão do presidente [Genival Inácio da Silva, listado em investigação da PF], eu acho que tem que haver investigação, sim. Mas acho que houve uma inoportunidade. Essa investigação poderia esperar dez dias.

FOLHA - O sr. é favorável a algum mecanismo para evitar abusos nas operações da PF?
DIAS -
Sou. Acho que isso dá até mais força para a PF. Preso não pode ser filmado nem fotografado. Só se ele quiser, mas nunca em situação humilhante. É o mínimo que se pode fazer a quem não foi julgado.

FOLHA - Como membro do governo FHC, como o sr. responde à avaliação política de que a PF não agia antes como agora?
DIAS -
Quando assumi o ministério, a PF estava numa situação muito ruim, já de governos passados. A PF foi muito preparada no governo Fernando Henrique e praticou ações importantes, só que sem o espalhafato que está havendo hoje.

FOLHA - O sr. então não associa o volume das ações e o fato de alcançarem as cúpulas do Judiciário, do Legislativo e do Executivo a nenhum sinal de que temos um novo momento de democracia no país?
DIAS -
Não. Não existe categoria mais feliz no atual governo que os banqueiros. Nunca tiveram tanto lucro como agora no governo Lula. Destoa da visão de que ele estaria fazendo uma revolução branca.

FOLHA - Em relação às escutas telefônicas, como o sr. acha que elas poderiam ser regulamentadas?
DIAS -
Deveriam existir, mas em caráter excepcional. E precisa haver um controle judicial de uma forma muito exemplar. O juiz tem que contar com peritos de sua absoluta confiança para avaliar a necessidade e o método escolhido. Eu já vi casos em que evidentemente houve edição.

FOLHA - O sr. vê possibilidades concretas de avanços com a fase final da reforma do Judiciário?
DIAS -
Eu vejo que o Conselho Nacional de Justiça foi um avanço. Eu, que durante muito tempo resisti à súmula vinculante, cedo a isso: não é o ideal e pode haver riscos, mas o Supremo não pode ficar numa mesmice repetindo julgamentos. A questão não pode ser discutida apenas pelos que lidam com ela. A sociedade tem que participar dessa discussão e encontrar caminhos. O acesso, por exemplo. A União tem uma Defensoria Pública muito pequenininha. E precisa aprimorar a polícia. Onde se viu delegado ganhando pouco? Sou muito descrente, pois o Estado brasileiro está todo carcomido.

FOLHA - Gostaria da opinião do sr. sobre a relação polícia-mídia.
DIAS -
A polícia se sustenta muito na mídia, e a mídia aceita esse papel de estímulo a violências. Tenho uma posição dura: sou contra a transcrição de uma fita ilegal. Isso é crime. Os jornais vão fazendo, e isso vai sendo aceito, porque ninguém gosta de ir contra o jornal.


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