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ENTREVISTA DA 2ª
RICARDO CARVALHO
Presidente da Anfavea diz que setor automobilístico vive pior crise dos últimos dez anos, com ociosidade de 44%
'A saída de uma montadora custa tanto quanto a entrada'
CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL
O setor automobilístico enfrenta a pior crise dos últimos dez
anos, com um nível de produção
44% inferior ao potencial do parque industrial das montadoras e
uma competição quase predatória entre as empresas, avalia Ricardo Carvalho, diretor jurídico
da Volkswagen e presidente da
Anfavea (Associação Nacional
dos Fabricantes de Veículos Automotores), entidade que congrega os dez fabricantes de carros
instalados na país, além de produtores de caminhões, ônibus e máquinas agrícolas.
Depois de investir US$ 27 bilhões entre 1994 e 2001, as montadoras e os fabricantes de autopeças viram todas as suas previsões
de vendas se desmancharem.
Com capacidade de produção de
3,2 milhões de veículos/ano, o setor fabricou no ano passado 1,8
milhão de carros, número que deve se repetir em 2003. Entre os investimentos e a realidade atual,
estão as sucessivas crises internacionais que chacoalharam a economia brasileira a partir de 1997.
Carvalho observa que a concorrência não tem levado a aumento
do mercado e gerou apenas oscilações no ranking das montadoras. "No conjunto, nós somos um
setor em crise, talvez a pior dos últimos dez anos." A seguir, os principais trechos da entrevista.
Folha - O que vai acontecer na indústria automobilística depois de
30 de novembro, quando acaba o
programa de redução do IPI?
Ricardo Carvalho - Esse programa de redução temporária do IPI
é uma ponte, uma passagem, para
talvez atingirmos melhores condições na nossa economia no último trimestre do ano. Há uma expectativa do setor, e de toda a indústria, que essa situação venha a
melhorar no último trimestre. O
acesso a crédito é algo muito importante para um setor que tem
cerca de 70% de suas vendas financiadas. Esse plano emergencial só cobre um período.
A redução está surtindo efeito?
Carvalho - É difícil apurar agora,
porque é muito cedo. Nós vamos
conseguir ter uma medição clara
no final de setembro.
Folha - O setor automobilístico é
um dos que mais recebem subsídios do Estado. Dados da Receita
indicam que as reduções de tributos federais atingiram R$ 3,6 bilhões nos últimos seis anos. Mesmo
assim, a indústria automobilística
está em dificuldade. Esse não é um
sinal de que algo está errado?
Carvalho - Acho que qualquer
renúncia que tenha ocorrido por
parte do governo federal não pode ser chamada de subsídio em
um setor que tem carga tributária
direta em torno de 33%, que é um
número extremamente elevado
-a França, que
está em segundo
lugar, tem 17%.
Na verdade foram reduções,
por tempo indeterminado ou
temporárias.
Se nós falarmos
das montadoras
hoje em relação à
estrutura existente, de fato nós temos um problema. O aspecto estrutural merece
uma análise mais
aprofundada,
que espero que
possa ser feita no
fórum de competitividade que foi
instalado pelo
ministro (Luiz
Fernando) Furlan (Desenvolvimento).
Em um setor que tem ociosidade de 44%, essa reflexão precisa
ser feita com muito cuidado. Nós
temos um parque automotivo
que é exportador e gera um superávit comercial importante para o
país. Porém em termos de mercado interno nós estamos com uma
tremenda defasagem. Estamos
com produção para o mercado
interno próxima de 1,3 milhão de
veículos/ano e temos capacidade
instalada de 3,2 milhões/ano.
As exportações giram em torno
de 15% do que produzimos, mas
isso é pouco para compensar o
mercado interno. Qualquer empresa instalada aqui precisa de
mercado interno forte, para complementar com exportação.
Folha - A que o sr. se refere quando fala de aspecto estrutural?
Carvalho - Nós temos hoje um
parque que compreende 50 fábricas de automóveis, carros comerciais leves, caminhões, ônibus,
máquinas agrícolas e tratores. É
um parque que foi instalado muito fortemente de 96 para cá. Isso
porque nós vínhamos em um
crescendo em 95, 96 e 97, quando
chegamos a um mercado interno
de 2,2 milhões de veículos.
Era fácil imaginar que o mercado poderia atingir 2,5 milhões ou
2,6 milhões de veículos/ano. Junto com exportações, poderíamos
atingir 2,8 ou 2,9 milhões. Essa foi
a aposta feita pelas montadoras e
pelo parque de autopeças que
veio conosco. Somados, foram investimentos de US$ 27 bilhões.
Infelizmente, tivemos a partir de 97
uma série de crises, na
maior parte internacionais. Com isso, não
se confirmou a expectativa de ter no Brasil
um parque automotivo competitivo em
termos de volume. E
os investimentos estão sem retorno.
Folha - A aposta foi
equivocada?
Carvalho - Não digo
equivocada, porque
os fatos que vieram,
como crise na Rússia,
no México, na Argentina, a variação cambial aqui, tudo isso
mexeu muito com o
consumidor. Ao mesmo tempo, o consumidor está com uma perda de
15% no seu poder aquisitivo. São
dados totalmente fora do nosso
controle. Tínhamos uma expectativa diferente, que vinha se confirmando ano a ano, até 97.
O lado bom dessa moeda é que
temos um parque muito moderno. As marcas tradicionais estão
instaladas aqui com linhas de primeira qualidade.
Folha - Como se resolve a crise?
Carvalho - Quando a economia
gera insegurança, nós sofremos
de imediato o resultado. Se nós tivermos melhora nesse campo,
nós vamos reagir com igual velocidade com que caímos. O mercado tem potencial. O Brasil tem 1
carro para cada 9 habitantes. Na
Argentina, a relação é de 1 para 5
habitantes. Só que, com queda da
renda e restrições a crédito, o
mercado está estagnado há algum
tempo. Não é um problema do
governo atual. Os prejuízos se arrastam há quatro ou cinco anos.
Folha - Não faltou às montadoras
uma estratégia mais agressiva de
exportações, principalmente para
países como a China, que se enquadram na vocação brasileira de veículos populares e médios?
Carvalho - Não. As montadoras,
depois de modernizados os parques todos, estão sendo extremamente agressivas em exportações.
Temos montadoras que superam
os 20% de sua produção em exportações. O ideal é ter uma média de 30%. Nós não ficamos na
dependência dos acordos de governo. Hoje o Brasil exporta para
China, Rússia, África do Sul, Europa e acredito que temos um
grande campo no Leste Europeu.
A grande expectativa é com o
acordo Mercosul-União Européia, que esperamos que seja finalizado até o fim de 2004.
Folha - Mas a exportação ainda é
de 15%, metade da meta de 30%.
Carvalho - Sim, mas a maior parte do esforço exportador se deve
ao setor privado.
Folha - Não há um conflito entre a
estratégia de exportação das montadoras que estão no Brasil e a estratégia global das empresas?
Carvalho - Em regra, essas montadoras são transnacionais. Elas
trabalham com situações que ofereçam maior vantagem em termos de preço e retorno de investimentos. Existe um grande investimento dessas empresas neste
país. O dólar em torno dos R$ 3,00
torna o nosso setor bastante competitivo em relação ao exterior.
Folha - Há analistas que consideram inevitável a saída de alguma
montadora do país, porque não haveria como o mercado absorver o
volume potencial de produção.
Carvalho - As montadoras já reduziram seus níveis de produção,
estão trabalhando com os mecanismos de que dispõem de férias
coletivas, de semanas reduzidas, e
algumas já deflagraram informações em relação à estrutura de
pessoal. Ou seja, elas tentam se
acomodar ao que o mercado está
oferecendo. Evidentemente, uma
saída de montadora é tão custosa
quanto uma entrada de montadora. Isso custa muito dinheiro.
Nós não temos na associação
nenhuma informação de montadora que deva deixar o país. Eu
acredito que a expectativa de todas é que haja um retorno dos investimentos realizados. Ele não
veio na velocidade esperada. Mas
creio que elas vão dar um tempo
na expectativa de que o crescimento do país venha.
É um setor importante, de ponta, gerador de um volume de impostos muito elevados, de R$ 10
bilhões ao ano, e é algo que devemos preservar. Nós temos uma
competição muito forte com o
México para sermos a plataforma
exportadora da América Latina.
Folha - Qual é o cenário ideal para
essa indústria no Brasil?
Carvalho - Não sei em quanto
tempo nós vamos conseguir, mas
o ideal é termos um mercado interno de 2,3 milhões, 2,4 milhões
de veículos/ano e complementar
o restante com exportações. Imagino que teremos melhora significativa para a indústria no fim do
ano. Agora, o prazo para chegar
aos números ideais dependerá do
ritmo de reação da economia.
Folha - As montadoras divulgam
resultados aqui no Brasil?
Carvalho - Não. A maioria delas
é limitada, portanto não tem obrigação de divulgar balanço.
Folha - Então, não sabemos qual
é o lucro ou prejuízo das empresas?
Carvalho - Como legalmente elas
têm essa reserva, a informação
que se tem é a que está disponível
na imprensa, quando há um pronunciamento oficial da empresa.
Mas nós vivemos um momento
na indústria automotiva de intensa competição, às vezes predatória, com promoções bastante
agressivas. Se pegarmos os últimos 18 meses, os aumentos de
preços da indústria ficaram em
torno de 28%, o que está muito
abaixo da alta de insumos como o
aço, que foi de 58%. Mas, desses
28%, o que de fato foi repassado
para o consumidor foi 17%.
A não-divulgação dos resultados faz parte dessa competição.
Eles sabidamente são vermelhos,
mas não se tem acesso aos dados.
Folha - Os dados de produção indicam que está havendo mudanças
no ranking das empresas, com a
Volkswagen indo para o terceiro
lugar e a GM para o primeiro, além
de crescimento das japonesas. Espera-se mais mexidas no setor?
Carvalho - Essa oscilação de liderança tem ocorrido, mas infelizmente o tamanho do mercado fica o mesmo. As oscilações têm
ocorrido em cima da competição
interna, em cima de preço, de
promoções. Há variações entre as
montadoras mais tradicionais,
mas essas mudanças de posições
não têm acarretado aumento do
mercado. No conjunto nós somos
um setor em crise, talvez a pior
dos últimos dez anos.
Folha - Quanto a economia tem
de crescer para que se chegue a um
cenário satisfatório para o setor?
Carvalho - Nos primeiros seis,
sete meses, o governo foi cauteloso e trabalhou principalmente o
combate à inflação. Esses resultados vieram rapidamente. Mas a
retomada de crescimento deveria
ter vindo com velocidade um
pouco maior no que tange à queda de juros. Estamos em um período em que as empresas estão
esgotando seus recursos em termos de férias coletivas, acordos com
suas bases sindicais
para acomodar o
pessoal, mas a nossa grande ansiedade é que a retomada
de crescimento venha o quanto antes.
Nós entendemos
que ela virá no terceiro trimestre. A
minha grande torcida é que cheguemos a crescimento
de 4%, 5% em 2004.
Folha - O sr. está
otimista. A maioria
dos analistas aposta
em um número próximo de 3%.
Carvalho - Não sei
se é otimismo exagerado. Nós estamos com uma reforma da Previdência muito bem encaminhada,
e esse é um sinal importante, de
reforma estrutural. Se a isso se somar uma reforma tributária, nós
temos sinais muito importantes.
Folha - O sr. falou que o setor está
esgotando as alternativas que tem,
como férias coletivas, redução da
jornada de trabalho. Isso significa
que haverá demissões?
Carvalho - Nós temos um projeto-ponte, que é a redução do IPI,
até novembro. Nesse período, não
pode haver demissões. Nós esperamos que ao fim desse período
ocorra uma retomada de crescimento, com melhores condições
de acesso a crédito. Se isso vier,
vamos ter mais produção, mais
venda e será possível acomodar as
pessoas. Se não vier, nós vamos
estar realmente em uma situação
complicada, na qual cada montadora vai tomar sua decisão.
Folha - O nível que o setor considera razoável de tributação é qual?
Carvalho - Para mim, quanto mais
baixo, melhor. Não sei se vamos
conseguir um dia chegar a um nível da França, que tem a segunda
maior carga, com 17%. O Brasil é
o campeão mundial, com 33%.
O debate tem de estar voltado
para a sustentabilidade do setor.
Se não houver sustentabilidade,
nada faz sentido. E, para consegui-la, a alavanca principal é o
crescimento. Mas, paralelamente,
há um debate sobre como aprimorar a estrutura do setor.
Hoje, o setor gera em impostos
R$ 10 bilhões por ano. E as montadoras são as concentradoras desses
recolhimentos. Somos o substituto
tributário de praticamente toda a cadeia. O IPI, o ICMS
e o PIS-Cofins são
recolhidos pelas
montadoras. O governo federal tem
uma tremenda vantagem com essa estrutura.
Folha - Quando foi
dada a redução do
IPI, no início de
agosto, houve muitas críticas à concessão de incentivos
que beneficiariam a
classe média e grandes empresas. Essa é
uma opção legítima
em um país como o Brasil?
Carvalho - Esse é um viés equivocado. Imagina-se sempre a
concessão de benefícios para
montadoras transnacionais. Mas
a montadora é uma célula, que está vinculada a vários outros elementos. Estamos falando de uma
cadeia inteira, de um setor que gera R$ 10 bilhões em tributos, engloba 200 mil empresas e emprega 1,3 milhão de pessoas. Quando
há algum tipo de redução tributária que é repassada com o intuito
de movimentar mercado, uma série de outros atores é beneficiada.
É algo que é repassado, vai ao
consumidor final e tende a girar
essa roda toda.
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