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ECOS DO REGIME
Ministro diz que nunca negou as mortes no período, mas reafirma que documentos do Araguaia foram destruídos
Viegas quer abrir arquivo sem reabrir feridas
Alan Marques/Folha Imagem
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O ministro da Defesa, o embaixador José Viegas, durante entrevista concedida ontem à Folha em sua casa no Lago Sul, em Brasília; ao fundo, o gato preto do ministro |
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
O ministro da Defesa, embaixador José Viegas, 62, admitiu ontem que "alguma mudança será
necessária" na legislação vigente
para ampliar o acesso de entidades e cidadãos aos documentos
históricos, inclusive sobre o regime militar (1964-1985).
Em entrevista à Folha, ontem,
em sua casa, Viegas reafirmou
que os documentos sobre a guerrilha do Araguaia foram incinerados ou triturados, inclusive os
"termos de destruição" que permitiram isso. Foi enfático, porém,
ao dizer que isso não se estende
aos demais documentos da época
sobre as mortes.
"Eu sei que houve mortes, todos
nós sabemos que houve mortes
(...). Inclusive o Exército, claro,
que na segunda nota lamentou a
morte do Vladimir Herzog, que
estava sob custódia do Exército."
Viegas criticou duramente a nota divulgada pelo Exército na semana passada em defesa da ditadura e das estruturas de repressão
e disse que "não há lugar para o
recrudescimento do pensamento
autoritário no Brasil de hoje".
Se há bolsões radicais remanescentes? Ele não descartou a hipótese, mas recorrendo ao velho estilo cauteloso dos diplomatas:
"Espero que não".
Embora repita que o caso da nota "está encerrado", não ratificou
a versão amplamente divulgada
pelo comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, de
que não tivera conhecimento prévio da nota: "Prefiro me abster de
comentar sobre isso".
Folha - O governo vai mudar o decreto de FHC para ampliar o acesso
aos documentos?
José Viegas - Houve uma consulta de uma comissão da Câmara
sobre a possibilidade da ampliação do acesso aos documentos do
Exército Brasileiro referentes ao
regime militar. Eu transmiti ao
comando do Exército e estou esperando uma resposta.
Folha - O presidente Lula tem a
intenção de mudar o decreto?
Viegas - Alguma mudança provavelmente será necessária, mas é
preciso deixar claro que essa
questão não é específica nossa, do
Exército ou das Forças Armadas.
É evidente que o Itamaraty, por
exemplo, tem idêntica cautela,
porque os documentos podem ter
elementos que não interessam ao
andamento da política externa.
Folha - A verdade histórica não
está acima desses interesses?
Viegas - Em princípio, sim. O
compromisso com a verdade histórica é importante, mas existe
também o zelo pelo interesse nacional. A combinação melhor
possível entre esses dois elementos é o que se está buscando.
Folha - Na primeira nota, que
causou toda a polêmica, o Exército
disse que não havia documentos
comprovando as mortes do regime
militar, conforme a Defesa dizia
"insistentemente". Isso é verdade?
Viegas - Isso foi muito mal formulado e simplesmente não é
verdade. Como ministro da Defesa, nunca neguei a existência de
mortes durante o regime militar.
O que eu disse, porque eu sei que
é verdade, é que os arquivos relativos aos episódios do Araguaia
foram destruídos. Aliás, eu sempre acrescento que o próprio fato
de pessoas como o general [Antônio] Bandeira terem tido o cuidado de copiar os documentos revela que os originais foram destruídos, triturados, incinerados. Mas
nunca disse que não houve mortes. Eu sei que houve mortes, todos nós sabemos.
Folha - Inclusive o Exército?
Viegas - Inclusive o Exército,
claro, que na segunda nota lamentou a morte do Vladimir
Herzog, que estava sob sua custódia. De maneira que dizer que o
Ministério da Defesa dizia que
não há documentos sobre mortes
é um erro.
Folha - E os termos de destruição,
os registros sobre o processo de incineração?
Viegas - Também foram destruídos. A lei foi feita com esse objetivo, o de permitir discrição
completa dos documentos. A lei
permitia também a destruição do
termo de autorização.
Folha - Que seqüela fica do episódio, desde a nota até a retratação
do comandante?
Viegas - Não há seqüelas. A nota
assinada pelo comandante foi necessária para corrigir os termos
inadequados, errôneos, usados
anteriormente. A primeira nota
passava uma imagem de valorização do pensamento autoritário e
não há lugar para o recrudescimento do pensamento autoritário no Brasil de hoje. A correção
foi feita, o assunto está encerrado.
Folha - Mas a nota foi escrita, divulgada e deixa evidente que há
setores do Exército Brasileiro que
pensam daquela maneira. Os "bolsões sinceros, porém radicais" sobrevivem?
Viegas - Espero que não.
Folha - Como o governo monitora
se há ou não? Está investigando
quem fez e por que fez?
Viegas - O governo mantém seu
propósito de não reabrir feridas
do passado e sim pensar no futuro. Minha própria intenção ao
aceitar ser ministro da Defesa foi
a de trabalhar para a plena reinserção das Forças Armadas no cenário político e social da nação
brasileira. É por isso que lamento
profundamente a nota de domingo passado. Ela é um retrocesso
nesse caminho que eu venho trilhando. Aliás, não só eu, mas todo
o governo brasileiro.
Folha - Muita gente no governo
considera improvável, senão impossível, que uma nota daquela
gravidade fosse publicada sem o
conhecimento do comando da Força. O sr. não acha?
Viegas - Eu prefiro me abster de
comentar sobre isso.
Folha - O sr. não acha que é grave
de qualquer jeito: ou o comandante não sabia ou sabia e autorizou
uma nota com aquele teor?
Viegas - São suas palavras.
Folha - O sr. concorda?
Viegas - Eu me abstenho de comentar.
Folha - A Defesa já teve problemas antes com o Exército, como na
discussão pública dos soldos e
quando o governo foi a favor e a
Força, contra o projeto de desarmamento. São sinais de insubordinação?
Viegas - De maneira nenhuma.
O que houve no domingo foi um
equívoco, ao se lançar aquela nota
sem nenhuma consulta. É um erro claro, evidente, mas não caracteriza uma insubordinação.
Quanto ao desarmamento: o
Exército de fato conduziu uma
ação parlamentar numa linha não
condizente com a linha defendida
pelo governo, pelo Ministério da
Justiça e pela própria Defesa. Então nós harmonizamos essa ação.
Folha - Como o sr. responde às
críticas, que partem de setores do
próprio governo, de que um diplomata não tem perfil para comandar as Forças Armadas?:
Viegas - Eu respondo com o
meu trabalho. Eu tenho confiança
no meu trabalho, sei que estou fazendo o melhor e que posso continuar fazendo o melhor. Este é
um ministério difícil pela quantidade de assuntos que maneja, como aviação civil, programa nuclear, programa espacial, Antártica, salvaguardas tecnológicas de
Alcântara, com a agência atômica, relações com o mundo, especialmente com os do nosso continente, a lei do abate... É um ministério que tem assunto para todos
os gostos.
Folha - A nota do Exército pode
ser resultado de uma insatisfação
com os soldos e com o obsoletismo
dos equipamentos?
Viegas - Não acho. A característica da nota é política, é uma referência ao passado, sem nenhuma
conotação monetária.
Folha - Por que os problemas
maiores costumam ser com o Exército? Por que é a Força hegemônica
ou por que o sr. tem mais facilidade
de relacionamento com os outros
dois comandantes?
Viegas - Tenho as melhores relações com o [Luiz Carlos] Bueno
[Aeronáutica] e com o [Roberto]
Guimarães Carvalho [Marinha] e
me dou bem com o Albuquerque.
Das três Forças, o Exército é o
maior, corresponde a dois terços
do efetivo militar e tem presença
territorial muito superior, mas isso, de modo nenhum, faz do
Exército hegemônico.
Folha - O sr. é sempre listado entre os ministros que vão cair na reforma prevista para dezembro. Teve algum sinal?
Viegas - Isso depende exclusivamente do presidente, e não tive
nenhum sinal dele.
Folha - As fotos, as notas, tudo isso faz parte do aprendizado da democracia, tantos anos depois?
Viegas - Parece que sim. Por algo
a nota saiu. Foi equivocada, mas
por algo ela saiu. De maneira que
o aprendizado continua.
Folha - Sendo o governo Lula de
esquerda, isso pode acirrar os ânimos de alguns setores militares?
Viegas - Não creio. O próprio
termo "esquerda", assim como
"comunismo internacional" e
"movimentos subversivos", é totalmente superado no tempo.
Hoje, temos muita dificuldade em
definir o que é esquerda. E, mesmo que o governo fosse de esquerda, foi eleito e suas decisões
têm de ser acatadas pelos estamentos do Estado.
Folha - Foi isso que aconteceu, o
recuo do comandante do Exército
foi um gesto de autoridade do presidente eleito?
Viegas - Não estou endossando
as palavras que você disse, mas
foi, sim, uma correção necessária.
Folha - Quanto ao Haiti: o governo foi elogiado enquanto parecia
uma festa e até futebol. E agora,
quando a situação está crítica e soldados brasileiros podem morrer?
Viegas - O risco é inerente à profissão militar e ao envio de tropas
à força de paz. Acho que acertamos em mandar nossa tropa para
chefiar a missão no Haiti. Nosso
continente cumpriu o prometido.
Nem as tropas nem a ajuda internacional prometida chegaram.
Folha - Há intenção de prorrogar
a permanência?
Viegas - A resolução da ONU vale por seis meses, prorrogáveis. É
evidente, e o mundo todo espera,
que deverá haver uma prorrogação. Devemos ficar, sim, pelo menos mais um ano.
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