São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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ECOS DO REGIME

Ministro diz que nunca negou as mortes no período, mas reafirma que documentos do Araguaia foram destruídos

Viegas quer abrir arquivo sem reabrir feridas

Alan Marques/Folha Imagem
O ministro da Defesa, o embaixador José Viegas, durante entrevista concedida ontem à Folha em sua casa no Lago Sul, em Brasília; ao fundo, o gato preto do ministro


ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

O ministro da Defesa, embaixador José Viegas, 62, admitiu ontem que "alguma mudança será necessária" na legislação vigente para ampliar o acesso de entidades e cidadãos aos documentos históricos, inclusive sobre o regime militar (1964-1985).
Em entrevista à Folha, ontem, em sua casa, Viegas reafirmou que os documentos sobre a guerrilha do Araguaia foram incinerados ou triturados, inclusive os "termos de destruição" que permitiram isso. Foi enfático, porém, ao dizer que isso não se estende aos demais documentos da época sobre as mortes.
"Eu sei que houve mortes, todos nós sabemos que houve mortes (...). Inclusive o Exército, claro, que na segunda nota lamentou a morte do Vladimir Herzog, que estava sob custódia do Exército."
Viegas criticou duramente a nota divulgada pelo Exército na semana passada em defesa da ditadura e das estruturas de repressão e disse que "não há lugar para o recrudescimento do pensamento autoritário no Brasil de hoje".
Se há bolsões radicais remanescentes? Ele não descartou a hipótese, mas recorrendo ao velho estilo cauteloso dos diplomatas: "Espero que não".
Embora repita que o caso da nota "está encerrado", não ratificou a versão amplamente divulgada pelo comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, de que não tivera conhecimento prévio da nota: "Prefiro me abster de comentar sobre isso".
 

Folha - O governo vai mudar o decreto de FHC para ampliar o acesso aos documentos?
José Viegas -
Houve uma consulta de uma comissão da Câmara sobre a possibilidade da ampliação do acesso aos documentos do Exército Brasileiro referentes ao regime militar. Eu transmiti ao comando do Exército e estou esperando uma resposta.

Folha - O presidente Lula tem a intenção de mudar o decreto?
Viegas -
Alguma mudança provavelmente será necessária, mas é preciso deixar claro que essa questão não é específica nossa, do Exército ou das Forças Armadas. É evidente que o Itamaraty, por exemplo, tem idêntica cautela, porque os documentos podem ter elementos que não interessam ao andamento da política externa.

Folha - A verdade histórica não está acima desses interesses?
Viegas -
Em princípio, sim. O compromisso com a verdade histórica é importante, mas existe também o zelo pelo interesse nacional. A combinação melhor possível entre esses dois elementos é o que se está buscando.

Folha - Na primeira nota, que causou toda a polêmica, o Exército disse que não havia documentos comprovando as mortes do regime militar, conforme a Defesa dizia "insistentemente". Isso é verdade?
Viegas -
Isso foi muito mal formulado e simplesmente não é verdade. Como ministro da Defesa, nunca neguei a existência de mortes durante o regime militar. O que eu disse, porque eu sei que é verdade, é que os arquivos relativos aos episódios do Araguaia foram destruídos. Aliás, eu sempre acrescento que o próprio fato de pessoas como o general [Antônio] Bandeira terem tido o cuidado de copiar os documentos revela que os originais foram destruídos, triturados, incinerados. Mas nunca disse que não houve mortes. Eu sei que houve mortes, todos nós sabemos.

Folha - Inclusive o Exército?
Viegas -
Inclusive o Exército, claro, que na segunda nota lamentou a morte do Vladimir Herzog, que estava sob sua custódia. De maneira que dizer que o Ministério da Defesa dizia que não há documentos sobre mortes é um erro.

Folha - E os termos de destruição, os registros sobre o processo de incineração?
Viegas -
Também foram destruídos. A lei foi feita com esse objetivo, o de permitir discrição completa dos documentos. A lei permitia também a destruição do termo de autorização.

Folha - Que seqüela fica do episódio, desde a nota até a retratação do comandante?
Viegas -
Não há seqüelas. A nota assinada pelo comandante foi necessária para corrigir os termos inadequados, errôneos, usados anteriormente. A primeira nota passava uma imagem de valorização do pensamento autoritário e não há lugar para o recrudescimento do pensamento autoritário no Brasil de hoje. A correção foi feita, o assunto está encerrado.

Folha - Mas a nota foi escrita, divulgada e deixa evidente que há setores do Exército Brasileiro que pensam daquela maneira. Os "bolsões sinceros, porém radicais" sobrevivem?
Viegas -
Espero que não.

Folha - Como o governo monitora se há ou não? Está investigando quem fez e por que fez?
Viegas -
O governo mantém seu propósito de não reabrir feridas do passado e sim pensar no futuro. Minha própria intenção ao aceitar ser ministro da Defesa foi a de trabalhar para a plena reinserção das Forças Armadas no cenário político e social da nação brasileira. É por isso que lamento profundamente a nota de domingo passado. Ela é um retrocesso nesse caminho que eu venho trilhando. Aliás, não só eu, mas todo o governo brasileiro.

Folha - Muita gente no governo considera improvável, senão impossível, que uma nota daquela gravidade fosse publicada sem o conhecimento do comando da Força. O sr. não acha?
Viegas -
Eu prefiro me abster de comentar sobre isso.

Folha - O sr. não acha que é grave de qualquer jeito: ou o comandante não sabia ou sabia e autorizou uma nota com aquele teor?
Viegas -
São suas palavras.

Folha - O sr. concorda?
Viegas -
Eu me abstenho de comentar.

Folha - A Defesa já teve problemas antes com o Exército, como na discussão pública dos soldos e quando o governo foi a favor e a Força, contra o projeto de desarmamento. São sinais de insubordinação?
Viegas -
De maneira nenhuma. O que houve no domingo foi um equívoco, ao se lançar aquela nota sem nenhuma consulta. É um erro claro, evidente, mas não caracteriza uma insubordinação. Quanto ao desarmamento: o Exército de fato conduziu uma ação parlamentar numa linha não condizente com a linha defendida pelo governo, pelo Ministério da Justiça e pela própria Defesa. Então nós harmonizamos essa ação.

Folha - Como o sr. responde às críticas, que partem de setores do próprio governo, de que um diplomata não tem perfil para comandar as Forças Armadas?:
Viegas -
Eu respondo com o meu trabalho. Eu tenho confiança no meu trabalho, sei que estou fazendo o melhor e que posso continuar fazendo o melhor. Este é um ministério difícil pela quantidade de assuntos que maneja, como aviação civil, programa nuclear, programa espacial, Antártica, salvaguardas tecnológicas de Alcântara, com a agência atômica, relações com o mundo, especialmente com os do nosso continente, a lei do abate... É um ministério que tem assunto para todos os gostos.

Folha - A nota do Exército pode ser resultado de uma insatisfação com os soldos e com o obsoletismo dos equipamentos?
Viegas -
Não acho. A característica da nota é política, é uma referência ao passado, sem nenhuma conotação monetária.

Folha - Por que os problemas maiores costumam ser com o Exército? Por que é a Força hegemônica ou por que o sr. tem mais facilidade de relacionamento com os outros dois comandantes?
Viegas -
Tenho as melhores relações com o [Luiz Carlos] Bueno [Aeronáutica] e com o [Roberto] Guimarães Carvalho [Marinha] e me dou bem com o Albuquerque. Das três Forças, o Exército é o maior, corresponde a dois terços do efetivo militar e tem presença territorial muito superior, mas isso, de modo nenhum, faz do Exército hegemônico.

Folha - O sr. é sempre listado entre os ministros que vão cair na reforma prevista para dezembro. Teve algum sinal?
Viegas -
Isso depende exclusivamente do presidente, e não tive nenhum sinal dele.

Folha - As fotos, as notas, tudo isso faz parte do aprendizado da democracia, tantos anos depois?
Viegas -
Parece que sim. Por algo a nota saiu. Foi equivocada, mas por algo ela saiu. De maneira que o aprendizado continua.

Folha - Sendo o governo Lula de esquerda, isso pode acirrar os ânimos de alguns setores militares?
Viegas -
Não creio. O próprio termo "esquerda", assim como "comunismo internacional" e "movimentos subversivos", é totalmente superado no tempo. Hoje, temos muita dificuldade em definir o que é esquerda. E, mesmo que o governo fosse de esquerda, foi eleito e suas decisões têm de ser acatadas pelos estamentos do Estado.

Folha - Foi isso que aconteceu, o recuo do comandante do Exército foi um gesto de autoridade do presidente eleito?
Viegas -
Não estou endossando as palavras que você disse, mas foi, sim, uma correção necessária.

Folha - Quanto ao Haiti: o governo foi elogiado enquanto parecia uma festa e até futebol. E agora, quando a situação está crítica e soldados brasileiros podem morrer?
Viegas -
O risco é inerente à profissão militar e ao envio de tropas à força de paz. Acho que acertamos em mandar nossa tropa para chefiar a missão no Haiti. Nosso continente cumpriu o prometido. Nem as tropas nem a ajuda internacional prometida chegaram.

Folha - Há intenção de prorrogar a permanência?
Viegas -
A resolução da ONU vale por seis meses, prorrogáveis. É evidente, e o mundo todo espera, que deverá haver uma prorrogação. Devemos ficar, sim, pelo menos mais um ano.


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