São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ A HORA DAS CASSAÇÕES

Ex-ministro diz que estratégia eleitoral do PT foi definida em conjunto, mas nega que presidente tivesse conhecimento do caixa dois

Lula também é responsável, afirma Dirceu

Alan Marques/Folha Imagem
José Dirceu e sua mulher, Maria Rita, em Brasília; ex-ministro dedica as manhãs a articulações políticas e à preparação de sua defesa


MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA

"Pode deixar. Vou falar com o Renan. Vou falar com o Sarney. Vou ligar já. Acho que dá o Aldo." José Dirceu desliga o telefone. Que toca em seguida: "Meu governador!". Sentado no sofá de seu apartamento na Asa Sul de Brasília, o ex-ministro passou parte da manhã de sexta-feira ajudando na articulação para fazer do ex-ministro da Coordenação Política Aldo Rebelo (PC do B-SP) presidente da Câmara.
Dirceu tem acordado cedo. Faz ginástica, toma café da manhã e vai para o escritório do apartamento. Lê documentos, prepara sua defesa, reúne-se quase diariamente com assessores e advogados. À tarde, vai para a Câmara.
Na sexta-feira, interrompeu a maratona de telefonemas e reuniões para atender a Folha, em sua primeira entrevista exclusiva após a explosão do escândalo do "mensalão". Em alguns momentos, falou como se julgasse sua cassação inevitável. "Eu vou continuar na luta política e social, não vou sair." Em outros, fez uma defesa veemente de seus atos. "Eu tenho convicção de que vou ser absolvido. Não há provas contra mim." Dirceu diz que passa pela situação mais dura de sua vida. "Espero que eu tenha força para sobreviver ao momento que estou vivendo."
O ex-ministro reconhece que tem uma parcela da culpa pela atual crise do PT, mas afirma que não foi o único responsável pela definição da linha política do partido: "Parece que fui presidente do PT sete anos sozinho, secretário-geral cinco anos sozinho, né? O PT não foi construído assim". Entre os responsáveis pela crise, ele inclui o próprio presidente, que participava das discussões partidárias.
Dirceu deu nota 7,5 ao governo Lula e nota 5 para Antonio Palocci. Criticou a falta de investimentos em infra-estrutura e na área social resultantes da prioridade excessiva concedida ao ajuste fiscal. Reclamou também da linha política adotada por Lula, que preferiu alianças com partidos menores a um acordo estratégico com o PMDB: "Um acordo com o PMDB daria estabilidade ao governo. Eu sempre disse ao presidente que o governo não podia perder a maioria na Câmara e no Senado. Que perder a maioria seria caminho para CPI e que CPI é caminho para tentar desestabilizar e inviabilizar o governo". Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o ex-ministro, que durou quase quatro horas:
 

Folha - O senhor declarou recentemente que tem responsabilidade política sobre a crise do PT e que, ao contrário de muitos, não foge dessa responsabilidade. Assume seus erros. Quem não assume?
José Dirceu -
Muita gente. Parece que eu fui presidente do PT sete anos sozinho, secretário-geral cinco anos sozinho, né? O PT não foi construído assim. Tem dezenas de dirigentes importantes que hoje são prefeitos, governadores, ministros, deputados e senadores que participaram da construção de toda essa estratégia comigo.

Folha - E o presidente.
Dirceu -
E o próprio presidente da República. É isso o que eu digo. A responsabilidade é de todos nós. Nós temos que debater isso, num congresso do partido, e fazer o balanço.

Folha - O senhor acha que o presidente da República assume a responsabilidade que tem?
Dirceu -
Não quero nominar ninguém. O que eu não aceito é prejulgamento, que foi tudo errado, que foi tudo um fracasso, que a política de alianças do PT estava errada. Tudo foi aprovado democraticamente. A não ser que eu aceite a tese de que eu era stalinista, rolo compressor, que controlava o partido, o governo.

Folha - O presidente Lula participou de todas essas discussões?
Dirceu -
Participou. Todos participaram. Mas eu quero discutir e avaliar. Eu não quero julgar ninguém porque eu não quero que me prejulguem. O que não aceito é a imagem de que eu fiz tudo sozinho e depois apareceu Silvio Pereira, Delúbio Soares e Marcelo Sereno, que são o mal. Então corta esse mal e o PT está salvo. Isso é maniqueísta. E eu não mereço isso. Pelos anos que dediquei ao PT, pela luta que eu fiz no PT, o mínimo que eu mereço é respeito.

Folha - Qual é a sua responsabilidade?
Dirceu -
Eu tenho responsabilidade política. É lógico que eu tenho. Eu fui presidente do PT. Agora, eu não tive responsabilidade sobre as decisões da direção do PT a partir do dia em que saí da presidência. E isso o [José] Genoino [ex-presidente do PT] diz. Nem sobre as decisões do Delúbio. Nem o Delúbio me cobra. Ele assume. Responsabilidade sobre política de alianças, sobre programa de governo de Lula, é isso que vão julgar? Então estão julgando o Lula também. Tem de saber qual é o julgamento e qual é o grau de responsabilidade de cada um.

Folha - E qual é o grau de responsabilidade do presidente Lula?
Dirceu -
Não pode haver paralelo entre os dirigentes e o Lula porque ele não era dirigente do PT. Era presidente da República. Não participava das decisões do PT.

Folha - Dívidas de campanha do presidente Lula, de 2002, foram pagas com dinheiro de caixa 2.
Dirceu -
Ele não tinha conhecimento disso, ele não sabia. Ele não pode ser responsabilizado.

Folha - E a responsabilidade política? As pessoas votam no Lula e ele não sabe de nada? É difícil acreditar que ele ignorava tudo.
Dirceu -
Não é isso. É que ele não tem responsabilidade. Eu não posso atribuir responsabilidade a ele no grau dele. O Lula tem responsabilidade política porque ele era líder do PT. Mas os graus são diferentes. Não posso atribuir a ele responsabilidade sobre o caixa dois. Aí eu não vou atribuir.

Folha - Ele não tem responsabilidade como liderança?
Dirceu -
Isso é uma pergunta que tem de ser dirigida a ele. Eu não vou responder por ele.

Folha - Voltando à sua própria responsabilidade: todos falam que o senhor mandava no PT, mesmo estando no governo.
Dirceu -
Era humanamente impossível, pelo ritmo de trabalho e pelo acúmulo de funções que eu tinha no governo. É só pegar a minha agenda da época. Eu trabalhava 14, 16 horas. Só viajava a trabalho. Eu ia às reuniões da executiva do PT -poucas -convidado, com outros ministros, para prestar contas de atos do governo.

Folha - Delúbio Soares telefonou várias vezes para seus números no Palácio do Planalto.
Dirceu -
Meu Deus do céu, o Delúbio ligou uma vez por mês para mim, gente. Isso é uma coisa ridícula.

Folha - Os telefonemas estão concentrados na época da campanha.
Dirceu -
Eu não participava da vida do PT. Eu falava com o Delúbio uma vez por mês, duas vezes por mês, no máximo. Falava mais com o Genoino. Se eu tivesse participado, assumiria. Agora, estão tentando de novo satanizar o PT. O PT era o quê? Um bando de lunáticos e de esquerdistas que queriam implantar o comunismo no Brasil. Uns baderneiros.
Nós construímos um grande partido, que lutou pela democracia no país, desenvolveu políticas públicas. O PT fez uso de caixa dois, de mercantilização de campanhas. Tudo bem: vamos fiscalizar, a Justiça Eleitoral vai tomar as medidas. Só que virou que o PT é um partido de corruptos e quadrilheiros. E sem prova nenhuma. É engraçado: falam que existe "mensalão", mas não terminou a CPI do Mensalão nem a dos Correios. E cassaram o Roberto Jefferson porque ele disse que tinha "mensalão" e não provou. Não se provou corrupção do governo, dos ministros, do presidente. Não se provou a existência de um sistema para levantar recursos para repassar para A ou B. Nem que tem "mensalão".

Folha - Está provado que muitas pessoas da base do governo pegaram dinheiro do caixa dois e do Marcos Valério.
Dirceu -
Os partidos [PL, PP e PTB] assumiram que receberam dinheiro. Mas isso não quer dizer que o governo é corrupto e que o PT é corrupto.

Folha - As pessoas que votaram no PT a vida inteira imaginavam que votavam num partido que tinha práticas diferentes.
Dirceu -
Esse é um erro e o PT vai pagar por ele. Nós vamos ter que pedir desculpas ao país. Nós assumimos compromissos na campanha eleitoral com partidos e repassamos recursos. Se fossem da arrecadação oficial do PT, não teria problema nenhum. Como foram recursos de empréstimos tomados num banco e foram repassados fora da prestação de contas, há uma ilegalidade aí que vai ser punida pela Justiça.

Folha - Mas fazer aliança baseada na doação de recursos para um partido, e não de idéias e propostas, não é a mesma imoralidade?
Dirceu -
Não, não, porque na campanha eleitoral você tem gastos comuns. O PL, por exemplo, pôs o vice [José Alencar] na campanha [presidencial de Lula] e se assumiu um compromisso comum de que uma parte da arrecadação da campanha de 2002 seria destinada ao PL. E na campanha de 2004 foram firmados acordos eleitorais em várias cidades, com o PTB e o PP.

Folha - Mas o acordo com o PTB foi baseado na doação de R$ 20 milhões, e não em propostas.
Dirceu -
Mas daí não se pode concluir que o PT é um partido corrupto. E não se pode apagar a história do PT. Veja o meu caso: é como se eu não tivesse história. Eu fui desumanizado, eu não existo mais. Eu sou uma pessoa que tem 40 anos de vida política, nunca fui acusado de nada.

Folha - Mas o senhor não acha que é justamente por sua história, e pela história do PT, que existe a cobrança de que tivessem sido adotadas outras condutas?
Dirceu -
O problema não é a cobrança. O problema é, sem provas, dizer que eu sou o chefe do maior esquema de corrupção no país, que eu sou o chefe do "mensalão". Não há prova nenhuma. E não vai se provar porque não era verdade. Não havia "mensalão" para comprar votos. Eram acordos eleitorais. Não havia desvio de dinheiro público.

Folha - De onde é que vinha todo esse dinheiro?
Dirceu -
O dinheiro veio dos empréstimos feitos [pelo PT e por Marcos Valério] no Banco Rural. É que não se quer aceitar essa tese. Hoje o relator da CPI [Osmar Serraglio] está dizendo que o dinheiro veio do Daniel Dantas e dos fundos de pensão. Ele não tem prova nenhuma. Mas ele diz. Isso é o que virou o Brasil.

Folha - O próprio vice-presidente José Alencar afirmou não acreditar que o dinheiro seja originado de um empréstimo, como o PT alega.
Dirceu -
Isso aí o Banco Central pode responder. Evidentemente que o vice-presidente ou qualquer outro cidadão pode suspeitar. Agora, as CPIs não provaram o contrário. Não provaram que tem dinheiro de empresa estatal desviado para o PT ou outros partidos. E nem contratos superfaturados. E nem dinheiro de empresas privadas. O dinheiro vem dos empréstimos.

Folha - Mas quem pagaria esses empréstimos?
Dirceu -
O PT teria de pagar esses empréstimos.

Folha - De onde o PT ia tirar esse dinheiro?
Dirceu -
Em tese o PT não tem como pagar esses empréstimos, por isso está falando que não assume. Mas na verdade esses recursos foram repassados para o PT, e por ordem do Delúbio Soares, para pagamentos.

Folha - A crise atual não é uma conseqüência da política de alianças com esses partidos, e de decisões como a contratação de Duda Mendonça? Ninguém perguntava, por exemplo, como é que se pagaria R$ 25 milhões para o Duda?
Dirceu -
O erro não foi ter feito política de alianças e ter contratado o Duda. Foi ter feito caixa dois. Não havia polêmica por causa dos custos do Duda, mas sim por causa da orientação, até porque em 2002 tínhamos como pagá-lo oficialmente. Quem era contra o Duda era contra a política de aliança, contra o programa de governo. Lula não ia ser presidente, não ia governar o Brasil nunca.
Eu não creio que a raiz [da crise] está no programa que construímos e na política de alianças. A forma como o PT assimilou a mercantilização das campanhas foi, sim, um erro. Nós poderíamos ter equilibrado mais a questão do marketing com a mobilização da militância. Já a política de alianças era necessária. Não é um erro fazer aliança com o PL. Outra coisa é discutir qual era a aliança prioritária.

Folha - E qual era, na sua opinião?
Dirceu -
Eu acho que era o PMDB. Eu perdi isso no governo várias vezes. Um acordo com o PMDB daria estabilidade ao governo. Eu sempre disse ao presidente que o governo não podia perder a maioria na Câmara e no Senado. Que perder a maioria seria caminho para CPI e que CPI é caminho para tentar desestabilizar e inviabilizar o governo. O que a oposição está querendo? Dar um golpe branco. Não querem investigar os Correios, apurar se tem corrupção e adotar medidas. Outro erro que acho que cometemos foi não ter feito a reforma política. E foi um erro nós, que saímos do PT para o governo, termos simplesmente dado as costas para o PT. Nós deveríamos ter participado mais. E combinado a governabilidade institucional com a social, a mobilização social. O PT se desmobilizou. Nós não equilibramos de maneira adequada a governabilidade institucional com a governabilidade social.

Folha - O senhor teve outras divergências com o presidente Lula?
Dirceu -
Eu quis sair do governo em dois momentos (não saí e acho que errei): primeiro no caso Waldomiro [Diniz]. Entreguei o cargo para o presidente e ele não aceitou. Tudo bem. Acabou. Depois em março de 2005. Primeiro porque a oposição transformou a minha presença num problema para o governo. Tudo o que eu falava ou fazia se transformava numa crise. Em segundo lugar porque algumas opiniões que eu tinha sobre política econômica e desenvolvimento do país, e sobre a política, não predominavam no governo.

Folha - Qual era a sua discordância?
Dirceu -
A minha divergência é de foco e de prioridade. Eu sou favorável à estabilidade fiscal, monetária e ao combate à inflação. Mas estou convencido de que poderíamos ter destinado mais recursos para infra-estrutura, para o social. O ritmo e o peso foi cada vez maior no ajuste fiscal e monetário e cada vez menor na política de desenvolvimento.

Folha - Que nota o senhor dá para o governo?
Dirceu -
Eu dou 7,5. O governo tem grandes avanços, na área da educação por exemplo.

Folha - E para o Palocci?
Dirceu -
Eu dou nota 10.

Folha - Ninguém vai acreditar [risos].
Dirceu -
Dou nota dez porque ele foi capaz de controlar a inflação, estabilizar o país. E dou nota zero se for analisar pelo lado da política do desenvolvimento. Então dou nota 5.

Folha - E para o senhor?
Dirceu -
Para mim? Nota zero.

Folha - Por quê?
Dirceu -
Na situação em que eu estou, né?


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