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São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

RICARDO CARVALHO

Presidente da Anfavea diz que setor automobilístico vive pior crise dos últimos dez anos, com ociosidade de 44%

'A saída de uma montadora custa tanto quanto a entrada'

CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL

O setor automobilístico enfrenta a pior crise dos últimos dez anos, com um nível de produção 44% inferior ao potencial do parque industrial das montadoras e uma competição quase predatória entre as empresas, avalia Ricardo Carvalho, diretor jurídico da Volkswagen e presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), entidade que congrega os dez fabricantes de carros instalados na país, além de produtores de caminhões, ônibus e máquinas agrícolas.
Depois de investir US$ 27 bilhões entre 1994 e 2001, as montadoras e os fabricantes de autopeças viram todas as suas previsões de vendas se desmancharem. Com capacidade de produção de 3,2 milhões de veículos/ano, o setor fabricou no ano passado 1,8 milhão de carros, número que deve se repetir em 2003. Entre os investimentos e a realidade atual, estão as sucessivas crises internacionais que chacoalharam a economia brasileira a partir de 1997.
Carvalho observa que a concorrência não tem levado a aumento do mercado e gerou apenas oscilações no ranking das montadoras. "No conjunto, nós somos um setor em crise, talvez a pior dos últimos dez anos." A seguir, os principais trechos da entrevista.

Folha - O que vai acontecer na indústria automobilística depois de 30 de novembro, quando acaba o programa de redução do IPI?
Ricardo Carvalho -
Esse programa de redução temporária do IPI é uma ponte, uma passagem, para talvez atingirmos melhores condições na nossa economia no último trimestre do ano. Há uma expectativa do setor, e de toda a indústria, que essa situação venha a melhorar no último trimestre. O acesso a crédito é algo muito importante para um setor que tem cerca de 70% de suas vendas financiadas. Esse plano emergencial só cobre um período.

A redução está surtindo efeito?
Carvalho -
É difícil apurar agora, porque é muito cedo. Nós vamos conseguir ter uma medição clara no final de setembro.

Folha - O setor automobilístico é um dos que mais recebem subsídios do Estado. Dados da Receita indicam que as reduções de tributos federais atingiram R$ 3,6 bilhões nos últimos seis anos. Mesmo assim, a indústria automobilística está em dificuldade. Esse não é um sinal de que algo está errado?
Carvalho -
Acho que qualquer renúncia que tenha ocorrido por parte do governo federal não pode ser chamada de subsídio em um setor que tem carga tributária direta em torno de 33%, que é um número extremamente elevado -a França, que está em segundo lugar, tem 17%. Na verdade foram reduções, por tempo indeterminado ou temporárias.
Se nós falarmos das montadoras hoje em relação à estrutura existente, de fato nós temos um problema. O aspecto estrutural merece uma análise mais aprofundada, que espero que possa ser feita no fórum de competitividade que foi instalado pelo ministro (Luiz Fernando) Furlan (Desenvolvimento).
Em um setor que tem ociosidade de 44%, essa reflexão precisa ser feita com muito cuidado. Nós temos um parque automotivo que é exportador e gera um superávit comercial importante para o país. Porém em termos de mercado interno nós estamos com uma tremenda defasagem. Estamos com produção para o mercado interno próxima de 1,3 milhão de veículos/ano e temos capacidade instalada de 3,2 milhões/ano.
As exportações giram em torno de 15% do que produzimos, mas isso é pouco para compensar o mercado interno. Qualquer empresa instalada aqui precisa de mercado interno forte, para complementar com exportação.

Folha - A que o sr. se refere quando fala de aspecto estrutural?
Carvalho -
Nós temos hoje um parque que compreende 50 fábricas de automóveis, carros comerciais leves, caminhões, ônibus, máquinas agrícolas e tratores. É um parque que foi instalado muito fortemente de 96 para cá. Isso porque nós vínhamos em um crescendo em 95, 96 e 97, quando chegamos a um mercado interno de 2,2 milhões de veículos.
Era fácil imaginar que o mercado poderia atingir 2,5 milhões ou 2,6 milhões de veículos/ano. Junto com exportações, poderíamos atingir 2,8 ou 2,9 milhões. Essa foi a aposta feita pelas montadoras e pelo parque de autopeças que veio conosco. Somados, foram investimentos de US$ 27 bilhões.
Infelizmente, tivemos a partir de 97 uma série de crises, na maior parte internacionais. Com isso, não se confirmou a expectativa de ter no Brasil um parque automotivo competitivo em termos de volume. E os investimentos estão sem retorno.

Folha - A aposta foi equivocada?
Carvalho -
Não digo equivocada, porque os fatos que vieram, como crise na Rússia, no México, na Argentina, a variação cambial aqui, tudo isso mexeu muito com o consumidor. Ao mesmo tempo, o consumidor está com uma perda de 15% no seu poder aquisitivo. São dados totalmente fora do nosso controle. Tínhamos uma expectativa diferente, que vinha se confirmando ano a ano, até 97.
O lado bom dessa moeda é que temos um parque muito moderno. As marcas tradicionais estão instaladas aqui com linhas de primeira qualidade.

Folha - Como se resolve a crise?
Carvalho -
Quando a economia gera insegurança, nós sofremos de imediato o resultado. Se nós tivermos melhora nesse campo, nós vamos reagir com igual velocidade com que caímos. O mercado tem potencial. O Brasil tem 1 carro para cada 9 habitantes. Na Argentina, a relação é de 1 para 5 habitantes. Só que, com queda da renda e restrições a crédito, o mercado está estagnado há algum tempo. Não é um problema do governo atual. Os prejuízos se arrastam há quatro ou cinco anos.

Folha - Não faltou às montadoras uma estratégia mais agressiva de exportações, principalmente para países como a China, que se enquadram na vocação brasileira de veículos populares e médios?
Carvalho -
Não. As montadoras, depois de modernizados os parques todos, estão sendo extremamente agressivas em exportações. Temos montadoras que superam os 20% de sua produção em exportações. O ideal é ter uma média de 30%. Nós não ficamos na dependência dos acordos de governo. Hoje o Brasil exporta para China, Rússia, África do Sul, Europa e acredito que temos um grande campo no Leste Europeu. A grande expectativa é com o acordo Mercosul-União Européia, que esperamos que seja finalizado até o fim de 2004.

Folha - Mas a exportação ainda é de 15%, metade da meta de 30%.
Carvalho -
Sim, mas a maior parte do esforço exportador se deve ao setor privado.

Folha - Não há um conflito entre a estratégia de exportação das montadoras que estão no Brasil e a estratégia global das empresas?
Carvalho -
Em regra, essas montadoras são transnacionais. Elas trabalham com situações que ofereçam maior vantagem em termos de preço e retorno de investimentos. Existe um grande investimento dessas empresas neste país. O dólar em torno dos R$ 3,00 torna o nosso setor bastante competitivo em relação ao exterior.

Folha - Há analistas que consideram inevitável a saída de alguma montadora do país, porque não haveria como o mercado absorver o volume potencial de produção.
Carvalho -
As montadoras já reduziram seus níveis de produção, estão trabalhando com os mecanismos de que dispõem de férias coletivas, de semanas reduzidas, e algumas já deflagraram informações em relação à estrutura de pessoal. Ou seja, elas tentam se acomodar ao que o mercado está oferecendo. Evidentemente, uma saída de montadora é tão custosa quanto uma entrada de montadora. Isso custa muito dinheiro.
Nós não temos na associação nenhuma informação de montadora que deva deixar o país. Eu acredito que a expectativa de todas é que haja um retorno dos investimentos realizados. Ele não veio na velocidade esperada. Mas creio que elas vão dar um tempo na expectativa de que o crescimento do país venha.
É um setor importante, de ponta, gerador de um volume de impostos muito elevados, de R$ 10 bilhões ao ano, e é algo que devemos preservar. Nós temos uma competição muito forte com o México para sermos a plataforma exportadora da América Latina.

Folha - Qual é o cenário ideal para essa indústria no Brasil?
Carvalho -
Não sei em quanto tempo nós vamos conseguir, mas o ideal é termos um mercado interno de 2,3 milhões, 2,4 milhões de veículos/ano e complementar o restante com exportações. Imagino que teremos melhora significativa para a indústria no fim do ano. Agora, o prazo para chegar aos números ideais dependerá do ritmo de reação da economia.

Folha - As montadoras divulgam resultados aqui no Brasil?
Carvalho -
Não. A maioria delas é limitada, portanto não tem obrigação de divulgar balanço.

Folha - Então, não sabemos qual é o lucro ou prejuízo das empresas?
Carvalho -
Como legalmente elas têm essa reserva, a informação que se tem é a que está disponível na imprensa, quando há um pronunciamento oficial da empresa. Mas nós vivemos um momento na indústria automotiva de intensa competição, às vezes predatória, com promoções bastante agressivas. Se pegarmos os últimos 18 meses, os aumentos de preços da indústria ficaram em torno de 28%, o que está muito abaixo da alta de insumos como o aço, que foi de 58%. Mas, desses 28%, o que de fato foi repassado para o consumidor foi 17%.
A não-divulgação dos resultados faz parte dessa competição. Eles sabidamente são vermelhos, mas não se tem acesso aos dados.

Folha - Os dados de produção indicam que está havendo mudanças no ranking das empresas, com a Volkswagen indo para o terceiro lugar e a GM para o primeiro, além de crescimento das japonesas. Espera-se mais mexidas no setor?
Carvalho -
Essa oscilação de liderança tem ocorrido, mas infelizmente o tamanho do mercado fica o mesmo. As oscilações têm ocorrido em cima da competição interna, em cima de preço, de promoções. Há variações entre as montadoras mais tradicionais, mas essas mudanças de posições não têm acarretado aumento do mercado. No conjunto nós somos um setor em crise, talvez a pior dos últimos dez anos.

Folha - Quanto a economia tem de crescer para que se chegue a um cenário satisfatório para o setor?
Carvalho -
Nos primeiros seis, sete meses, o governo foi cauteloso e trabalhou principalmente o combate à inflação. Esses resultados vieram rapidamente. Mas a retomada de crescimento deveria ter vindo com velocidade um pouco maior no que tange à queda de juros. Estamos em um período em que as empresas estão esgotando seus recursos em termos de férias coletivas, acordos com suas bases sindicais para acomodar o pessoal, mas a nossa grande ansiedade é que a retomada de crescimento venha o quanto antes. Nós entendemos que ela virá no terceiro trimestre. A minha grande torcida é que cheguemos a crescimento de 4%, 5% em 2004.

Folha - O sr. está otimista. A maioria dos analistas aposta em um número próximo de 3%.
Carvalho -
Não sei se é otimismo exagerado. Nós estamos com uma reforma da Previdência muito bem encaminhada, e esse é um sinal importante, de reforma estrutural. Se a isso se somar uma reforma tributária, nós temos sinais muito importantes.

Folha - O sr. falou que o setor está esgotando as alternativas que tem, como férias coletivas, redução da jornada de trabalho. Isso significa que haverá demissões?
Carvalho -
Nós temos um projeto-ponte, que é a redução do IPI, até novembro. Nesse período, não pode haver demissões. Nós esperamos que ao fim desse período ocorra uma retomada de crescimento, com melhores condições de acesso a crédito. Se isso vier, vamos ter mais produção, mais venda e será possível acomodar as pessoas. Se não vier, nós vamos estar realmente em uma situação complicada, na qual cada montadora vai tomar sua decisão.

Folha - O nível que o setor considera razoável de tributação é qual? Carvalho - Para mim, quanto mais baixo, melhor. Não sei se vamos conseguir um dia chegar a um nível da França, que tem a segunda maior carga, com 17%. O Brasil é o campeão mundial, com 33%.
O debate tem de estar voltado para a sustentabilidade do setor. Se não houver sustentabilidade, nada faz sentido. E, para consegui-la, a alavanca principal é o crescimento. Mas, paralelamente, há um debate sobre como aprimorar a estrutura do setor.
Hoje, o setor gera em impostos R$ 10 bilhões por ano. E as montadoras são as concentradoras desses recolhimentos. Somos o substituto tributário de praticamente toda a cadeia. O IPI, o ICMS e o PIS-Cofins são recolhidos pelas montadoras. O governo federal tem uma tremenda vantagem com essa estrutura.

Folha - Quando foi dada a redução do IPI, no início de agosto, houve muitas críticas à concessão de incentivos que beneficiariam a classe média e grandes empresas. Essa é uma opção legítima em um país como o Brasil?
Carvalho -
Esse é um viés equivocado. Imagina-se sempre a concessão de benefícios para montadoras transnacionais. Mas a montadora é uma célula, que está vinculada a vários outros elementos. Estamos falando de uma cadeia inteira, de um setor que gera R$ 10 bilhões em tributos, engloba 200 mil empresas e emprega 1,3 milhão de pessoas. Quando há algum tipo de redução tributária que é repassada com o intuito de movimentar mercado, uma série de outros atores é beneficiada. É algo que é repassado, vai ao consumidor final e tende a girar essa roda toda.


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